Dentre
os vários itens que supostamente teriam elevado os índices inflacionários, por
que a mídia escolheu como vilão o tomate? Quando tudo perecia ter sido
esquecido, eis que portais da Internet no final do ano passado localizaram
supostos ataques pontuais em regiões isoladas e, no início desse ano, telejornais
reavivam a memória e até, timidamente, tentam um revival dos tomates
inflacionários . Por que essa obsessão pelos tomates? Por que não o pão, o
leite ou os vestuários? Por trás dessa escolha aparentemente arbitrária e sua recorrência
midiática, o tomate revela um antigo simbolismo cultural. Uma área vasta, riquíssima e interdisciplinar, envolvendo antropologia, semiótica da cultura e
sincromisticismo. Ou seja, o tomate oferece um material imaginário altamente
inflamável. Mais uma bomba semiótica.
Os tomates atacam mais uma
vez. Depois do primeiro semestre do ano passado onde o vegetal (ou seria
fruto?) ter sido considerado o vilão por puxar os números da inflação para o
alto, eis que a grande mídia vem tentando ressuscitá-lo. Em dezembro, portais
da Internet como o G1 começaram a noticiar altas de preços localizadas, como em
São José do Rio Preto (SP) onde o tomate, acompanhado do pão francês e
vestuário, teriam elevado os preços, segundo pesquisas de faculdades locais.
No início desse ano, o
Jornal Nacional fez uma breve retrospectiva do “descontrole da inflação” do ano
passado, dando um especial destaque ao tomate. Pouco dias depois, no telejornal
SPTV, a jornalista Ananda Apple, no quadro Cozinha
Popular onde exibe receitas cujos ingredientes são pesquisados em feiras
livres procurando os produtos mais em conta, novamente fala do aumento do
tomate. Claro, sem a mesma veemência do ano passado, onde até um apresentadora
de programa feminino matinal apareceu com um colar de tomates ao lado de um
papagaio que lamentava os destinos do bolso dos seres humanos desse País.
Por que essa obsessão da
grande mídia pelo tomate? Claro que politicamente sabemos o porquê – criar um
clima de beira de abismo econômico na opinião pública. Mas por que o item
tomate? Outros itens como leite, pão, vestuário etc. também participavam de um
conjunto de produtos que supostamente estariam elevando a inflação para números
que estariam extrapolando o teto estipulado pelo ministro da Economia Guido
Mantega.
Arbitrariedade e Recorrência no tomate
Há nesse caso dois elementos
que caracterizam uma bomba semiótica: significação
arbitrária e recorrência.
Primeiro, o tomate foi escolhido aparentemente de forma arbitrária como o vilão
dentre um conjunto de itens; e segundo, a recorrência, isto é, a insistência
como a grande mídia insiste em elevar esse vegetal (ou será fruto?) à condição
de símbolo – por exemplo, aquela apresentadora de programa feminino matinal
ainda apareceu em agosto com outro colar de tomates, dessa vez para comemorar a
baixa do preço do produto...
Desde a teoria da Gestalt (a
chamada psicologia da forma), passando pela Teoria da Informação até chegar à
Semiótica, a percepção de recorrências (padrões, intervalos, repetições etc.)
torna explícito aquilo que está implícito: seja pela percepção de unidades,
semelhanças ou proximidades em que aos poucos conseguimos perceber as formas de
um objeto (Gestalt); seja pela descoberta de padrões em repetições de sinais
que revelam a existência da intencionalidade do código (Teoria da Informação),
ou seja, pela combinação de signos que produz uma significação que revela uma
sintaxe (Semiótica).
Por trás da aparente escolha
arbitrária que a grande mídia fez pelo tomate, sua recorrência é significativa
e pode revelar um simbolismo cultural que é igualmente recorrente em diversas
culturas, quase como um arquétipo: o objeto, sua forma e cor se revestem de
profundos significados que envolvem o próprio simbolismo dos alimentos - sua
natureza (animal ou vegetal), sua preparação (grelhado, frito, cozido etc.) ou
sua procedência (terra, ar ou água). Uma área vasta, riquíssima e
interdisciplinar, envolvendo antropologia, semiótica da cultura e
sincromisticismo.
Ou seja, a escolha da grande
mídia pelo tomate com objetivos políticos de oposição à política econômica não
é por acaso: há uma coincidência sincromística entre o significado midiático
atribuído ao tomate e o significado desse vegetal (ou será fruto?) no âmbito do
inconsciente coletivo da cultura. Dessa forma, o tomate como símbolo do
descontrole inflacionário torna-se um protótipo de um tipo especial de bomba
semiótica cujo poder explosivo viria de elementos sincromísticos.
A
construção simbólica do tomate
A primeira característica simbólica do tomate
é a ambiguidade. É fruto ou vegetal? Parece uma discussão bizantina, mas é
decisiva no plano do imaginário: o vegetal remete a terra e os frutos estão
associados aos significados superiores, celestes.
Festa "La Tomatina" na Espanha: o simbolismo ambíguo do tomate |
Em postagem anterior
discutíamos que o fator ambiguidade em uma mensagem é o fator multiplicador na
sua disseminação (clique
aqui para ler). Enquanto o pão e o leite se revestem de significados
unívocos e consagrados (o simbolismo do pão e do vinho na Eucaristia assim e o
leite com toda a carga simbólica da mãe nutriz, da saúde e proteção), ao
contrário, o tomate tem significados simultaneamente malignos e virtuosos.
