Zach Gregger é um diretor/roteirista que está chamando a atenção. Principalmente, porque seus filmes de terror (“Noites Mortais”) retiram o gênero da clássica matriz edipiana (sedução da inocência, culpa etc.) para tirar o horror de alegorias contemporâneas. Como em “A Hora do Mal” (Weapons, 2025) que parte da alegoria a um evento tão recorrente nos EUA que se tornou iconicamente pop: tiroteios em escolas. Aqui representado pelo desaparecimento de todas as crianças de uma sala de aula: em estado de transe, deixaram suas casas no meio da madrugada. Para desaparecerem. Uma pequena cidade que não consegue dar uma resposta ao trauma, a não ser procurar um bode expiatório, como a caça às bruxas na História. Crianças veem o mundo adulto, que deveria protegê-las, caótico e irracional. Alargando o abismo daquilo que a sociologia chama de “perda do elo geracional”. Parece que Gregger está querendo nos dizer: “tirem os adultos da sala, porque serão as crianças que salvarão o dia!”.
Tiroteios em cinemas e escolas se tornaram praticamente ícones da
cultura norte-americana. Quase o que representa lata de sopa Campbell´s para as
gravuras da Art Pop de Andy Warholl (guarde essa referência, pois voltaremos a
ela).
Desde o massacre em Aurora em 2012 (um atirador usando uma máscara
de gás abriu fogo durante uma sessão do filme The Dark Knight Rises num
cinema em Aurora, Colorado) até um tiroteio em um colégio do Texas, com quatro
mortos, nesse ano (clique aqui), anualmente a mídia relata tiroteios em massa
perpetrados por lobos solitários que matam aleatoriamente e inexplicavelmente.
Como se odiassem a própria vida e quisessem arrastar o mundo inteiro junto.
Certamente essas recorrências midiáticas que se tornaram icônicas
só reforçam um fenômeno sociológico chamado de “perda do elo geracional”: Em
culturas, os mais velhos sempre foram “elos geracionais” como transmissores de
um saber acumulado, conhecimento e sabedoria. Colocados em posição de destaque
na sociedade, o natural declínio físico era compensado pela sabedoria, amor e
trabalho unidos em uma preocupação com a posteridade na tentativa de equipar os
mais jovens para levar adiante as tarefas dos mais velhos.
Hoje toda a indústria da informação e entretenimento faz o caminho
inverso: não apenas o envelhecimento é negado por todo um aparato terapêutico
renovado a cada dia pela indústria farmacêutica como a própria função de “elo
geracional” é esquecida: eles nada têm a dizer para as câmeras, a não ser negar
a si mesmos numa tentativa a todo custo de aparentar uma atitude positiva e
ficar parecidos com os mais jovens.
Imagine então, caro leitor, em uma sociedade em que os adultos
tentam cada vez mais aparentarem serem menos adultos, crianças e jovens olhando
para o mundo que ainda é de adultos, cada vez mais caótico, imprevisível e violento?
Com atiradores surgindo do nada em lugares de e entretenimento e cultura.
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Pois o filme A Hora do Mal (Weapons, 2025)
transforma essa perplexidade jovem diante do caos do mundo adulto, para onde
irão um dia, em uma história de terror.
Não é muito difícil ver no incidente que inicia o filme uma
alegoria dos recorrentes tiroteios escolares nos EUA: quase uma sala de aula
inteira da terceira série em uma pequena cidade desapareceu, com 17 crianças
saindo silenciosamente de suas casas às 2h17 da manhã. Com exceção de Alex, cuja
professora, no dia seguinte, atônita vê a sua sala de aula vazia e o menino,
solitário, sentado em uma carteira esperando a aula iniciar como se nada estivesse
acontecendo.
"Uma noite, 17 pais colocaram seus filhos para dormir pela
última vez" poderia ser a primeira linha de um artigo sobre um desses
eventos trágicos em escolas americanas.
O filme é dirigido Zach Gregger, um autor que vem se notabilizando
pela substituição da matriz edipina tradicional do terror (dramas envolvendo
culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado, sadomasoquismo e todas as
mazelas psíquicas da ordem familiar patriarcal) pelo terror de gênero e o “woke
explotaition”.
Como no filme anterior Noites Brutais (Barbarian,
2022), mesclando com alegorias de Detroit desindustrializada com a globalização
e a nossa confiança cega em plataformas digitais como Airbnb ou Uber – a precarização
do turismo – clique aqui.
Em A Hora do Mal, Gregger trabalha com uma outra alegoria:
a perda do elo geracional onde uma criança percebe que a salvação definitiva do
mal não vem mais dos adultos. Basicamente, Gregger está dizendo para as
crianças: "Os adultos não vão salvar vocês, mas vocês podem salvar uns aos
outros".
Sem explicações e sem pistas, os adultos da cidade estão à flor da
pele – a polícia impotente, a escola com um paralisante olhar politicamente
correto da direção escolar incapaz de conceber o Mal. E a resposta arcaica das
comunidades frentes ao Mal: encontrar um bode expiatório para tentar espiar ou
purificar o Mal de uma sociedade – caça as bruxas foi um desses exemplos ao
longo da História.
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A Hora do Mal tem uma
estrutura de roteiro instigante, situada em algum lugar entre Stephen King e os
Irmãos Grimm, e a construção cuidadosa e lenta de Cregger nos mantém cativados
na maior parte do tempo, ansiosos para ver como as peças do quebra-cabeça se
encaixam.
