De
“Show de Truman” ao filme “Número 23”, do álbum “Diamond Dogs” de David Bowie a
série “Harry Potter”, podemos encontrar uma recorrência sincromística: a
misteriosa conexão desses produtos de entretenimento com a mitologia que envolve a estrela Sirius da constelação
do Cão Maior, presente nas mais variadas culturas e civilizações desde a
antiguidade. Passando pela escola dos mistérios do antigo Egito, a mitologias
da tribo dos Dogons de Mali, na Teosofia de Madame Blavatsky, sociedades
secretas como a Maçonaria ou na antiguidade grega, percebe-se ela é dotada de um simbolismo
ambíguo, seja como a estrela que ilumina o mundo espiritual ou que aponta para maus presságios, e tempos de calor
e loucura – “dias de cão”. Na bandeira nacional, Sirius representa o estado do
Mato Grosso - pauta sugerida pelo nosso leitor Ricardo no seu comentário sobre nossa postagem sobre o filme "Show de Truman".
No
mundo estranhamente previsível e conformista do filme Show de Truman (The Truman
Show, 1998), Truman sai de casa para mais um dia de trabalho, com um
sorriso publicitário estampado em seu rosto. De repente um evento inesperado:
algo cai do céu totalmente azul e se espatifa no chão, quase o atingindo. Ele
pega o objeto e repara que é um spot de luz. Sobre ele, uma etiqueta onde se lê:
“Sirius (9 canis major)”. O acontecimento é importante na narrativa do filme
porque, a partir da inexplicável queda do spot com o nome de uma estrela do
firmamento, Truman começará a questionar sua própria realidade.
Mas
há algo mais: o fato de o roteirista ter atribuído a esse importante objeto da
trama do filme o nome da estrela Sirius – localizada na constelação de Cão
Maior, também conhecida como “big dog” e, por isso, chamada também como
“estrela do cão”. Sirius é a estrela mais brilhante do céu e desde tempos
imemoriais tem sido reverenciada por diferentes culturas e civilizações.
Essa
estrela se reveste de grande importância na mitologia, astrologia e ocultismo.
Passando pelas Escolas de Mistérios, o sistema mitológico da antiga tribo dos
Dogons em Mali, no glossário teosófico de Madame Blavastky no século XIX até o
simbolismo oculto no tarô, e de sociedades secretas como a maçonaria, Sirius
incorpora um significado generalizado de “um sol atrás do Sol”, a luz
espiritual que como o Sol ilumina o mundo físico, considerado uma grande
ilusão.
O
exemplo da sequência da queda do spot
que simulava o brilho da estrela Sirius no céu cenográfico de Show de Truman é mais um exemplo que
demonstra que, cada vez mais, as produções cinematográficas apresentam uma
espécie de subtexto sincromístico por trás da narrativa manifesta do roteiro.
Arquétipos e mitologias, que no passado se restringiam a sistemas filosóficos e
religiosos de iniciados, hoje são repercutidos tecnologicamente, porém de forma
irrefletida como entretenimento e não mais como iluminação espiritual.
Mas
o “momento de verdade” (o conteúdo sincromístico que fascina o público) continua
presente como no profundo significado daquele spot do gigantesco estúdio na
trajetória de Truman no filme: o gatilho que acionou todo o processo de
descoberta espiritual na vida do protagonista.
Espetacularização do arcaico
Autores
como o italiano Massimo Canevacci ou o francês Edgard Morin já estudavam esse
modelo de projeção-identificação do público com o filme onde a indústria do
entretenimento converte elementos do imaginário em modelos estéticos de
cultura. Canevacci, por exemplo, considerava o cinema uma “máscara tecnológica”
que espetaculariza uma “hipo-estrutura arcaica” e, como as máscaras
ritualísticas antigas, ao mesmo tempo escondem e mostram conteúdos arquetípicos
do inconsciente. Este seria o “espírito do cinema” (veja CANEVACCI, Massimo. Antropologia do Cinema, São Paulo:
Brasiliense, 1984).
