Sintoma
do apartheid social? Flash mob da periferia? Movimento consciente de protesto?
Movimento político? Luta de classes? Repique das grandes manifestações de
Junho? A maioria das abordagens sobre o fenômeno dos rolezinhos parece se esquecer
de um importante detalhe: são eventos feitos para a mídia, divulgados pela
mídia e repercutidos pela mídia. Antes de ser um sintoma sociológico ou econômico,
é um evento midiatizado. Por isso se aplicaria nessa discussão o clássico enigma
pragmático dos estudos de comunicação: quem comunica o que, para quem e com
qual efeito. Em outras palavras, para além do fenômeno sociológico ou
econômico, há o semiótico cuja análise traz uma importante suspeita, a de que
os rolezinhos teriam se tornando para a grande mídia um autêntico cavalo de
Tróia, uma nova modalidade de bomba semiótica na atual guerrilha linguística
que se trava no contínuo midiático pela conquista da opinião pública.
Certa vez o professor de
filosofia Boris Groys fez em 2001 uma profética advertência às ciências sociais
como a Economia e a Sociologia: “Sem prejuízo do que todas essas
veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não
consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a
sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.” - veja GROYS, Boris. "Deuses Escravizados: a guinada metafísica de Hollywood". Groys
não se referia apenas ao súbito interesse metafísico de Hollywood através de
filmes como Show de Truman ou Matrix. Mais do que isso, lançava uma
suspeita de que Hollywood já expressava o fato de que a própria realidade
estaria se transformando em um filme. E, o que é pior, mal produzido.
Para Groys o “erro
fundamental” seria o fato dessas ciências não perceberem que os seus “objetos”
(o “econômico”, o “sociológico” etc.) estariam sendo assumidos ou simulados em
ambientes altamente midiatizados pelas tecnologias de comunicação e informação.
Em palavras diretas: os fenômenos econômicos e sociológicos seriam antes de
tudo fenômenos midiáticos nas suas diversas modalidades: efeitos virais,
profecias auto-realizáveis, paradoxos quânticos (o olhar tecnológico da mídia
altera o próprio objeto que está sendo observado) etc.
Por isso, os fenômenos e
eventos atuais cada vez mais se tornam uma “segunda natureza”, isto é,
linguagem. Deixam o campo econômico, político ou sociológico para se inserir no
linguístico ou semiótico.
A natureza midiática dos rolezinhos |
Portanto, qualquer fato ou
fenômeno deve ser analisado não somente pela sua área de especialização
científica (sociologia, economia etc.), mas, segundo o método semiótico, deve
ser analisado por três planos ao mesmo tempo distintos e simultâneos: o semântico, o sintático e o pragmático.
Com o fenômeno dos chamados
“rolezinhos” não seria diferente: seja um fenômeno de antropologia urbana
(envolvendo identidade, consumo e discriminação) ou sociológico (o confronto de
uma nova classe média em ascensão entrando em choque com redutos de consumo
tidos como exclusivos da classe média alta), ele possui uma evidente natureza
midiática – ocorre em ambientes altamente midiatizados dos shoppings (câmaras
de segurança, câmaras das próprias vitrines onde o consumidor se vê não mais em
espelhos, mas em telas; grifes, marcas e décor televisivamente familiares),
para repercussão viral por meio das redes sociais e pelas ondas concêntricas
das mídias de massa, o que faz os rolezinhos se retroalimentarem em looping.
Por ser um fenômeno
realizado através das mídias, para as mídias e alimentado pelas mídias, ironicamente
os discursos sociológicos ou antropológicos seriam como que “canibalizados”
pela lógica midiática como fator que gera ambiguidade e polêmica (o que são,
afinal, os rolezinhos?) que, como sabemos, é o fator propulsor para a
disseminação de memes (sobre esse tema clique aqui). Ao tentarem explicar ou dar sentido aos rolezinhos,
esses discursos seriam “devorados” pelo próprio fenômeno midiático, ajudando a
repercutir eventos cuja recorrência nos meios de comunicação possui certamente
um interesse “pragmático”.
