Dentro da Cineteratologia (o estudo das representações da monstruosidade e do mal no cinema e audiovisual) os zumbis têm uma posição de destaque: como as mudanças na sua caracterização ao longo tempo espelham as mudanças culturais e do imaginário da própria sociedade – das sociedades escravocratas e racistas, passando pelo pânico do terrorismo viral da virada do milênio, para a “sociedade do cansaço” (Byung-Chul Han) do século XXI. O filme “Extermínio: A Evolução” (28 Years Later, 2025), de Danny Boyle e Alex Garland (fechamento da trilogia “Extermínio” iniciada em 2002), além de fazer uma evidente alusão ao Brexit e o pânico da COVID-19, revela como o zeitgeist da sociedade do cansaço chega aos zumbis: “infecção” não seria o termo certo: os zumbis têm surtos híbridos de superexcitação, pânico e agressividade. Zumbis bipolares que espelham uma sociedade atual hiperativa e submetida à descarga sensorial, cansaço e depressão. Um vírus devastou o Reino Unido, tornando a ilha isolada da Europa continental e posta em quarentena forçada. Os sobreviventes eventuais têm que se virar sozinhos. Mas os zumbis parecem que estão evoluindo. Assim como os humanos. Por meio da hipernormalização.
Estudar a história das diversas representações dos zumbis no
cinema, significa estudar as próprias transformações das sensibilidades sociais
– as transformações culturais ou imaginárias. Essa é uma das ocupações da Cineteratologia
– os estudos das representações da monstruosidade e do mal no cinema e
audiovisual.
Nas suas origens as lendas sobre zumbis foram criadas em culturas
marcadas pela escravidão e colonialismo no Caribe - associadas à prática do
vodu no Haiti onde toda uma tradição oral narra acontecimentos sobre pessoas
que teriam sido trazidas de volta do mundo dos mortos como horríveis sombras de
si mesmos. Muitas vezes esses zumbis estariam sob controle de um mestre, tornando-se
autômatos sem vontade ou pensamento.
Esse mito afro-caribenho surgido na época da
escravidão começa na década de 1920 a se infiltrar lentamente nos EUA, na
literatura pulp fiction através de autores como H.P.
Lovercraft.
No cinema a estreia é em 1932 com o filme “White Zombie” estrelado
por Bela Lugosi sobre um colonialista branco no Haiti cuja usina de açúcar é
operada por escravos zumbis. Esse foi o primeiro zumbi da história do cinema,
totalmente relacionado com as origens na escravidão: os zumbis são escravos
negros controlados por poderosos fazendeiros brancos.
Esse mesmo plot associando zumbis e escravidão
encontramos em “I Walked With a Zombie” (1943), “Revolt of Zombies” (1936) e
“King of Zombies” (1941).
Na década de 1960 com o revolucionário “The
Night of Living Dead” de George Romero tudo mudou: nesse filme é um
protagonista negro tem que lidar com uma horda de zumbis brancos.
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A partir da segunda metade da década de 1980, os zumbis passam a
ser associados a doenças epidêmicas, controle sanitário ou de intervenção
sanitária militar – quarentenas, isolamentos etc. Coincidindo com a ascensão da
epidemia da AIDS, recessões sistêmicas globais e a ameaça do terrorismo
internacional – um inimigo invisível e inesperado. O zumbi assume, por isso, a
forma de ameaça viral, epidêmica, com propagação exponencial e
incontrolável.
Já no século XXI, lentamente começa a mudar a representação dos
mortos-vivos: de lentos e se arrastando com pedaços de carne que se desprendem,
eles se tornam cada vez mais rápidos, raivosos, descontrolados, mas com uma
inesperada capacidade de organização e até liderança.
Certamente o ápice, a representação mais acabada dessa mudança, é
o filme Extermínio: A Evolução (28 Years Later, 2025), em que o
diretor Danny Boyle e o supercérebro da ficção especulativa Alex Garland
retomam sua saga de terror distópico de 2002 Extermínio (28 Days Later)
– no qual em menos de quatro semanas Londres, uma das cidades mais movimentadas
e avançadas do mundo, transforma-se em uma cidade fantasma inóspita após um
surto do vírus ultracontagioso atingir a população humana.
