sábado, agosto 23, 2025

O declínio do Império Americano no filme 'A Noite Sempre Chega'

 


Poucos filmes conseguem fundir um contexto com o drama do protagonista, como faz “A Noite Sempre Chega” (Night Always Comes, 2025). O contexto é uma América de desemprego, inflação e trabalhos precarizados, com milhões condenado a viver nas ruas. E o drama de uma protagonista que corre contra o tempo para conseguir 25 mil dólares em 24 horas para sua família não ser despejada. Embora seja uma ficção, impacta muito mais do que vários documentários de Michael Moore denunciando a ilusão do sonho americano. Evita cair no mero drama pessoal e subjetivo para contrapor à realidade de uma América atual decadente. O filme é sobre a jornada de Lynette através da noite para tentar juntar o dinheiro necessário e evitar o despejo da sua família (e principalmente, do seu irmão mais velho com síndrome de Dawn), produzindo uma série de encontros tão assustadores que as pessoas que sobreviveram pensarão neles pelo resto de suas vidas. É o retrato do declínio do Império americano.

Um economista da Universidade de Washington disse… fundamentos da economia americana estão afundando, sobretudo no mercado de trabalho e imobiliário. As pessoas recebem menos pelos mesmos trabalhos. Os salários médios descem, graças à inflação. Antes, cem dólares davam para muitas compras. Agora, gastam o dobro e as sacolas estão menos cheias. E acreditam que não são só os preços dos alimentos. Segundo novos números, a maioria dos inquilinos gasta mais dum terço do seu rendimento na habitação. 30 % dos americanos dizem não conseguir pagar uma emergência médica de mil dólares. As consequências podem ser desastrosas, incluindo taxas de despejo, demissões e dificuldades na saúde mental.

Ouve-se essa fala como som ambiente de algum noticiário transmitido pela rádio FM Portland, enquanto a protagonista acorda esperançosa numa manhã: naquele dia, depois de um dos seus trabalhos, vai assinar alguns papéis para conseguir um empréstimo e evitar serem despejados por falta de pagamento.

Quer saber por que um discurso de Donald Trump tão tosco e simplório como “Make America Great Again” conquistou tantos corações e mentes nos EUA? Então assista ao filme A Noite Sempre Chega (Night Always Comes, 2025) filme que estreou na Netflix. Um retrato sombrio da crise econômica que os Estados Unidos atravessam. Para quem vive de salário em salário, o filme se desenrola como um pesadelo real, mostrando o quão perto tantos americanos estão de se tornarem moradores de rua.

Baseado no romance de 2021 "A Noite Sempre Chega", de Willy Vlautin, a adaptação cinematográfica foi dirigida por Benjamin Caron, com roteiro de Sarah Conradt. Vanessa Kirby, que também é produtora do filme, interpreta Lynette, uma mulher desesperada para arrecadar US$ 25.000 em apenas uma noite, ou então ela e sua família serão despejadas de sua casa.



Poucos filmes ficcionais conseguem incorporar um pano de fundo real em uma narrativa como A Noite Sempre Chega. Principalmente, um pano de fundo árido como o contexto econômico. Em geral, os aspectos dramáticos pessoais do protagonista acabam se sobrepondo ao contexto do enredo, transformando-se em simples drama pessoal e subjetivo.

Porém, o drama de Lynette (lembrando bastante o roteiro do filme After Hours de Scorsese - toda história se passa em uma noite/madrugada) e os personagens do White Crap do submundo norte-americano que fariam Beavis & Butthead (aqueles adolescentes brancos desocupados que só assistiam à TV presos a um sofá velho e encardido) corarem de vergonha, refletem com precisão a decadência econômica de um país que já foi o modelo para um Império.

A jornada de Lynette através da noite para tentar juntar o dinheiro necessário e evitar o despejo da sua família (e principalmente, do seu irmão mais velho com síndrome de Dawn) produz uma série de encontros tão assustadores que as pessoas que sobreviveram pensarão neles pelo resto de suas vidas.

São pequenos dramas ou tragédias pessoais que podem não ser considerados importantes o suficiente para justificar uma notícia de TV local, ou mesmo uma investigação policial. Mas que formam a atual realidade de uma América decadente, cuja única proposta de redenção vem de um líder da nova extrema-direita norte-americana. E que quer arrastar o mundo junto com ele.

É um filme melancólico e terrivelmente tenso sobre pessoas pobres que vivem cada dia em seu limite, trabalhando até a exaustão em um país que mal perceberia se morressem. Há um traficante de drogas carrancudo e arrogante chamado Henry (Curtis McGann), que tem uma sala de estar cheia de jovens mulheres embriagadas e uma garagem cheia de ferramentas elétricas; um ex-amante de fala mansa chamado Tommy (Michael Kelly de "House of Cards") que está aninhado no centro de seus traumas; e um cafetão chamado Blake (Eli Roth), cujo clube underground é iluminado com um vermelho infernal. Por fim, há o colega de bar de Lynette, Cody (Stephan James), que tenta ajudá-la a arrombar o cofre e se torna seu parceiro no crime durante a maior parte da noite.



A Noite Sempre Chega combina elementos dos clássicos thrillers policiais e dos chamados “filmes de mulheres” (as “vamps” ou “good-bad girls”), nos quais uma heroína (frequentemente interpretada por Joan Crawford, Bette Davis ou Barbara Stanwyck) usa sua inteligência e carisma, e às vezes seu corpo, para atingir um objetivo ou escapar de uma situação difícil.

