Em
1999 o colunista José Simão bradava em pleno feriado de 7 de setembro: “Inadimplência
ou Morte!”. Mas na época a grande mídia fazia vistas grossas à quebradeira de
consumidores e empresas na ressaca do Plano Real. Ao contrário, hoje uma
suposta onda de inadimplência se converteu numa agenda midiática obsessivamente
repercutida a cada imagem aérea mostrada pela TV da Rua 25 de Março lotada de
consumidores: uma combinação resultante de uma suposta inflação descontrolada,
crédito fácil, juros baixos e falta de educação financeira da população.
Combinado com a pauta do “consumo consciente” e “crédito responsável”, o
discurso da inadimplência acaba de se transformar na mais recente bomba
semiótica. As explosões dessa nova bomba pretendem criar uma percepção de temor
e desconfiança que freie o consumo e favoreça a Banca que organiza o jogo
econômico.
Fazia uma pesquisa no acervo
digital do Jornal Folha de São Paulo para futura postagem (o filme de
Kubrick De Olhos Bem Fechados –
procurava resenhas sobre o filme na época do lançamento em 1999) e, sem querer,
dei de cara com um texto de José Simão intitulado “Inadimplência ou Morte”,
texto do dia 07 de setembro daquele ano, feriado da independência nacional. Em
um texto impagável, Simão declarava-se “deprecívico” e naquele feriado cívico
não haveria parada militar, porque a pátria estava “parada”.
De forma mordaz, José Simão
refletia um momento em que o País estava quebrado, jogado aos pés do Fundo
Monetário Internacional após a maxidesvalorização do real um ano antes, logo
depois da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. A taxa Selic era
elevadíssima, mais de 30% ao ano, e com inflação anual de 8,94%. Na prática, a
desvalorização do real comeu parte da poupança e dos salários.
Os consumidores devem ser salvos deles mesmos |
O reflexo disso era a escalada
da inadimplência dos consumidores e a insolvência de empresas, representada
pela ironia e trocadilhos do texto de José Simão. Curioso é que pesquisando os
veículos de grande imprensa da época, não havia repercussão sobre essa
realidade, a não ser em cadernos e veículos especializados. Muito diferente dos
últimos anos, mais precisamente após a reeleição de Lula em 2006, em que
a grande mídia passou a martelar números de uma suposta inadimplência endêmica
produzida, supõe-se, pela combinação de inflação galopante, crédito fácil, juros
baixos e falta de educação financeira da população.
Fazendo um paralelo entre o
crescimento dos mercados de consumo do início da era do Plano Real a partir de
1997 e o atual crescimento da chamada “nova classe média”, a classe C, é
interessante perceber como a grande mídia encarou de forma diferente essas
realidades muito parecidas.
Nos anos 1990 Carla Perez do
grupo É o Tchan! e Ratinho foram
considerados os símbolos da era FHC, objetos de consumo dos chamados
“novo-ricos da cultura”, os “bregas e bárbaros” que, graças a estabilidade da
moeda após décadas de corrosão inflacionária, entraram no mercado de consumo
através da aquisição de TVs e CDs (veja BARROS E SILVA, Fernando, “Bregas e
bárbaros são os novos-ricos da cultura” In: Folha de São Paulo, 09/08/1998) . Época
da ascensão dos grupos de pagode formados por carecas de terninho, expressando
o gosto cultural de uma nova classe média que ascendia por meio do consumo de
novos bens tecnológicos. Tal como hoje, naquela época ocorria um boom de consumo. A diferença é que naquele momento o crescimento
do consumo era motivado pelos ganhos reais dos salários devido a estabilidade
monetária.
Os Mamonas Assassinas ironizavam os novos egressos ao mercado de
consumo em uma de suas músicas dizendo que “a minha felicidade é um crediário
nas Casas Bahia”. Com estabilização, o crediário é facilitado e torna-se mais
uma mercadoria anunciada nas TVs prometendo igualmente a realização de todos os
sonhos.
Nesse momento em que o
brasileiro repentinamente saia de uma cultura inflacionária (onde não tinha a noção
de quanto realmente ganhava e qual era o valor real dos produtos, sempre à
espera do gatilho salarial do próximo mês que reajustava automaticamente
salários) e entrava em uma economia estabilizada, em nenhum momento a grande
mídia apresentou qualquer preocupação pedagógica ou educativa em relação ao dinheiro
e consumo, tal como faz hoje por meio de ampla agenda. Pelo contrário, é a fase
(curta, é verdade, até o fim do Plano Real em 1998) de apologia ao consumo e
estímulo aos empréstimos como a prova do sucesso e confiança do brasileiro no
Plano Real.