Um filme cujos catalisadores explícitos são o isolamento
autoimposto à ilha britânica pelo Brexit e a pandemia global da COVID-19. Enquanto
o filme original explorava o medo coletivo da sociedade de infecção, sua
continuação, décadas depois se concentra em duas ansiedades ainda mais
primitivas: o medo da morte e o medo do outro.
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Só que agora não estamos mais na sociedade da infecção da virada
do milênio. Mas na sociedade do cansaço, como diagnosticou o filósofo
sul-coreano Byung-Chul Han. Em Extermínio: A Evolução os zumbis também foram
seres humanos infectados pelo vírus da Raiva. Porém, o sintoma dessa infecção é
um surto híbrido de raiva e pânico, tornando-se monstros hiperativos carnívoros
que comem carne humana para depois vomitarem. Parecem estar mais desorientados
do que centrados em se reconstituir pela fome de carne humana, como no clássico
filme zumbi.
E eventualmente se organizam numa horda comandada por uma espécie
de zumbi Alfa, fisicamente mais forte e resistente e inteligente o suficiente
para criar estratégias.
Para Byung-Chul Han, cada época é marcada por uma enfermidade
fundamental. O século XX foi uma época imunológica, na qual as crises
bacteriológicas e virais criaram o paradigma do inimigo externo da Guerra Fria
– tal qual um sistema imunológico, a sociedade deveria se proteger da
alteridade, do inimigo externo, do comunismo da Guerra Fria etc.
Ao contrário, o século XXI é marcado pela enfermidade neurológica:
a depressão, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de
personalidade limítrofe, síndrome de Burnout. Para o filósofo, não são mais
infecções, mas enfartos determinados não pela alteridade, a negatividade. Mas
pelo excesso de positividade – o estranho já foi afastado. Agora, vivemos uma
hipernormalização pelo igual.
Essa continuação que fecha a trilogia Extermínio descreve uma
espécie de evolução da hipernormalização que está em desenvolvimento em ambos
os lados: os sadios e os infectados. De um lado, os sobreviventes em uma nova comunidade
isolacionista fortificada no Norte da Escócia com suas iconografias religiosas
e festas embriagadas com posteres da rainha tentando manter uma normalidade que
não mais existe; do outro, o continente dominado por zumbis nus e inquietos de
onde se destaca um deles alto e corpulento, o líder Alfa – parecem estar a
evoluindo a formas inesperadas de organização.
Estes nova espécie de zumbi não são mais o outro, o estranho.
Foram incorporados numa hipernormalidade como um conto do Mágico de Oz
retorcido – fazem parte de um ritual de amadurecimento para jovens iniciantes
exercitarem com seus arco e flechas sua capacidade de matar sem dó.
Enquanto os mortos vivos parecem superexcitados e em descarga
sensorial. Curiosa a essa nova representação do zumbi. Corresponde à sociedade
atual marcada pelo excesso de positividade, de excesso sensorial e de demandas.
Que acaba nos tornando seres cansados e irritados.
Teoricamente um filme de zumbis, até que deixam de ser: evoluíram para
ficarem parecidos conosco.
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O Filme
Extermínio: A Evolução começa com
um grupo de crianças nas Terras Altas da Escócia, durante os primeiros dias de
um vírus que transformou muitos em monstros carnívoros, assistindo a um
episódio dos “Teletubbies”. Sua paz momentânea é interrompida quando uma horda
de zumbis furiosos irrompendo pelas portas e janelas de suas casas. Enquanto
muitos são massacrados, uma criança escapa. Ela corre para seu pai, um padre
orando em uma igreja que interpreta essa onda de destruição como a
concretização de uma profecia bíblica. Enquanto o pai é massacrado pela horda,
o filho escapará. Seu destino não será revelado até a última cena do filme.
O filme também abre com uma narração que nos explica que o vírus
da Raiva devastou o Reino Unido, tornando-o isolado da Europa continental e posta
em quarentena forçada para tentar debelar o vírus. Os sobreviventes eventuais
teriam que se virar sozinhos – a referência ao isolacionismo da ilha britânica
com o Brexit é evidente.
Depois o filme nos transporta para 28 anos depois, em um vilarejo
localizado em uma ilha cuja maré quando sobe impede o único acesso terrestre.