Originário do Peru (chamado
de “maçã peruana”), o tomate foi introduzido no México e renomeada como
“tomalt”. A bordo dos navios dos conquistadores espanhóis do século XVI foi
levada para a Europa onde ganhou a denominação atual – “tomate”. Como os
europeus ricos nesse tempo usavam talheres de estanho, a combinação desse material
com a acidez do tomate resultava em envenenamento por chumbo e a morte. Pelo
fato de comerem o tomate com as folhas, passaram a encarar com desconfiança
como um vegetal – veja abaixo o simbolismo associado à cor verde.
Ao contrário, populações
mais pobres comiam com talheres de madeira o que não produzia a tóxica
combinação com o estanho, razão pela qual os tomates passaram a ser consumidos
pelas classes populares até 1800, principalmente pelos italianos. As classes
dominantes passaram a atribuir significados malignos aos tomates por causa
dessa fatal combinação: envenenamento e populacho.
Tomates em um famoso filme trash: entre o vegetal e o fruto, inferno e céu |
Esse imaginário maligno do
tomate talvez esteja por trás da franquia de filmes O Ataque dos Tomates Assassinos iniciada em 1978 ou tradições
populares como a La Tomatina na
Espanha, onde o fruto (ou será vegetal?) é usado como arma e atirado uns contra
os outros pela multidão. Ou expressões agressivas ou pejorativas como “pisar no
tomate” ou atirar tomates podres no seu pior inimigo.
Muito diferente disso, os
italianos imediatamente abraçaram o tomate como símbolo da família, da casa e
da felicidade doméstica. Envolver tomates em um pano antes de entrar pela
primeira vez em uma casa atrairia prosperidade e afastaria maus espíritos.
Entre os bambaras, etnia do
oeste da África (Senegal, Guiné e Mali) o tomate se inscreveu no sistema
religioso com significados mais carnais: seu suco representava o sangue e foi
associado ao imaginário da fecundação, tanto de chuvas como de mulheres.
Andorinhas levariam suas sementes para os céus cujo suco fecundante desceria a
terra sob forma de chuva; e em muitos rituais cotidianos, casais teriam que
comer um tomate antes de unirem-se (veja CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário dos Símbolos, R. de Janeiro,
José Olympio, 2009).
Dentro do sistema imaginário
que envolve os alimentos, talvez o tomate seja um daqueles que detenha
significados mais ambíguos ou contraditórios. Associada à cor que pode
representar um complexo de significados igualmente contraditórios como
suculência, sensualidade e advertência e perigo, podemos ter aqui a primeira
evidência do por que esse fruto/vegetal foi tão privilegiado pela grande mídia
como elemento sinalizador do suposto descontrole inflacionário: a propaganda
adora mensagens ambíguas, duplos sentidos.
Perceba o leitor a
recorrência da utilização de figuras retóricas pela publicidade e propaganda
baseadas em operações semióticas por contradição: oximoros, paradoxos,
antífrases, antíteses e sinecioses – figuras de linguagem que põem em cena dois
contrários, mas une-os numa mesma ação ou situação. Quanto mais ambígua uma
mensagem, maior o seu poder de disseminação, como é observado no exemplo dos
memes nas redes sociais.
Sistema semiótico das cores do tomate
O simbolismo das cores
associado ao tomate (verde e vermelho) participa também ativamente dessa composição
da significação ambígua do fruto/vegetal. Além da óbvia leitura que a cor
vermelha do tomate remete à cor do partido político do Governo Federal (e,
assim, associar um evento negativo como a inflação ao PT), o fruto/vegetal
possui também na cor o importante elemento da ambiguidade.
O vermelho está associado às experiências mais elementais |
O vermelho é a primeira cor
nomeada pelo homem e possui profundas experiências elementais associadas ao
fogo e sangue. Talvez pela memória atávica dessas experiências (experiências de
dor e sobrevivência da espécie), é a primeira cor percebida pelos bebês. Por
isso em pesquisas, tanto em homens e mulheres, espontaneamente a primeira cor que
ocorre à mente é o vermelho. Não por ser a predileta, mas por significar o
próprio conceito de “cor” (veja HELLER, Eva. Psicologia Del Color, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2009).
Por isso é a cor presente na
maioria das bandeiras nacionais e a cor da comunicação visual publicitária. Por
isso essa cor está associada às experiências humanas mais elementares, simples
e corpóreas: perigo, sangue, paixão, alegria (principalmente entre os chineses,
cor presente em restaurantes e na comemoração do ano novo) e sensualidade.
Ao contrário, o verde está
associado a algo quintessencial, a uma transmutação química que pode resultar tanto
na vida quanto no envenenamento: de um lado a fotossíntese, ar e natureza; e do
outro, processos tóxicos e veneno. Repare como a cor verde na mídia ao mesmo
tempo é associada à ecologia e purificação do ar e na ficção a vilões como o
Coringa, Charada e a Hera Venenosa todos inimigos do Batman. Isso sem falar que
é a cor que representa a contaminação por radioatividade e a própria tonalidade
da perversa Matrix.
Por isso, a bomba semiótica
do tomate demonstra que cada vez mais a desmontagem desses dispositivos linguísticos
da guerrilha semiológica atual exige ferramentas cada vez mais sofisticadas.
Nesse caso, a semiótica é insuficiente, pois o material arquetípico que utilizado
vai além de uma explicação a partir da sintaxe dos signos. Somente um enfoque transdisciplinar,
sincromístico, pode se aprofundar no material imaginário altamente inflamável
dessa bomba.