Em 1898, H.G. Wells lançou o cânone da literatura de invasão com o livro “A Guerra dos Mundos”. Ele era ateu e com inspiração socialista e o livro uma alegoria do colonialismo europeu. Certamente não gostaria das várias adaptações de gerações de cineastas, seja com inspirações religiosas ou como peça de propaganda geopolítica dos EUA. Principalmente essa “Guerra dos Mundos”, lançada esse ano pela Prime Video. Dessa vez o alienígena é uma Inteligência Artificial interestelar faminta por dados e que vê na Terra um prato cheio de terabits, repleto de data centers. E mais: descobre no Estado Profundo um aliado involuntário – o governo só pensa em controlar a privacidade das pessoas com sua obsessão regulamentadora. E as Big Techs, vítimas isentas. Do começo ao fim, um merchandising da Amazon, Apple, Google, Tesla, entre outros. Detalhe: quem salvará o mundo será um drone de entregas da Amazon... O filme é um exemplo de como a produção audiovisual reflete o zeitgeist do momento no qual, a cada dia, surgem mais histórias sobre a IA ameaçando a humanidade – a tal de “singularidade” da qual tanto falam os engenheiros computacionais do Vale do Silício.
O livro “Guerra dos Mundos”, de 1898, definiu os cânones do gênero
“literatura de invasão”. O autor H.G. Wells era ateu e socialista, e seu livro
representava uma metáfora do colonialismo britânico – mais precisamente Wells
se inspirou no efeito catastrófico da colonização europeia sobre os aborígenes
da Tasmânia. E questionar a moralidade do imperialismo.
Várias gerações de cineastas adotaram o romance de H.G. Wells e
deram-lhe uma nova abordagem. Que certamente fizeram o escritor revirar no
túmulo em desaprovação.
Para começar, a versão de 1953, dirigida por Byron Haskin e
produzida por George Pal, transferiu os eventos do livro de 1898 para os EUA,
onde a humanidade foi salva pela graça divina: Deus, em sua infinita sabedoria,
criou um ser microscópico capaz de deter uma invasão alienígena - o vírus do resfriado
comum. O ateu Wells teria execrado esse final.
E depois, a versão de Spielberg de 2005 atualizada para um mundo
ainda em processo de recuperação após os ataques terroristas de 11 de setembro
de 2001. Um típico cinema recuperativo dentro do zeitgeist da “Guerra ao
Terror” da Era Bush que Wells, socialista e crítico do colonialismo, também
execraria.
Esta nova versão de 2025, dirigida por Rich Lee e produzida por
Timur Bekmambetov, leva a narrativa a um território verdadeiramente
inexplorado. Essa nova versão imagina a invasão da perspectiva de um analista
de segurança do governo, interpretado pelo rapper Ice Cube. É um thriller
cibernético com elementos de conspiração. E, para completar, parece se passar
em tempo real, e inteiramente da perspectiva da tela do computador do Sr. Cube.
Mesmo assim, este humilde blogueiro desconfia que Wells também ficaria
muito irritado com essa versão. Como um socialista que era, não aprovaria ver o
mundo salvo graças aos produtos e serviços de um gigante hipercapitalista e
precarizadora da força de trabalho como a Amazon – salvo por um drone
entregador de encomendas da gigante capitalista, com uma tecnologia que precariza
ainda mais o “precariado”.
A versão de 1953 refletia o momento de uma Guerra Fria que se
iniciava, com a sabedoria divina da Criação como a responsável da salvação da
humanidade. Para se contrapor ao ateísmo comunista soviético.
Já a versão com Tom Cruise refletia o patriotismo da Guerra ao
Terror pós-2001, estrelado por um protagonista “All American”.
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Talvez a versão mais fiel ao espírito de H.G. Wells seja a série
Netflix argentina O Eternauta (2025) uma alegoria para a América do Sul,
historicamente um continente que conviveu com invasões colonialistas e
imperialistas – clique aqui.
