O bordão “Não tem arroz, não tem feijão,
mas assim mesmo o Brasil é campeão” em 1962 e o atual “Não Vai Ter Copa”
demonstram que as bombas semióticas são a principal arma de uma guerra
psicológica. Se no passado a ação era feita através de cinedocumentários exibidos
para as classes pobres por meio de projetores montados em chassis de caminhões
abertos, agora é por meio de produção de eventos com alto rendimento midiático,
causando impacto mesmo em manifestações com baixo número de "manifestantes". O
caso mais recente foram as dramáticas imagens do fusca incendiando e uma
família humilde sendo salva das chamas, em uma rara combinação do oportunismo,
sincronicidades e significados ambíguos, elementos que são o pavio da detonação
de uma típica bomba semiótica.
Em
1990 os telejornais de todo o planeta mostraram chocantes imagens do que
ficaram conhecidas como “o ossário de Timisoara”, na Romênia: a descoberta de
um ossário de quatro mil vítimas que, afirmavam os repórteres, eram vítimas da
ditadura de Ceausescu. E outros milhares de corpos teriam sido dissolvidos em
ácido. As imagens atrozes dos cadáveres alinhados sobre um lençol branco
marcaram para sempre a derrubada do ditador na chamada Revolução Romena de
1989. Mais tarde descobriu-se que tudo tinha sido um cenário montado para
cinegrafistas e fotógrafos: na verdade eram corpos de pobres desenterrados de
um cemitério local e cedidos à TV.
É
irônico que em uma sociedade tão cética como a nossa
onde a máxima “eu só acredito vendo”, que esvaziou simbolicamente as mitologias
e religiões ou até a própria existência de Deus, o olhar e as imagens sejam as principais fontes de
enganos e manipulações.
Partindo
desses dois pressupostos para reflexão, vamos começar por uma insólita
experiência pela qual passei ao assistir ao Jornal Nacional. Estava eu em mais
uma das incansáveis e perigosas missões de buscar bombas semióticas (são
perigosas pelo risco de expor nossos sentidos a elas) nos telejornais. A pauta
eram as manifestações contra a Copa que ocorreram em várias localidades do País.
Como a matéria apresentava imagens já repetitivas, aproveitei e levantei-me
para buscar algo para beliscar na cozinha. Na volta o susto: deparo-me com
imagens de uma praça à noite em estado de guerra declarada. Incêndios por todos
os lados, escombros servido de barricada e uma multidão enfrentando pesada
artilharia de repressão de multidões. Depois de alguns segundos, claro, entendi
que as imagens se referiam aos protestos na Ucrânia contra o governo.
É
significativa essa recorrência na divisão dos blocos de notícias dos
telejornais: contrariando a tradicional divisão entre blocos de notícias
nacionais e internacionais, as manifestações no Brasil são inseridas no mesmo
bloco onde são mostradas imagens dos conflitos na Síria e Ucrânia. Praticamente
sem intervalo, apenas como uma locução introdutória rápida. Pesquisadores como
Ignácio Ramonet e Robert Stam já chamaram a atenção das manipulações metonímicas
ou por separação e fragmentação das notícias, seja na “escalada” ou na divisão
por blocos nos telejornais: procuram ou neutralizar e minimizar certos
acontecimentos ou dar um significado maior a um determinado fato - leia RAMONET, Ignácio. A Tirania da Comunicação. Vozes, 2007 e STAM, Robert. "O Telejornal e seu Espectador" In: Novos Estudos Cebrap.
A
pauta e a sua organização em blocos esconde uma intencionalidade. E nesse caso,
o desejo quase incontrolável dos editores dos telejornais que o Brasil possa
produzir imagens como aquelas na Síria ou na Ucrânia.
Oportunismo e sincronismo do fusca em chamas
O
ápice dessa aproximação metonímica entre Brasil, Síria e Ucrânia vem agora com
uma nova e oportuna bomba semiótica que apareceu com um timing e felicidade
impressionantes: um fusca 1975, com uma família e uma criança de cinco anos,
tendo no volante um humilde serralheiro que depende do seu carro para
sobreviver. Todos voltando de um culto em uma igreja evangélica. Inocentes
perfeitos, gente que rala para sobreviver. O fusca incendiando e todos sendo
retirados do interior do veículo às pressas no meio das chamas, produziu uma
dramática cena noturna: caos, anomia, insegurança – teremos Copa, mas não
conseguimos ir e vir na cidade em que vivemos!
Além
disso, essa bomba semiótica é cercada por duas coincidências significativas bem
interessantes: primeiro, o nome do motorista era Itamar. Uma alusão ao
presidente Itamar Franco onde, dentro do seu governo aprovou a Lei do carro popular
em 1993 que previa isenções de impostos, e o fusca foi escolhido como o símbolo
dessa política.
A
segunda, as origens do fusca estão fortemente ligadas à Segunda Guerra Mundial
e ao projeto de Hitler de um carro que deveria ser capaz de levar três soldados
e uma metralhadora, além da típica família alemã como símbolo da propaganda de
uma economia forte. Portanto, o fusca possui um simbolismo simultaneamente
militar (coincidentemente um carro colocado numa situação de conflito como nas
manifestações contra a Copa) e popular (manifestações contra um governo
supostamente incentivador de políticas de popularização e inclusão no consumo).
Além
dessas coincidências significativas (sincronicidades?), temos principalmente o
fator ambiguidade que ficou evidente desde o início: os manifestantes atearam
fogo deliberadamente no veículo? O fusca avançou inadvertidamente sobre um
colchão em chamas? Uma conexão entre o fusca e o histórico “atentado da bolinha
de papel”?