Ou seja, essa midiatização
dos rolezinhos transforma-os em mais uma bomba semiótica, mas agora uma bomba
de nova modalidade: um cavalo de Tróia. Para compreendermos os rolezinhos por
esse ponto de vista que vê esse fenômeno como uma nova modalidade de bomba
semiótica, vamos compreendê-los como funcionam por meio da articulação de três
planos semióticos: o plano semântico, o sintático e o pragmático.
Nível semântico: o que significam os rolezinhos?
Fenômeno que rompe o apartheid
social? Flash mob da periferia? Movimento consciente de protesto? Movimento
político? Luta de classes? Estranha pós-modernidade? A esmagadora maioria das
abordagens mobiliza um arsenal de conceitos clássicos das ciências sociais
(Marx, Durkheim, Weber) para entender o que esse fenômeno denota ou conota.
Qual o seu sentido, entender o seu significado profundo para que possamos ver nos
rolezinhos o início de alguma tendência.
Rolezinhos: mobilizações conscientes ou de "conotação política" |
Na massa de análises das
últimas semanas, abriram-se dois caminhos que tentam dar um significado ao
fenômeno: ou há uma consciência nessa mobilização (e, por isso, adquirem o
status de “protestos”) ou então o fenômeno possui uma “conotação política”,
isto é, a cabeça daqueles rapazes com bombetas, bermudas e tênis Mizuno que lotam
os corredores de shopping não tem a menor consciência do significado dos seus
atos, embora em si os eventos tivessem um significado político.
Em síntese, o plano
semântico abre para uma espiral ascendente de interpretações cuja principal
consequência é transpor o fenômeno do campo policial ou das notícias diversas
para as editorias nobres de Política, das colunas de editorialistas até chegar
a artigos de natureza acadêmica.
O nível sintático: arbitrariedade e recorrência nos rolezinhos
Nesse nível encontramos um
padrão, um modus operandi, um código
que parece organizar a transformação do fenômeno em notícia e, depois, em
evento midiático.
Primeiro: a arbitrariedade.
De repente, rolezinho vira um conceito elástico: já existiria desde os anos
1960 nos EUA quando universitários negros vestindo suas melhores roupas entraram
em uma lanchonete reservada a pessoas brancas, sentaram e fizeram seus pedidos
para a perplexidade dos clientes bem nascidos. Estratégia retórica para
atribuir um significado histórico a um fenômeno atual. Dessa forma, os rolezinhos
ganham um status histórico, conquistando a seriedade e o peso de significação
que o nível semântico tanto procura.
Num esforço de pesquisa etnográfica Folha de São Paulo monta o "estilo rolezinho": grande mídia morre de amores por eles |
Com as grandes manifestações
de rua a mesma operação semiótica foi acionada ao aproximar as fotos das
multidões nas ruas de São Paulo com as antigas fotos em preto e branco dos
protestos estudantis de maio de 1968 na França ou os movimentos de resistência
de rua ao golpe militar brasileiro de 1964.
Outra questão seria o timing
do evento: por que só agora ganhou a atenção midiática e transformou-se em
notícia? “Bandos”, “ameaças de arrastão” ou “grupos exaltados” assombram
espaços de consumo como em janeiro de 2013 no Itaú Power Shopping em
Contagem/MG, em 2012 no mesmo local em um show do funkeiro Mr. Catra ou em
agosto do ano passado no Shopping Estação em BH com encontro de mil pessoas que
supostamente teriam combinado pelo Facebook. Eventos como esses ocupavam
espaços nas mídias em editorias menos nobres, já que as principais se ocupavam
com as grandes manifestações de rua.
Outro elemento é a
recorrência: de evento localizado em São Paulo, ganhou status nacional e foi promovido
a “protesto”. No espaço de uma semana, ganha status de preocupação em reunião
ministerial da presidenta Dilma como noticiado em primeira página do jornal Folha de São Paulo. O jornal ofereceu a
tentadora imagem de um governo sitiado por movimentos de protestos pipocando
por todos os lados...
