quinta-feira, junho 26, 2025

Os zumbis da Sociedade do Cansaço no filme 'Extermínio: A Evolução'



Dentro da Cineteratologia (o estudo das representações da monstruosidade e do mal no cinema e audiovisual) os zumbis têm uma posição de destaque: como as mudanças na sua caracterização ao longo tempo espelham as mudanças culturais e do imaginário da própria sociedade – das sociedades escravocratas e racistas, passando pelo pânico do terrorismo viral da virada do milênio, para a “sociedade do cansaço” (Byung-Chul Han) do século XXI. O filme “Extermínio: A Evolução” (28 Years Later, 2025), de Danny Boyle e Alex Garland (fechamento da trilogia “Extermínio” iniciada em 2002), além de fazer uma evidente alusão ao Brexit e o pânico da COVID-19, revela como o zeitgeist da sociedade do cansaço chega aos zumbis: “infecção” não seria o termo certo: os zumbis têm surtos híbridos de superexcitação, pânico e agressividade. Zumbis bipolares que espelham uma sociedade atual hiperativa e submetida à descarga sensorial, cansaço e depressão. Um vírus devastou o Reino Unido, tornando a ilha isolada da Europa continental e posta em quarentena forçada. Os sobreviventes eventuais têm que se virar sozinhos. Mas os zumbis parecem que estão evoluindo. Assim como os humanos. Por meio da hipernormalização.

Estudar a história das diversas representações dos zumbis no cinema, significa estudar as próprias transformações das sensibilidades sociais – as transformações culturais ou imaginárias. Essa é uma das ocupações da Cineteratologia – os estudos das representações da monstruosidade e do mal no cinema e audiovisual.

Nas suas origens as lendas sobre zumbis foram criadas em culturas marcadas pela escravidão e colonialismo no Caribe - associadas à prática do vodu no Haiti onde toda uma tradição oral narra acontecimentos sobre pessoas que teriam sido trazidas de volta do mundo dos mortos como horríveis sombras de si mesmos. Muitas vezes esses zumbis estariam sob controle de um mestre, tornando-se autômatos sem vontade ou pensamento.

     Esse mito afro-caribenho surgido na época da escravidão começa na década de 1920 a se infiltrar lentamente nos EUA, na literatura pulp fiction através de autores como H.P. Lovercraft. 

No cinema a estreia é em 1932 com o filme “White Zombie” estrelado por Bela Lugosi sobre um colonialista branco no Haiti cuja usina de açúcar é operada por escravos zumbis. Esse foi o primeiro zumbi da história do cinema, totalmente relacionado com as origens na escravidão: os zumbis são escravos negros controlados por poderosos fazendeiros brancos.

     Esse mesmo plot associando zumbis e escravidão encontramos em “I Walked With a Zombie” (1943), “Revolt of Zombies” (1936) e “King of Zombies” (1941).

     Na década de 1960 com o revolucionário “The Night of Living Dead” de George Romero tudo mudou: nesse filme é um protagonista negro tem que lidar com uma horda de zumbis brancos.



A partir da segunda metade da década de 1980, os zumbis passam a ser associados a doenças epidêmicas, controle sanitário ou de intervenção sanitária militar – quarentenas, isolamentos etc. Coincidindo com a ascensão da epidemia da AIDS, recessões sistêmicas globais e a ameaça do terrorismo internacional – um inimigo invisível e inesperado. O zumbi assume, por isso, a forma de ameaça viral, epidêmica, com propagação exponencial e incontrolável. 

Já no século XXI, lentamente começa a mudar a representação dos mortos-vivos: de lentos e se arrastando com pedaços de carne que se desprendem, eles se tornam cada vez mais rápidos, raivosos, descontrolados, mas com uma inesperada capacidade de organização e até liderança.

Certamente o ápice, a representação mais acabada dessa mudança, é o filme Extermínio: A Evolução (28 Years Later, 2025), em que o diretor Danny Boyle e o supercérebro da ficção especulativa Alex Garland retomam sua saga de terror distópico de 2002 Extermínio (28 Days Later) – no qual em menos de quatro semanas Londres, uma das cidades mais movimentadas e avançadas do mundo, transforma-se em uma cidade fantasma inóspita após um surto do vírus ultracontagioso atingir a população humana.