O espírito do cinema: o cinema esconde conteúdos arquetípicos do inconsciente |
Por
sua vez, Morin via na sua obra Cultura de
Massas no Século XX que por trás da “cultura dos olimpianos” (artistas,
campeões, celebridades, reis e príncipes) estaria o imaginário composto por
modelos mitológicos e mágicos. Eles se tornam “modelos de cultura” e encarnam
“mitos de auto-realização privada”.
Mas
Canevacci e Morin ainda são pesquisadores de uma época clássica do cinema onde
o imaginário era ainda encaixado unicamente dentro da chamada “Jornada do Herói”.
Hoje, as conexões do cinema com o imaginário, arquétipos e mitologias são mais
complexas por meio de sincretismos com “egrégoras” e “formas pensamento” de um
inconsciente coletivo atual da humanidade.
Um dos exemplos mais conhecidos são as coincidências sincromísticas que
envolvem o personagem do Coringa na série Batman, principalmente após a morte
do ator Heath Ledger (sobre isso, clique aqui): a sombra do poderoso arquétipo teria feito mais uma
vítima, suspeita que ficou ainda mais forte após a declaração do ator Jack
Nicholson: “Eu o avisei!”. Nicholson já havia interpretado o sinistro
personagem no “Batman” na versão de Tim Burton (1989) e parecia saber de algo
mais.
Isso sem falar das sincronicidades entre esse personagem e o infame
massacre da cidade de Aurora, Colorado, em 2012 onde um atirador realizou uma
série de disparos em um cinema onde estreava "Batman, O Cavaleiro das
Trevas". O autor teria declarado para a polícia ser o Coringa (sobre isso, clique aqui).
Mitologias da estrela Sirius
Tribo dos Dogons: conheciam o sistema binário de Sirius muito antes dos astrônomos do séc. XIX |
No antigo Egito a estrela Sirius era a base astronômica de todo o
sistema religioso. Foi reverenciado como Sothis e foi associada com Ísis, a deusa mãe da mitologia
egípcia. Isis é o aspecto feminino da trindade formada por ela, Osíris e Horus
o filho. Os antigos egípcios colocavam Sirius em tal alta posição, que a
maioria de suas divindades estavam associadas, de alguma forma ou de outra, com
a estrela. Anubis, o cabeça de cão deus da morte, tinha uma óbvia conexão com a
Estrela do Cão, e Toth-Hermes, o grande mestre da humanidade, foi também
esotericamente relacionado com a estrela. Muitos pesquisadores ocultistas
alegam que a Grande Pirâmide de Gizé foi construída em perfeito alinhamento com
a estrela Sirius e seu brilho seria usado em cerimônias dos Mistérios egípcios
– Sirius (associada à deusa Ísis) estaria alinhada com a Câmara da Rainha no
interior da Grande Pirâmide.
O simbolismo mitológico de Sirius é ambíguo, talvez
reflexo dessa estrela fazer parte de um sistema binário composta por Sirius A
(duas vezes a massa do Sol) e Sirius B (uma anã branca quase igual o Sol em
massa) – embora só no século XIX se tenha descoberto de que a estrela pertencia
a um sistema binário, o pesquisador Robert Temple no livro O Mistério de Sirius afirma que a mitologia da tribo dos Dogons em
Mali já compreendia a natureza binária da estrela, construindo um simbolismo próximo
dos egípcios, sumérios e babilônicos que elaboraram o arquétipo do “grande
professor de cima”.
Por exemplo, os gregos antigos pensavam que as
emanações de Sirius poderia afetar adversamente cães, quando então se
comportavam de forma anormal durante os "dias de cão", os dias mais
quentes do verão – talvez daí as origens de expressões como “dia de cão” para
um dia difícil e de má sorte.
Os romanos sacrificavam um cão marrom no início dos “dias
de cão” para aplacar a fúria de Sirius , acreditando que a estrela era a causa
do tempo quente e abafado .