Outro exemplo de recorrência
que evidencia a existência de uma sintaxe é a personalização de um evento
coletivo. Manifestações com as de rua no ano passado ou os rolezinhos atuais
são eventos coletivos. A mídia sabe que, retoricamente, falar em milhares,
centenas ou dezenas de participantes tem pouco impacto. Mas se o evento é
personalizado e ganha uma cara, tudo muda: assim como a personagem “Dani
Pantera” virou a musa dos black blocs para a revista Veja, da mesma forma o jornal Folha
de São Paulo, repercutido pelo programa Fantástico
da TV Globo, elege os “famosinhos” dos rolezinhos (jovens da periferia que
ganharam notoriedade nas redes sociais por postar vídeos e fotos do interior do
“movimento”) e que, de uma hora para outra, foram elevados ao status de trendsetters por analistas à procura da
semântica do fenômeno.
Nível Pragmático: o cavalo de troia
Esse nível mostra qual a
relação que as pessoas criam em relação aos signos e discursos. Como na prática
os usuários dos signos se valem deles. O que se quer alcançar com aquilo que
sendo dito? Qual a intenção?
A bomba semiótica cavalo de tróia: efeitos virais e profecias auto-realizáveis |
Aqui vale o clássico enigma
proposto por Paul Lazarsfeld para os estudos de comunicação: quem fala o que,
para quem e com qual efeito? O nível pragmático quase sempre inverte o que se
sinaliza no nível semântico como no exemplo do semáforo: se no plano semântico
a cor amarela sinaliza “devagar e atenção”, no plano pragmático torna-se para o
motorista “acelera que ainda dá tempo”.
Essa mesma fórmula parece
ser aplicada ao fenômeno dos rolezinhos: se no plano semântico as análises
atribuem ao fenômeno um status de sintoma da injustiça, apartheid racial e
cultural e outras formas de expressões que comunicariam contestação e protesto,
no plano pragmático a grande mídia (“quem fala”) resignifica como “repique das
grandes manifestações de junho” apostando no efeito da profecia auto-realizável
(“qual efeito”) nas redes sociais (“para quem”) para elevar os rolezinhos ao
nível nacional como parte de um único propósito: demonstrar que esse evento é
mais um exemplo do caos e desordem em que supostamente viveria o País.
Em outras palavras, pela
forma como a grande mídia está noticiando, os rolezinhos se tornaram um
perfeito cavalo de Tróia: insere uma pauta dileta para as esquerdas (luta de
classes, racismo, segregação etc.) para, involuntariamente, auxiliarem na
repercussão na sua incessante busca de um sentido semântico para esses eventos.
Cabe também ressaltar nesse
nível pragmático que a repercussão do fenômeno dos rolezinhos produz dois
efeitos colaterais e oportunos para a grande mídia:
(a) criminalizar as redes
sociais e a Internet (mídias que corroem lentamente a hegemonia simbólica das
mídias de massas). Se ficarmos bem atentos, perceberemos que é comum a pauta
sobre essas novas mídias sempre terem um enfoque criminógeno ou patológico –
problemas cognitivos e educacionais ou crimes cibernéticos, vício, terrorismo, espionagem
ou simplesmente anomia.
(b) Mostrar que a ascensão
social da chamada classe C (efeito sócio-econômico de inclusão das políticas
econômicas de Lula e Dilma) só produz caos e desordem. Por que será que os
rolezinhos ganham mais destaque do que os milhares de jovens que se formam graças
a programas de inclusão no ensino superior como o ProUni?
Portanto, nesse nível
pragmático de análise revela-se uma nova espécie de bomba semiótica: o cavalo
de Tróia – graças à arbitrariedade e recorrência do nível sintático, a grande
mídia cria a pauta perfeita para as esquerdas morderem a isca. Embora as
análises semânticas apontem para um sentido contrário onde a própria grande
mídia é acusada de criminalizar os rolezinhos e manter o apartheid social, isso
apenas converge para o principal objeto pragmático: através da repercussão e
polêmica criar o efeito viral da profecia auto-realizável e tornar ainda mais
pesada a atmosfera política desse ano que, ao que tudo indica, promete não
terminar.