Em vez de nos levar de volta a Londres, onde a ação dos dois
primeiros filmes da trilogia se passa, os cineastas decidem nos levar a uma
ilha de Northumberland chamada Ilha Sagrada para nos mostrar como um povo em
quarentena criou comunidade isolacionista. Aqui, nos fixamos em um outro garoto,
Spike (Alfie Williams), de 12 anos, que se prepara para sua primeira caçada com
seu robusto pai Jamie (Aaron Taylor-Johnson). A caçada é um ritual que os
meninos realizam aos 14 ou 15 anos.
Isla (Jamie Comer), a esposa de Jamie, está acamada com febre e
alucinações – suspeita-se que ela possa ser vítima de uma nova cepa do vírus da
raiva. Ela é contra o filho ser submetido tão jovem ao primeiro enfrentamento
contra os zumbis na floresta.
Pulsante e apavorante, a jornada de Spike e Jamie pela floresta
revela alguns detalhes importantes sobre a construção desse novo mundo. Agora
existem vários tipos de zumbis: alguns são criaturas obesas e lentas que
rastejam pelo chão, enquanto outros são do tipo nu e inquieto, correndo num
misto de pânico e agressividade.
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Mas há um que se destaca de todos eles, um gigante alto e
corpulento que Jamie chama de Alfa, que não só possui superforça e velocidade,
mas também é muito mais inteligente do que seus colegas mortos-vivos. O Alfa
interrompe a primeira caçada de Spike, fazendo com que pai e filho se abriguem
em uma casa em ruínas. De lá Spike avista um incêndio aparentemente
inexplicável à distância, operado pelo médico supostamente louco, Ian Kelson
(Ralph Fiennes) – ele tem o costume de enfileirar cadáveres para cremá-los em
um forno.
Embora a dupla eventualmente retorne à vila, Spike descobre um
segredo sobre seu pai que o faz desconfiar dele e fugir de volta para o
continente com sua mãe doente na esperança de que o Dr. Kelson possa encontrar
uma cura.
Spike e sua mãe encontram viajantes estranhos pelos campos e
vales, desejando serem curados por essa entidade mítica. Até encontrarão
uma bizarra zumbi grávida em trabalho de parto, entre o pânico da própria dor
incompreensível e agressividade desafiadora com que olha para a mãe de Spike,
que tenta ajudá-la. Parindo um bebê surpreendentemente saudável. “Os milagres
da placenta”, comenta o Dr. Kelson sobre a imunidade do bebê.
Memento Mori
O personagem do Dr. Kelson (com o corpo seminu impregnado em iodo –
para fins assépticos) funciona como a persona do General Kurtz no filme Apocalipse
Now: a racionalidade militar que capitula com um general que enlouqueceu em
plena selva em meio à Guerra do Vietnã.
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Apenas que em Extermínio, Dr. Kelson aparentemente enlouqueceu: ele
empilha crânios em torres de ossos formando uma espécie de “Templo dos Ossos”
ou santuário “Memento Mori” para os falecidos naquele mundo distópico.
Assim como na filosofia estoica de Sêneca e Marco Aurélio, um lembrete
sobre a brevidade da vida (“lembre-se de que você vai morrer”) e, por isso, a
importância de viver com virtude e sabedoria. Exatamente as qualidades que
faltam para aquele mundo.
Dr. Kelson é a expressão da racionalidade iluminista derrotada
pela “evolução” (“devolução” ou “involução” seriam as palavras certas): ele não
pode encontrar a cura, nem para Isla e nem mais para ninguém.
Porém, o curioso nesse filme é a confirmação da representação dos
zumbis no século XXI, consonante com o zeitgeist da Sociedade do
Cansaço: os mortos-vivos deixam de ser representados como seres que estão se
desfazendo, arrastando-se por um mundo cujos vivos começam a vê-los como alvos
ambulantes para entretenimento.
Pelo contrário, na trilogia Extermínio eles estão
superagitados, onde “infecção” não seja o termo certo para essa pandemia. Mas “surto”
ou “enfarto”.
Confirmando a tese de que as diferentes representações dos zumbis
na história do cinema e audiovisual espelham as transformações culturais e
psíquicas da própria sociedade.
Ficha Técnica |
Título: Extermínio:
A Evolução |
Diretor: Danny Boyle |
Roteiro: Alex Garland |
Elenco: Jodie Comer, Alfie Williams,
Aaron Taylor-Johnson, Ralphie Fiennes |
Produção: DNA Films |
Distribuição: Sony Pictures Releasing |
Ano: 2025 |
País: Reino Unido |
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