terça-feira, janeiro 14, 2014

Por que a mídia está tão obcecada pelos tomates?

Dentre os vários itens que supostamente teriam elevado os índices inflacionários, por que a mídia escolheu como vilão o tomate? Quando tudo perecia ter sido esquecido, eis que portais da Internet no final do ano passado localizaram supostos ataques pontuais em regiões isoladas e, no início desse ano, telejornais reavivam a memória e até, timidamente, tentam um revival dos tomates inflacionários . Por que essa obsessão pelos tomates? Por que não o pão, o leite ou os vestuários? Por trás dessa escolha aparentemente arbitrária e sua recorrência midiática, o tomate revela um antigo simbolismo cultural. Uma área vasta, riquíssima e interdisciplinar, envolvendo antropologia, semiótica da cultura e sincromisticismo. Ou seja, o tomate oferece um material imaginário altamente inflamável. Mais uma bomba semiótica.

Os tomates atacam mais uma vez. Depois do primeiro semestre do ano passado onde o vegetal (ou seria fruto?) ter sido considerado o vilão por puxar os números da inflação para o alto, eis que a grande mídia vem tentando ressuscitá-lo. Em dezembro, portais da Internet como o G1 começaram a noticiar altas de preços localizadas, como em São José do Rio Preto (SP) onde o tomate, acompanhado do pão francês e vestuário, teriam elevado os preços, segundo pesquisas de faculdades locais.

No início desse ano, o Jornal Nacional fez uma breve retrospectiva do “descontrole da inflação” do ano passado, dando um especial destaque ao tomate. Pouco dias depois, no telejornal SPTV, a jornalista Ananda Apple, no quadro Cozinha Popular onde exibe receitas cujos ingredientes são pesquisados em feiras livres procurando os produtos mais em conta, novamente fala do aumento do tomate. Claro, sem a mesma veemência do ano passado, onde até um apresentadora de programa feminino matinal apareceu com um colar de tomates ao lado de um papagaio que lamentava os destinos do bolso dos seres humanos desse País.


Por que essa obsessão da grande mídia pelo tomate? Claro que politicamente sabemos o porquê – criar um clima de beira de abismo econômico na opinião pública. Mas por que o item tomate? Outros itens como leite, pão, vestuário etc. também participavam de um conjunto de produtos que supostamente estariam elevando a inflação para números que estariam extrapolando o teto estipulado pelo ministro da Economia Guido Mantega.

Arbitrariedade e Recorrência no tomate


Há nesse caso dois elementos que caracterizam uma bomba semiótica: significação arbitrária e recorrência. Primeiro, o tomate foi escolhido aparentemente de forma arbitrária como o vilão dentre um conjunto de itens; e segundo, a recorrência, isto é, a insistência como a grande mídia insiste em elevar esse vegetal (ou será fruto?) à condição de símbolo – por exemplo, aquela apresentadora de programa feminino matinal ainda apareceu em agosto com outro colar de tomates, dessa vez para comemorar a baixa do preço do produto...

Desde a teoria da Gestalt (a chamada psicologia da forma), passando pela Teoria da Informação até chegar à Semiótica, a percepção de recorrências (padrões, intervalos, repetições etc.) torna explícito aquilo que está implícito: seja pela percepção de unidades, semelhanças ou proximidades em que aos poucos conseguimos perceber as formas de um objeto (Gestalt); seja pela descoberta de padrões em repetições de sinais que revelam a existência da intencionalidade do código (Teoria da Informação), ou seja, pela combinação de signos que produz uma significação que revela uma sintaxe (Semiótica).

Por trás da aparente escolha arbitrária que a grande mídia fez pelo tomate, sua recorrência é significativa e pode revelar um simbolismo cultural que é igualmente recorrente em diversas culturas, quase como um arquétipo: o objeto, sua forma e cor se revestem de profundos significados que envolvem o próprio simbolismo dos alimentos - sua natureza (animal ou vegetal), sua preparação (grelhado, frito, cozido etc.) ou sua procedência (terra, ar ou água). Uma área vasta, riquíssima e interdisciplinar, envolvendo antropologia, semiótica da cultura e sincromisticismo.

Ou seja, a escolha da grande mídia pelo tomate com objetivos políticos de oposição à política econômica não é por acaso: há uma coincidência sincromística entre o significado midiático atribuído ao tomate e o significado desse vegetal (ou será fruto?) no âmbito do inconsciente coletivo da cultura. Dessa forma, o tomate como símbolo do descontrole inflacionário torna-se um protótipo de um tipo especial de bomba semiótica cujo poder explosivo viria de elementos sincromísticos.

A construção simbólica do tomate

 A primeira característica simbólica do tomate é a ambiguidade. É fruto ou vegetal? Parece uma discussão bizantina, mas é decisiva no plano do imaginário: o vegetal remete a terra e os frutos estão associados aos significados superiores, celestes.

Festa "La Tomatina" na Espanha: o simbolismo
ambíguo do tomate
Em postagem anterior discutíamos que o fator ambiguidade em uma mensagem é o fator multiplicador na sua disseminação (clique aqui para ler). Enquanto o pão e o leite se revestem de significados unívocos e consagrados (o simbolismo do pão e do vinho na Eucaristia assim e o leite com toda a carga simbólica da mãe nutriz, da saúde e proteção), ao contrário, o tomate tem significados simultaneamente malignos e virtuosos.