Esse humilde blogueiro
lembra bem desse momento. Toda uma geração, habituada que estava com os hábitos
de consumo de uma recente cultura inflacionária onde salário e preços cresciam
em termos nominais como bola de neve, em pleno Plano Real continuou consumindo
da mesma forma de antes. E o resultado dessa ausência de educação financeira
não poderia ser pior: sem gatilhos salariais, o salário começava a acabar bem antes
do final do mês, criando o efeito vicioso dos empréstimos e cheques pré-datados.
Quem não se lembra dessa época onde esse tipo de cheque virou em dado momento
uma segunda moeda? Muita gente até ganhava uns trocados imprimindo etiquetas “cheque
bom para” feitas em Word ou Corel Draw para serem vendidas a
lojistas, a fim de se ter um controle sobre a avalancha de desses cheques no
comércio.
O humor de José Simão era
uma das poucas vozes na grande mídia que retratava, de uma forma indireta, essa
ressaca da estabilidade monetária.
A construção da agenda da inadimplência
Sabemos que a grande mídia
vem funcionando nos últimos anos como um verdadeiro partido de oposição. Ao
contrário dos partidos políticos oficiais, ela é mais coesa, estruturada e
eficiente. Uma prova disso é a articulação e detonação do que chamamos de
bombas semióticas: conjunto de artefatos de comunicação que sistematicamente
vem sendo detonadas na opinião pública, travestidas de informação através de
mídias impressas, digitais ou audiovisuais, cujo objetivo não é a persuasão ou
convencimento, mas a criação ondas de choque ou disseminação estilhaços de
signos na esfera pública. Bombas cujo alvo não é a razão, mas a emoção.
Nos últimos anos as notícias
sobre o aquecimento econômico e a inclusão de milhões de brasileiros dos
estratos inferiores da sociedade no mercado de consumo, sistematicamente são
acompanhados por notícias sobre o crescimento da inadimplência e o descontrole
dos gastos dos brasileiros que, supostamente pela falta de educação financeira,
comprometeriam a maior parte dos seus rendimentos. Muito diferente do passado,
nos anos subsequente ao lançamento do Plano Real onde o aquecimento do consumo
pelos ganhos reais do salário era bem recebido pela grande mídia.
E não só na grande mídia. O
tema começa, inclusive, a ser tema de papers
acadêmicos especializados que tematizam a expansão do crédito no Brasil versus vulnerabilidade
do consumidor (veja SBICCA, Adriana e outros, “Expansão do crédito no Brasil e a
vulnerabilidade do consumidor” In: Revista
de Economia & Tecnologia, out-dez 2012) ou o apoio de bancos e grandes
empresas a publicações como “diálogos Akatu” (do Instituto Akatu), revista que se define dessa forma: “discussões e
mesas-redondas sobre o equilíbrio financeiro, levando em conta a importância da
educação e do planejamento no combate ao endividamento e à inadimplência” (veja
“Consumo
consciente do dinheiro e do crédito”).
A bomba semiótica da inadimplência
Acompanhando a cobertura
feita pela grande mídia sobre as vendas no comércio no período de festas e,
agora, na época das liquidações, percebe-se um enfoque unificado:
(a) 13o salário veio para pagar dívidas contraídas pelo consumidor ao longo do ano;
(b) Consumidor está cauteloso, preferindo comprar “lembrançinhas” como presentes de Natal;
(c) Números de inadimplência crescem e batem recordes comparando-se com dados de anos anteriores do mesmo período. As notícias sobre a queda de 3,22% da “série histórica” (o termo “histórico” confere um tom de gravidade necessário) nos números da inadimplência são associados aos supostos efeitos benéficos do aumento da taxa Selic que tornaram o crédito mais caro, freando o ímpeto do consumo;(d) Termos como “economia”, “poupança”, “cautela”, “tentação”, “estar consciente”, “pensar duas vezes” etc. tomaram conta das coberturas das vendas natalinas. Mesmo nas vendas de liquidação de ano novo, imagens de lojas lotadas com consumidores carregando aparelhos de TV ou eletrodomésticos são acompanhadas por declarações selecionadas onde pessoas falam que estão “economizando” e não comprando. Pautas sobre consumidores que compram “inutilidades” por impulso ocupam telejornais. Percebe-se que o viés da grande mídia ao consumo é principalmente de ordem mais moral do que econômica/racional.(e) A mobilização da grande mídia para tentar “proteger” o consumidor de si mesmo é tão grande que alguns telejornais escalam “especialistas em finança popular”, como a jornalista Mara Luquet no SPTV da TV Globo que basicamente filtra as notícias mais pessimistas e sombrias dos analistas econômicos para criar um cenário cuja única opção ao espectador é: não compre!