Guerra dos Mundos, produção da
Prime Video, por sua vez reflete o momento atual no qual, a cada dia, surgem
mais histórias sobre a IA se tornando poderosas o suficiente para ameaçar a
humanidade quando se tornar senciente e autônoma – a tal de “singularidade” da
qual tanto falam os engenheiros computacionais do Vale do Silício.
Mais do que isso. Essa versão é um verdadeiro exemplo de “product
placement” (estratégia em que produtos e marcas são integrados a conteúdo de
entretenimento, como filmes, programas de TV ou videogames, com o objetivo de
promoção subliminar sem interromper a experiência de visualização), do começo
ao fim.
Mais de uma hora e meia de merchandising das big techs e dos
maiores conglomerados dos EUA: Amazon, Apples, Google, Tesla entre outros.
Além disso, sugere que qualquer tipo de regulamentação só serve
para invadir a privacidade e controlar as pessoas. E as big techs figuradas apenas
como operadoras isentas, vítimas de uma invasão de nano-insetos que desembarcam
dos tripods invasores para drenarem dados dos data-centers, assim como
mosquitos sugam sangue humano.
Uma invasão de uma IA alienígena cuja responsabilidade somente
pode ser do Governo e décadas de conspirações do Estado Profundo.
Parece até um roteiro feito por algum bolsonarista, mas
definitivamente com inspiração alt-right norte-americana
Guerra dos Mundos estreou com cinco anos de atraso, feito em plena
era da Covid – perceptível pela estética do filme no estilo Zoom (formato screenlife)
onde todos os protagonistas dialogam entre si a partir de videochamadas.
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O filme foi produzido em 2020 e ficou cinco anos nas prateleiras
da Universal Pictures, antes de ser vendido para uma plataforma de streaming. Guerra
dos Mundos parece ter sido feito para a conveniência da era Covid e,
cinicamente, capitaliza a paranoia da vigilância e os segredos do governo sem
realmente dizer nada coerente sobre, bem, nada.
Mas a Amazon – que entra na trama de forma tão constrangedora que
parece um apelo para uma compra no Prime Video – tropeçou no que podemos
considerar o produto de streaming perfeito: um pedaço de lixo barato com um
título e estrelas reconhecíveis, apenas o suficiente para milhões de pessoas
clicarem para reproduzir.
Apesar de tudo, o filme é ótimo para as pretensões do Cinegnose:
estudar como cada filme é uma espécie de repositório do imaginário e
sensibilidade de uma época – o zeitgeist.
O Filme
O rapper Ice Cube interpreta Will Radford, um analista da NSA
(Agência de Segurança Nacional) que está fazendo o turno da noite no escritório
em um domingo – um ponto da trama criado para explicar por que ele parece ser o
único funcionário em todo o prédio.
No início, é um dia normal de trabalho; ele está ajudando o FBI a
rastrear um criminoso cibernético chamado The Disruptor e, ocasionalmente,
conversando com sua amiga cientista da NASA, Sandra (Eva Longoria), sobre fenômenos
climáticos estranhos que eles têm enfrentado e como os satélites estão se
comportando de forma errática.
Mas Will não pensa apenas na segurança nacional. Ele usa
repetidamente o tempo de trabalho e os equipamentos para hackear os
dispositivos de seus filhos adultos, espioná-los e dar-lhes lições sobre
alimentação saudável e não jogar videogame. Ele é o pai do pior pesadelo de um
filho: armado com o aparato cibernético do governo para, a qualquer momento,
invadir os dispositivos móveis dos filhos.
O dia de trabalho monótono de Will é interrompido quando Sandra
percebe que os estranhos fenômenos atmosféricos são, na verdade, o prenúncio de
uma invasão alienígena. Meteoros atravessaram a atmosfera da Terra,
interrompendo as comunicações via satélite e causando caos generalizado ao cair
nas grandes cidades do planeta.