Um filme cujos catalisadores explícitos são o isolamento autoimposto à ilha britânica pelo Brexit e a pandemia global da COVID-19. Enquanto o filme original explorava o medo coletivo da sociedade de infecção, sua continuação, décadas depois se concentra em duas ansiedades ainda mais primitivas: o medo da morte e o medo do outro. 



Só que agora não estamos mais na sociedade da infecção da virada do milênio. Mas na sociedade do cansaço, como diagnosticou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Em Extermínio: A Evolução os zumbis também foram seres humanos infectados pelo vírus da Raiva. Porém, o sintoma dessa infecção é um surto híbrido de raiva e pânico, tornando-se monstros hiperativos carnívoros que comem carne humana para depois vomitarem. Parecem estar mais desorientados do que centrados em se reconstituir pela fome de carne humana, como no clássico filme zumbi.

E eventualmente se organizam numa horda comandada por uma espécie de zumbi Alfa, fisicamente mais forte e resistente e inteligente o suficiente para criar estratégias.

Para Byung-Chul Han, cada época é marcada por uma enfermidade fundamental. O século XX foi uma época imunológica, na qual as crises bacteriológicas e virais criaram o paradigma do inimigo externo da Guerra Fria – tal qual um sistema imunológico, a sociedade deveria se proteger da alteridade, do inimigo externo, do comunismo da Guerra Fria etc. 

Ao contrário, o século XXI é marcado pela enfermidade neurológica: a depressão, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout. Para o filósofo, não são mais infecções, mas enfartos determinados não pela alteridade, a negatividade. Mas pelo excesso de positividade – o estranho já foi afastado. Agora, vivemos uma hipernormalização pelo igual. 

Essa continuação que fecha a trilogia Extermínio descreve uma espécie de evolução da hipernormalização que está em desenvolvimento em ambos os lados: os sadios e os infectados. De um lado, os sobreviventes em uma nova comunidade isolacionista fortificada no Norte da Escócia com suas iconografias religiosas e festas embriagadas com posteres da rainha tentando manter uma normalidade que não mais existe; do outro, o continente dominado por zumbis nus e inquietos de onde se destaca um deles alto e corpulento, o líder Alfa – parecem estar a evoluindo a formas inesperadas de organização.

Estes nova espécie de zumbi não são mais o outro, o estranho. Foram incorporados numa hipernormalidade como um conto do Mágico de Oz retorcido – fazem parte de um ritual de amadurecimento para jovens iniciantes exercitarem com seus arco e flechas sua capacidade de matar sem dó.

Enquanto os mortos vivos parecem superexcitados e em descarga sensorial. Curiosa a essa nova representação do zumbi. Corresponde à sociedade atual marcada pelo excesso de positividade, de excesso sensorial e de demandas. Que acaba nos tornando seres cansados e irritados.

Teoricamente um filme de zumbis, até que deixam de ser: evoluíram para ficarem parecidos conosco.


O Filme

Extermínio: A Evolução começa com um grupo de crianças nas Terras Altas da Escócia, durante os primeiros dias de um vírus que transformou muitos em monstros carnívoros, assistindo a um episódio dos “Teletubbies”. Sua paz momentânea é interrompida quando uma horda de zumbis furiosos irrompendo pelas portas e janelas de suas casas. Enquanto muitos são massacrados, uma criança escapa. Ela corre para seu pai, um padre orando em uma igreja que interpreta essa onda de destruição como a concretização de uma profecia bíblica. Enquanto o pai é massacrado pela horda, o filho escapará. Seu destino não será revelado até a última cena do filme.

O filme também abre com uma narração que nos explica que o vírus da Raiva devastou o Reino Unido, tornando-o isolado da Europa continental e posta em quarentena forçada para tentar debelar o vírus. Os sobreviventes eventuais teriam que se virar sozinhos – a referência ao isolacionismo da ilha britânica com o Brexit é evidente.

Depois o filme nos transporta para 28 anos depois, em um vilarejo localizado em uma ilha cuja maré quando sobe impede o único acesso terrestre.