Originário do Peru (chamado de “maçã peruana”), o tomate foi introduzido no México e renomeada como “tomalt”. A bordo dos navios dos conquistadores espanhóis do século XVI foi levada para a Europa onde ganhou a denominação atual – “tomate”. Como os europeus ricos nesse tempo usavam talheres de estanho, a combinação desse material com a acidez do tomate resultava em envenenamento por chumbo e a morte. Pelo fato de comerem o tomate com as folhas, passaram a encarar com desconfiança como um vegetal – veja abaixo o simbolismo associado à cor verde.

Ao contrário, populações mais pobres comiam com talheres de madeira o que não produzia a tóxica combinação com o estanho, razão pela qual os tomates passaram a ser consumidos pelas classes populares até 1800, principalmente pelos italianos. As classes dominantes passaram a atribuir significados malignos aos tomates por causa dessa fatal combinação: envenenamento e populacho.

Tomates em um famoso filme
trash: entre o vegetal e o fruto,
inferno e céu
Esse imaginário maligno do tomate talvez esteja por trás da franquia de filmes O Ataque dos Tomates Assassinos iniciada em 1978 ou tradições populares como a La Tomatina na Espanha, onde o fruto (ou será vegetal?) é usado como arma e atirado uns contra os outros pela multidão. Ou expressões agressivas ou pejorativas como “pisar no tomate” ou atirar tomates podres no seu pior inimigo.

Muito diferente disso, os italianos imediatamente abraçaram o tomate como símbolo da família, da casa e da felicidade doméstica. Envolver tomates em um pano antes de entrar pela primeira vez em uma casa atrairia prosperidade e afastaria maus espíritos.

Entre os bambaras, etnia do oeste da África (Senegal, Guiné e Mali) o tomate se inscreveu no sistema religioso com significados mais carnais: seu suco representava o sangue e foi associado ao imaginário da fecundação, tanto de chuvas como de mulheres. Andorinhas levariam suas sementes para os céus cujo suco fecundante desceria a terra sob forma de chuva; e em muitos rituais cotidianos, casais teriam que comer um tomate antes de unirem-se (veja CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário dos Símbolos, R. de Janeiro, José Olympio, 2009).

Dentro do sistema imaginário que envolve os alimentos, talvez o tomate seja um daqueles que detenha significados mais ambíguos ou contraditórios. Associada à cor que pode representar um complexo de significados igualmente contraditórios como suculência, sensualidade e advertência e perigo, podemos ter aqui a primeira evidência do por que esse fruto/vegetal foi tão privilegiado pela grande mídia como elemento sinalizador do suposto descontrole inflacionário: a propaganda adora mensagens ambíguas, duplos sentidos.

Perceba o leitor a recorrência da utilização de figuras retóricas pela publicidade e propaganda baseadas em operações semióticas por contradição: oximoros, paradoxos, antífrases, antíteses e sinecioses – figuras de linguagem que põem em cena dois contrários, mas une-os numa mesma ação ou situação. Quanto mais ambígua uma mensagem, maior o seu poder de disseminação, como é observado no exemplo dos memes nas redes sociais.

Sistema semiótico das cores do tomate


O simbolismo das cores associado ao tomate (verde e vermelho) participa também ativamente dessa composição da significação ambígua do fruto/vegetal. Além da óbvia leitura que a cor vermelha do tomate remete à cor do partido político do Governo Federal (e, assim, associar um evento negativo como a inflação ao PT), o fruto/vegetal possui também na cor o importante elemento da ambiguidade.

O vermelho está associado às experiências
mais elementais
O vermelho é a primeira cor nomeada pelo homem e possui profundas experiências elementais associadas ao fogo e sangue. Talvez pela memória atávica dessas experiências (experiências de dor e sobrevivência da espécie), é a primeira cor percebida pelos bebês. Por isso em pesquisas, tanto em homens e mulheres, espontaneamente a primeira cor que ocorre à mente é o vermelho. Não por ser a predileta, mas por significar o próprio conceito de “cor” (veja HELLER, Eva. Psicologia Del Color, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2009).

Por isso é a cor presente na maioria das bandeiras nacionais e a cor da comunicação visual publicitária. Por isso essa cor está associada às experiências humanas mais elementares, simples e corpóreas: perigo, sangue, paixão, alegria (principalmente entre os chineses, cor presente em restaurantes e na comemoração do ano novo) e sensualidade.

Ao contrário, o verde está associado a algo quintessencial, a uma transmutação química que pode resultar tanto na vida quanto no envenenamento: de um lado a fotossíntese, ar e natureza; e do outro, processos tóxicos e veneno. Repare como a cor verde na mídia ao mesmo tempo é associada à ecologia e purificação do ar e na ficção a vilões como o Coringa, Charada e a Hera Venenosa todos inimigos do Batman. Isso sem falar que é a cor que representa a contaminação por radioatividade e a própria tonalidade da perversa Matrix.

Por isso, a bomba semiótica do tomate demonstra que cada vez mais a desmontagem desses dispositivos linguísticos da guerrilha semiológica atual exige ferramentas cada vez mais sofisticadas. Nesse caso, a semiótica é insuficiente, pois o material arquetípico que utilizado vai além de uma explicação a partir da sintaxe dos signos. Somente um enfoque transdisciplinar, sincromístico, pode se aprofundar no material imaginário altamente inflamável dessa bomba.  

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