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Curiosa sobre as rochas espaciais, Sandra vai até o local da queda
e descobre que elas não são realmente rochas espaciais: são contêineres das
quais saem máquinas de guerra finas e tripodais, que de repente começam a se
movimentar e explodir com raios e ondas de choque acústicas, tudo o que se
move. "ESTAMOS SOB ATAQUE... MÁQUINAS EM METEOROS", grita uma
manchete da CNN na tela de Will.
Will então passa vários minutos elaborando um relatório
superficial para apresentar ao presidente dos EUA ("Eles serão mais fortes
em grupo", diz ele) antes de voltar sua atenção para seus filhos e
guiá-los para um lugar seguro. Sua filha, Faith, cientista biológica e
pesquisadora, por exemplo, está grávida e acaba se ferindo nos ataques. Usando
todas as suas habilidades de hacker, Will assume remotamente o controle de um
Tesla autônomo e o programa para afastar Faith da zona de guerra. (Surpreendentemente,
o Tesla não pega fogo.)
À medida que uma resposta militar global é coordenada –
aparentemente em segundos – começa a parecer que os invasores são frágeis.
Caças derrubam suas máquinas com facilidade, para o deleite de Will, que começa
a gritar e gritar em frente ao seu computador.
"Uau, TOCHDOWN!", ele comemora. "Levem seus
traseiros intergalácticos de volta para casa!"
Mas tudo era uma estratégia diversionista. No meio da batalha, os
tripods começam a convergir para os data centers do mundo. Agachados, cada
máquina de guerra desenrola um tentáculo metálico e começa a inundar os prédios
com minúsculas aranhas robóticas. Essas pequenas criaturas, ao que parece, têm
a capacidade de sugar dados como mosquitos sugando sangue de uma veia, e em
segundos, os sistemas em todos os lugares do planeta começam a enlouquecer –
aviões caem, plataformas de petróleo explodem, as máquinas militares tornam-se
inúteis.
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O vilão é o “Estado Profundo”
Os vilões não são apenas os nano insetos. Mas o Governo e o Estado
Profundo, que por décadas escondeu a verdade. E o seu projeto secreto de invadir
a privacidade de todos os cidadãos do planeta (o “Goliath Project”) hackeando
data centers, chama a atenção dos aliens loucos por dados – um tipo de IA
interestelar que vaga a Galáxia se alimentando de dados.
Até descobrir que o Estado Profundo tornou o planeta Terra, mais
uma vez, atraente para a IA alien – eles já teriam passado por aqui no início
da computação nos anos pós-incidente de Roswell (1947), atrás de dados de
cartões perfurados e fitas magnéticas dos gigantescos mainframes do início da
computação.
A questão é que, no mundo real, as famintas IAs alienígenas na
verdade são as próprias Big Techs e seus data centers, igualmente famintos por
dados dos usuários para o treinamento das IAs machine-learnings. E otimizar a
monetização dos hábitos, intenções e escolhas dos usuários nas redes.
A narrativa de Guerra dos Mundos, ao lado das fantasias distópicas
da singularidade tecnológica em muitos filmes sci-fi atuais, é a propaganda do
Vale do Silício: engenharia de opinião para que a opinião pública veja as Big
Techs como isentas – como fossem unicamente orientadas para promover o
progresso da espécie humana.
E os únicos mal-intencionados da história: o Estado Profundo, alienígenas
ou algoritmos distópicos sencientes se voltando contra a humanidade.
Definitivamente, H.G. Wells iria preferir que essa nova versão de “Guerra
dos Mundos” jamais tivesse saído das prateleiras da Universal.
Ficha Técnica |
Título: Guerra
dos Mundos |
Diretor: Rich
Lee |
Roteiro: Kenny Golde, Marc
Hyman |
Elenco: Ice Cube, Eva Longoria,
Iman Benson |
Produção: Universal Pictures |
Distribuição: Prime Video |
Ano: 2025 |
País: EUA |