Mara Luquet: educação financeira e o terrorismo da inadimplência |
Essa pauta acaba criando
situações irônicas e até engraçadas como, por exemplo, a dissociação entre
discurso e imagem. Imagens aéreas mostravam a Rua 25 de março e imediações no
centro de São Paulo superlotadas de consumidores carregando sacolas e grandes
embrulhos, enquanto Mara Luquet discorria sobre um trágico cenário de
inadimplência e quedas nas vendas...
Termos como “crédito
consciente”, “consumo responsável” (com suas variantes como “consumo
sustentável”, “ético” ou “consciente”) começam a dominar a grande mídia e o
discurso das grandes instituições financeiras. De repente, 17 anos depois da
estabilização da moeda, descobre-se a necessidade de uma “educação para o
consumo”. Significativamente, esse
discurso é construído quase simultaneamente ao discurso governamental do
aquecimento econômico, queda no desemprego e inclusão da chamada classe C no
mercado de consumo.
A arbitrariedade e
seletividade do momento da construção do discurso da inadimplência (nos anos
1990 esse discurso nem era pleiteado em meio a um crescimento real da
inadimplência) na grande mídia e a sua transformação em agenda na opinião
pública torna-o uma evidente bomba semiótica cuja detonação visa três efeitos
esperados:
(a) forçar o governo a se ajustar a uma agenda econômica neoliberal com o aumento da taxa Selic para beneficiar a Banca;
(b) criar um ambiente de temor e desconfiança do consumidor;
(c) criar uma percepção tão negativa na opinião pública em relação à economia que freie o crescimento do consumo e sabote o discurso do governo federal sobre a inclusão social.
Obviamente, a bomba semiótica
da inadimplência destoa da realidade (por exemplo, pesquisa do SPC realizada em
todas as capitais do País e divulgada em dezembro revelou que as “incertezas”
da economia não abalaram a confiança do consumidor, disposto a gastar mais no
final de ano), mas ela revela outra função a longo prazo: reforçar a agenda da
necessidade de proteger o consumidor de si mesmo e a projeção da imagem do
consumo como algo perigoso – percepção oportuna para a Banca, mais preocupada
com a liquidez da economia do que com o seu “aquecimento”.
Uma operação semiótica arriscada
Campanha "Unibanco: nem parece banco" - as origens da operação semiótica do discurso da inadimplência |
Mas o discurso da
inadimplência esconde uma curiosa operação semiótica: uma estratégia retórica
onde o discurso quer negar a si mesmo. Quando o finado Unibanco lançou a
campanha publicitária cujo slogan era “nem parece banco”, estava lançando as
bases de uma arriscada operação semiótica que, mais tarde, passaria a ser
incorporada pelo próprio discurso da inadimplência: assim como o banco não
parecia querer associar a empresa a algo útil e desejável (o desejável
paradoxalmente seria a negação da sua própria natureza), também o crédito e o
consumo imaginado pelo discurso da inadimplência é paradoxal – algo como “nem
parece consumo” ou “nem parece crédito”.
“Consumo consciente”, “crédito
responsável” e outras contradições em termos transforma todo o sistema
financeiro e da sociedade de consumo em opção moral do indivíduo. Esse discurso
esquizofrênico (consuma, mas não muito; tome crédito, mas com moderação; fume,
mas não trague...) é resolvido magicamente pela palavra “ética”, termo etéreo e
sedutor que resolve uma questão sistêmica da necessidade de integração dos
indivíduos no jogo: se a Banca sempre ganha e seus efeitos injustos são
sentidos por todos, o discurso politicamente correto da ética e responsabilidade
joga, no final, a culpa nas possíveis opções erradas no indivíduo, como, por
exemplo, no caso da suposta falta de educação financeira.
Imerso numa sociedade de
consumo e bombardeado por toda uma parafernália de impulsos subliminares,
palavras mágicas como sustentalibidade, ética e responsabilidade mascaram essa
situação esquizofrênica onde um sistema irracional cobra do indivíduo o oposto:
racionalidade e discernimento.
Por isso, supostamente o
consumidor esquizofrênico deve ser salvo de si mesmo. É a conclusão do discurso
oportunista da inadimplência cujo único beneficiado é a Banca que organiza um
perverso jogo econômico.