Esse é o ponto forte do filme: a recusa de conectar todos os
pontos, privilegiando uma narrativa episódica, esperando que o espectador
conecte por si só todos os pontos. Antes do sangrento final no melhor estilo
gore.
O Filme
Se no filme anterior Noites Brutais, Zach Gregger inicia o
filme de uma prosaica situação burocrática (uma reserva Airbnb duplificada), em
A Hora do Mal começa também de uma situação ao mesmo tempo simples e arrepiante:
17 crianças saíram da cama às 2h17 da manhã e correram noite adentro para
desparecerem, com os braços ligeiramente estendidos, como crianças brincando de
"Avião".
Imagens arrepiantes foram registradas por câmeras de segurança de
diversas casas. Um incidente inexplicável, que destrói lentamente uma pequena
cidade, revelando a raiva e o horror por trás linda cercas de madeira e
calçadas gramadas.
A ótima Julia Garner interpreta
Justine Gandy, a professora que chega à escola na manhã seguinte e encontra
toda a turma ausente. Bem, não completamente. Uma criança, um garoto quieto
chamado Alex (Cary Christopher), não saiu de casa naquela noite fatídica. Por
quê? O que o torna especial?
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Em vez de seguir esse caminho investigativo até o fim, a cidade opta
por direcionar seu ódio contra própria professora Gandy, rotulando-a de bruxa.
Ela deve ter feito alguma coisa. Ou deve saber de alguma coisa. Como não
poderia? É a primeira resposta irracional dos adultos: procurar desesperadamente
um bode expiatório para espiar o horror e o mal-estar de toda uma comunidade.
Cregger divide sua história em episódios guiados pelos personagens,
começando com Justine e Archer, mas gradualmente crescendo para incluir muitos
outros na cidade, nos dando um pouco de informação de cada vez e frequentemente
apresentando os mesmos eventos de diferentes pontos de vista.
Então, depois de aprender sobre a existência traumática de
Justine, que dá o tom para o filme com uma atuação excelente e espinhosa do
vencedor do Emmy por Ozark, voltamos no tempo para aprender mais sobre
Archer Graff (Josh Brolin), o pai devastado de uma das crianças desaparecidas.
Alguns dos eventos da história de Justine convergem com a de Archer,
permitindo-nos vê-los sob uma luz diferente.
É um filme movido por narrativas concorrentes e segredos ocultos.
É um filme sobre o que está no porão do seu vizinho ou algo mortal no bolso de
um criminoso, algo esperando para saltar e machucá-lo.
Depois do professor aterrorizado e do pai desamparado, a narrativa
gira para preencher o arco dos eventos com um policial chamado Paul (Alden
Ehrenreich), um viciado chamado James (Austin Abrams) e um diretor de escola
chamado Marcus (Benedict Wong).
Cregger opta por uma abordagem semelhante à do filme Pulp
Fiction para manter o público em alerta, reinterpretando informações de
segmentos anteriores à medida que vemos diferentes pontos de vista.
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O que percebemos nessa narrativa episódica é como as instituições
são totalmente incapazes de, sequer, conceber o Mal. O diretor politicamente
correto da escola, Marcus, está mais preocupado em gerir as relações pessoais “desconfortáveis”
que o evento misterioso acabou criando na comunidade escolar do que pensar
sobre o próprio destino das crianças; enquanto isso, a polícia está impotente,
mais preocupada em manter a ordem do que solucionar o enigma.
O Mal e a sopa Campbell´s – alerta de Spoilers à frente
Restando ao pequeno Alex, no último episódio, o único “sobrevivente”,
a encarar de frente o Mal. Aliás, desencadeado por um outro adulto: a visitante
tia Gladys, a verdadeira bruxa, que sequetra seus pais e as crianças em estado
de transe – forçando Alex a alimentá-los com latas de sopa Campbell´s.
Aqui há um autêntico “Easter Egg” do diretor. Se o desaparecimento
em série de uma sala de aula inteira, e o trauma coletivo decorrente, é uma
alegoria do trauma social americano dos recorrentes tiroteios em escolas e
cinemas, o destaque dado pelos closes nas clássicas latas de sopa Campbell´s é
a referência Pop Art – tiroteios em escolas e cinemas se tornaram iconicamente
tão midiáticos que o Mal só pode querer alimentar seus prisioneiros com essa
icônica sopa, símbolo da Pop Art de Andy Warhol.
Outro detalhe é a representação do Mal no filme, na estranha Tia
Gladys – que, como sempre, só pode se manifestar quando convidada a entrar. E como se manifesta? Transformando pessoas em
transe em verdadeiras armas (daí o título original), reforçando a alegoria
central do filme.
Para o ponto de vista do pequeno Alex, o mundo adulto é um
aterrorizante caos. Adultos são incapazes de salvar as crianças. São loucos,
instáveis, imaturos... e alguns maus.
Portanto, para o diretor Zach Gregger, é melhor tirar os adultos
da sala. Porque serão as crianças que salvarão o dia.
Ficha Técnica |
Título: A Hora
do Mal |
Diretor: Zach
Gregger |
Roteiro: Zach Gregger |
Elenco: Julia Garner, Josh Brolin,
Alden Enrenreich, Cary Christopher |
Produção: New Line Cinema,
Domain Entertainment |
Distribuição: Warner Bros
Entertainment |
Ano: 2025 |
País: EUA |