Em vez de nos levar de volta a Londres, onde a ação dos dois primeiros filmes da trilogia se passa, os cineastas decidem nos levar a uma ilha de Northumberland chamada Ilha Sagrada para nos mostrar como um povo em quarentena criou comunidade isolacionista. Aqui, nos fixamos em um outro garoto, Spike (Alfie Williams), de 12 anos, que se prepara para sua primeira caçada com seu robusto pai Jamie (Aaron Taylor-Johnson). A caçada é um ritual que os meninos realizam aos 14 ou 15 anos. 

Isla (Jamie Comer), a esposa de Jamie, está acamada com febre e alucinações – suspeita-se que ela possa ser vítima de uma nova cepa do vírus da raiva. Ela é contra o filho ser submetido tão jovem ao primeiro enfrentamento contra os zumbis na floresta.

Pulsante e apavorante, a jornada de Spike e Jamie pela floresta revela alguns detalhes importantes sobre a construção desse novo mundo. Agora existem vários tipos de zumbis: alguns são criaturas obesas e lentas que rastejam pelo chão, enquanto outros são do tipo nu e inquieto, correndo num misto de pânico e agressividade.



Mas há um que se destaca de todos eles, um gigante alto e corpulento que Jamie chama de Alfa, que não só possui superforça e velocidade, mas também é muito mais inteligente do que seus colegas mortos-vivos. O Alfa interrompe a primeira caçada de Spike, fazendo com que pai e filho se abriguem em uma casa em ruínas. De lá Spike avista um incêndio aparentemente inexplicável à distância, operado pelo médico supostamente louco, Ian Kelson (Ralph Fiennes) – ele tem o costume de enfileirar cadáveres para cremá-los em um forno.

Embora a dupla eventualmente retorne à vila, Spike descobre um segredo sobre seu pai que o faz desconfiar dele e fugir de volta para o continente com sua mãe doente na esperança de que o Dr. Kelson possa encontrar uma cura.

Spike e sua mãe encontram viajantes estranhos pelos campos e vales, desejando serem curados por essa entidade mítica. Até encontrarão uma bizarra zumbi grávida em trabalho de parto, entre o pânico da própria dor incompreensível e agressividade desafiadora com que olha para a mãe de Spike, que tenta ajudá-la. Parindo um bebê surpreendentemente saudável. “Os milagres da placenta”, comenta o Dr. Kelson sobre a imunidade do bebê.

Memento Mori

O personagem do Dr. Kelson (com o corpo seminu impregnado em iodo – para fins assépticos) funciona como a persona do General Kurtz no filme Apocalipse Now: a racionalidade militar que capitula com um general que enlouqueceu em plena selva em meio à Guerra do Vietnã.



Apenas que em Extermínio, Dr. Kelson aparentemente enlouqueceu: ele empilha crânios em torres de ossos formando uma espécie de “Templo dos Ossos” ou santuário “Memento Mori” para os falecidos naquele mundo distópico.

Assim como na filosofia estoica de Sêneca e Marco Aurélio, um lembrete sobre a brevidade da vida (“lembre-se de que você vai morrer”) e, por isso, a importância de viver com virtude e sabedoria. Exatamente as qualidades que faltam para aquele mundo.

Dr. Kelson é a expressão da racionalidade iluminista derrotada pela “evolução” (“devolução” ou “involução” seriam as palavras certas): ele não pode encontrar a cura, nem para Isla e nem mais para ninguém.

Porém, o curioso nesse filme é a confirmação da representação dos zumbis no século XXI, consonante com o zeitgeist da Sociedade do Cansaço: os mortos-vivos deixam de ser representados como seres que estão se desfazendo, arrastando-se por um mundo cujos vivos começam a vê-los como alvos ambulantes para entretenimento.

Pelo contrário, na trilogia Extermínio eles estão superagitados, onde “infecção” não seja o termo certo para essa pandemia. Mas “surto” ou “enfarto”.

Confirmando a tese de que as diferentes representações dos zumbis na história do cinema e audiovisual espelham as transformações culturais e psíquicas da própria sociedade.


 

Ficha Técnica

Título:  Extermínio: A Evolução

Diretor: Danny Boyle

Roteiro: Alex Garland

Elenco: Jodie Comer, Alfie Williams, Aaron Taylor-Johnson, Ralphie Fiennes

Produção: DNA Films

Distribuição: Sony Pictures Releasing

Ano: 2025

País: Reino Unido



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