O fusca em chamas não permite leituras ideológicas
Algumas
leituras ideológicas encararam o incidente como “manifestantes fascistas de
direita que atacaram um trabalhador humilde”, como uma clara demonstração da
“destruição niilista dos vândalos black blocs”. Mas o movimento “Não Vai Ter
Copa” é refratário a qualquer interpretação ideológica porque ele se
autojustifica: seu objetivo não é a demonstração ideológica (destruição do
capitalismo) ou reivindicatória, mas de simples propaganda de terror – impactar
o contínuo midiático com imagens simbólicas de descontrole, caos e medo para
demonstrar que um governo que não consegue controlar as ruas não é um governo
legítimo.
Daí
a incrível felicidade e oportunismo do fusca incendiando para as telas de TV:
vítima? Culpado? Evento montado como o ossário de Timisoara para impactar a
opinião pública? O que importa é que essa poderosa combinação semiótica de sincronismo
com ambiguidade anaboliza uma manifestação que contava com poucos participantes
nas ruas, mas que foi capaz de produzir um ótimo rendimento midiático, forçando
inclusive a FIFA fazer um pronunciamento através de nota onde condena os
protestos e assegura a confiança no governo em manter a segurança durante o
torneio.
Em
si, o pronunciamento da FIFA já é outro elemento de ambiguidade: se no plano
denotativo é um discurso que reafirma a confiança na organização da Copa, no
plano pragmático é o sinal da força do golpe midiático, o que torna legítima a
pauta construída pela mídia – lembra a clássica afirmação dos dirigentes de um
time em crise: “o técnico está prestigiado!”.
Não
importam mais as condenações e interpretações. O objetivo já foi cumprido: uma
mobilização com poucos participantes, mas que é capaz de produzir dezenas de
acontecimentos que se transformam em imagens simbólicas (virar carros da polícia,
veículo incendiando, depredação de bancos e lojas, manifestante carregando
adereços anarquistas em pose desafiadora sobre um carro de TV ou da polícia
etc.) para a delícia de fotógrafos e cinegrafistas.
1962-64: bombas semióticas contra João Goulart
Cinejoranais produzidos pelo IPES (1962-64): a gestão do medo. |
“Não
tem arroz, não tem feijão, mas assim mesmo o Brasil é campeão”. O Brasil era
campeão da Copa no Chile em 1962, enquanto inexplicavelmente sumia arroz e feijão
das prateleiras do comércio. Simultaneamente a mídia, por meio da TV e rádio,
repercutia esse bordão como parte de uma sistemática propaganda de terror para
desestabilizar o governo João Goulart que conduziria ao golpe militar de 1964,
como apontam pesquisadores como Rene Armand Dreifuss e Denise Assis (leia
DREIFUSS, Rene A. 1964: a conquista do
Estado, Petrópolis: Vozes, 1981 e ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe, R. de Janeiro: Mauad,
FAPERJ, 2001).
Mas,
sobretudo, entre 1962-64 a principal mídia utilizada como estratégia de
impactar a opinião pública foi o cinema. Embora o rádio já fosse uma poderosa
força graças ao transistor, pois precisava apenas de pilhas para funcionar, o
Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) investiu pesado no cinejornalismo, liderado pelo
fotógrafo francês Jean Manzon, pioneiro do cinedocumentário brasileiro. Vislumbravam
que as imagens eram o mais poderoso instrumento já que, em si, a linguagem
cinematográfica é ideológica por meio da seleção, corte e edição.
A
princípio as peças fílmicas (cinejornais e documentários onde ao mesmo tempo
enaltecia os valores da iniciativa privada, meritocracia e liberdade econômica
e também o caos e instabilidade política e social resultantes de um governo
supostamente fraco que não conseguia conter as ações de radicais – os comunistas
infiltrados) eram apresentadas por todo o País em seções regulares e especiais.
O IPES conseguiu na época arregimentar um eficiente sistema em cadeia apoiado pelo SESI.
Jean Manzon: pioneiro do cinedocumentário à serviço da guerra psicológica que derrubaria João Goulart |
Para
atingir os mais pobres que não dispunham de dinheiro para comprar um ingresso
de cinema, o IPES criou uma engenhosa estratégia: sob o pretexto de projeto
cultural, montava projetores em caminhões abertos e ônibus com chassis
especiais para levar sua guerra psicológica a bairros periféricos. Segundo
Dreifuss, toda a infra-estrutura técnica necessária era suprida por empresas
como a Mesbla e a CAIO, na época a maior montadora de carrocerias de ônibus e
caminhões.
Para quem falou o fusca em chamas
As
bombas semióticas não visam doutrinação ou inculcação ideológica. Pesquisas
empíricas em comunicação de diversas linhas (Mass Communication Research,
Agenda Setting etc.) já comprovaram que os conteúdos midiáticos apenas reforçam
predisposições já existentes por meio da seletividade da recepção e memória do
receptor. As imagens do fusca em chamas repercutidas pela mídia apenas reforçam
as posições pré-existentes da direita à esquerda do espectro político.
Portanto, seu
principal objetivo é cognitivo: criar uma atmosfera de insegurança e uma
percepção de que os poderes públicos não conseguem manter a ordem nas ruas.
Isso se chama gestão do medo, tática
para atingir a grande massa de receptores que podem ser indiferentes aos
conteúdos discursivos das mídias, mas são extremamente sensíveis às imagens que
formam o contínuo midiático atmosférico e cuja reação imediata numa situação de
perigo latente é a autopreservação.
E sabemos que, historicamente, essa
situação é propícia para o surgimento de aventureiros políticos e oportunistas
de ocasião.