Muitas culturas têm historicamente ligado significado
especial para Sirius , particularmente em relação aos cães . Também foi
descrito classicamente como cão de Orion. Homero, na Ilíada , descreveu :
Sirius sobe no final do céu escuro, céu líquido/ Nas noites de verão, estrela das estrelas,/ Eles chamam Cão de Órion, a mais brilhante/ De todas , mas um presságio do mal , trazendo calor/ E febres para a humanidade sofredora.
Por outro lado, nas escolas de mistérios ela é reverenciada como o foco
central de ensinamentos secretos. Helena Blavatsky e Alice Bailey, as duas
principais figuras associadas com a Teosofia, considervam Sirius como uma fonte
de energia esotérica. Blavatsky afirma que a estrela Sirius exerce uma
influência mística e direta sobre o céu inteiro e está relacionada com todas as
grandes religiões da antiguidade. Alice Bailey vê a estrela do cão como a
verdadeira "Grande Loja Branca" e acredita ser a casa da
"Hierarquia Espiritual". Por esta razão, ela considera Sirius como a
"estrela de início".
Na Maçonaria é a “estrela flamejante”, símbolo
da divindade, da onipresença (o Criador está presente em toda parte) e da
onisciência (o Criador vê e sabe de tudo). Sirius, portanto, é o "lugar
sagrado" para onde todos os maçons devem ascender. É a fonte do poder divino e do
destino das pessoas divinas.
Estrela Sirius na indústria do entretenimento
Referências diretas ou
indiretas são inúmeras na cultura de massas. Em geral os simbolismos codificados
remetem à estrela como guia, estimuladora da busca da verdade e da elevação
espiritual. Além do filme Show de Truman
vejamos outros exemplos:
(a) O ocultista e
gnóstico pop David Bowie no seu álbum Diamond
Dogs faz uma conexão sincromística com Sirius através do simbolismo do
diamante e cães: o tema do álbum é o futuro distópico orwelliano de um mundo
controlado por um Big Brother (ou “diamond dogs”), associado com a metáfora de
cães e o diamante, associado nas traduções esotéricas ao brilho de Sirius no
céu. Diamond Dogs cria uma metáfora associado a esse significado sombrio do
destino humano associado ao cão.
(b)
O filme Liquid Sky (1982) de Slava
Tsukerman oferece outras coincidências significativas ou sincromísticas: uma
gíria usada para designar a droga heroína é “liquid sky” (céu líquido), o mesmo
termo usado no verso da Ilíada de
Homero para designar o momento da ascensão da estrela Sirius no céu. No filme,
alienígenas (será que vindos do sistema binário de Sirius?) vêm a Terra atrás
de uma droga natural produzida pelo cérebro no momento do orgasmo, mas
descobrem algo melhor: a heroína. E por uma coincidência sincromística, o nome
do release do arquivo disponível em torrent do filme na Internet é “SiRiUs”.
(c) No filme Harry Potter e a Ordem da Fênix (2007), o personagem chamado Sirius
Black (Gary Oldman) é uma provável uma referência a Sirius B. (estrela do
sistema binário de Sirius que carrega os significados “sombrios”). Ele é
padrinho de Harry Potter, o que reveste o personagem de um simbolismo de
professor e guia, significado que é atribuído pelas escolas de mistérios à
“estrela do oriente”. E Sirius pode se transformar num enorme cão negro, outra
ligação com a "estrela do cão". Além disso, há uma conexão entre
Sirius e a lenda da Fênix, o mítico pa´ssaro que renasceu das suas próprias
cinzas. Segundo J. B. Holberg no livro Sirius:
Brightest Diamond in the Night Sky, existe uma tradição egípcia que
identifica o retorno da Fênix com o nascimento heliacal de Sirius - momento em
que este se torna visível no horizonte imediatamente
antes do nascer do Sol, estando suficientemente afastado para que não seja ofuscado pelo brilho dele.
(d) No filme Número
23 (The Number 23, 2007), o Dr. Sirius Leary é uma das peças do
quebra-cabeças para que o protagonista Walter (Jim Carey) possa entender as
coincidências entre o livro que ele lê chamado O Número 23 com a sua própria vida. Mais uma vez, como em Show de Truman, o nome da estrela Sirius
está associado à busca pela verdade.