Mas, em sua essência, este é um estudo de personagens sujos e pés no chão, no estilo dos filmes dos anos 1970 (também, uma época de decadência econômica dos EUA com a crise do petróleo), sobre uma pessoa que tem um pé no mundo do crime e o outro no mundo da justiça. Lynette nunca consegue deixar o mundo do crime para trás porque ele está cheio de pessoas que a ajudam quando ela se mete em encrenca, porque lhe devem algo ou querem que ela lhes deva algo.

O Filme


“Night Always Comes” é um filme que fará com que quase todo mundo se sinta visto, da maneira mais desconfortável.

Vanessa Kirby estrela como Lynette, que divide uma pequena casa em Portland com sua mãe Doreen (Jennifer Jason Leigh) e seu único irmão, Kenny (Zach Robin Gottsagen), um homem de trinta e poucos anos que tem síndrome de Down e não consegue viver sozinho.

A história abrange 24 horas perigosas na vida de Lynette. O proprietário está vendendo a casa que Lynette, Doreen e Kenny estavam alugando. Lynette quer comprar a casa para que eles não precisem se mudar novamente, mas ela não tem dinheiro e nem crédito. Então ela e sua mãe terão que assinar a escritura e dar uma entrada de US$ 25.000. Porém, Doreen perde a reunião porque viu, no caminho, uma liquidação de "loucura Mazda" e decidiu gastar a entrada em um novo veículo, para "fazer algo de bom para mim, para variar".



Lynette é informada de que ainda pode ficar com a casa se conseguir arrecadar US$ 25.000 até a manhã seguinte e garantir que sua mãe apareça. Se ela não conseguir, o lugar será vendido para outra pessoa e eles terão um destino certo: morar na rua dentro do carro. E perder o seu irmão com síndrome de Dawn para alguma instituição pública por obrigação legal.

No dia seguinte, Lynette visita todas as pessoas em Portland que consegue imaginar que possam desembolsar milhares de dólares em cima da hora. Cada parada em sua jornada nos diz mais sobre ela.

Lynette tem empregos de meio período em uma fábrica de pães, onde parece estar se saindo bem, e como garçonete em um bar, onde é repreendida por estar sempre atrasada. Ela também está cursando, ironicamente, o curso de Economia na faculdade (coincidentemente vemos uma cena em que se discute as diferenças das abordagens monetaristas e keynesinianas – em essência, o motivo da decadência econômica do Império).

Ela também faz trabalho sexual nas horas vagas. Vemos que Lynette tem uma energia e resistência incríveis, mas está tão sobrecarregada que faz tudo de forma caótica e, às vezes, mal, e fica ansiosa o dia todo. O filme está ciente de que esse é agora o estado padrão da vida americana.

O primeiro passo de Lynette é ligar para um de seus clientes regulares (Randall Park) e pedir um encontro de última hora. Ele ri na cara dela quando ela pede US$ 25.000, mas paga o valor normal pelo seu tempo, mais um extra.



Então ela visita sua antiga colega de quarto, Gloria (Julia Fox), uma amante de um político local que mora em seu apartamento chique. Lynette emprestou US$ 4.000 a Gloria anos atrás, quando ela estava em crise, e agora quer o reembolso. Gloria dá uma lista de justificativas fracas e ofensivas para não lhe dar o dinheiro, mas dá a Lynette um molho de chaves e pede que ela fique lá para ficar de olho em um pacote que ela está esperando. Isso dá a Lynette os meios, o motivo e a oportunidade de fugir com um cofre no armário do quarto principal. As coisas ficam mais selvagens e caóticas a partir desse ponto, quando tentará arrombar o cofre buscando ajuda especializada.

A Noite Sempre Chega produz um impacto muito maior do que dez documentários de Michael Moore sobre a hipocrisia dos políticos e como a mídia tenta ocultar a pobreza na América.

Lynette vive na zona cinza entre a legalidade e a contravenção:  faz faculdade de Economia, mas também pisa no submundo oferecendo serviços sexuais com os quais formou uma network e tenta, através dela, conseguir os salvadores 25.000 dólares. Percebemos que ela já foi classe média, mas decaiu, junto com a separação dos seus pais. Ficando com a sua mãe, saudosa dos bons tempos e ainda capaz de participar da “loucura Mazda” e comprar um carro de luxo em liquidação, mesmo à beira do despejo.

De forma acachapante, o filme como faz parte do próprio DNA do país o ódio aos pobres. Ao ponto de compreendermos que os americanos parecem ser treinados que nascem a odiar os pobres, como aqueles que são perdedores. Dentro dos valores da meritocracia que a realidade teima em desmentir.

E que Lynette aprende da pior maneira possível, na medida em que aos poucos a sua máscara de classe média vai caindo e descobrir que poderá ter o destino de milhões de americanos. Que vê pelas ruas de Portland, morando em barracas ou dentro dos próprios carros.

E principalmente como ela vai abandonando a ideia de que se trabalhar o suficiente (e sofrer o suficiente) alcançará a estabilidade financeira.

Em outras palavras, no final ela está finalmente livre dessa mentira.

Lembrando a frase emblemática de Brad Pitty, como Tyler Durden, em O Clube da Luta: “É apenas depois de perder tudo que somos livres para fazer qualquer coisa”.


  

Ficha Técnica

 

Título:  A Noite Sempre Chega

Diretor: Benjamin Caron

Roteiro: Willy Vlautin, Sarah Conradt

Elenco: Vanessa Kirby, Jennifer Jason Leigh, Zack Gottsagen

Produção: Aluna Entertainment, Co Created Media

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: EUA

 

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