Uma
equipe de psicólogos, cartógrafos e fotógrafos tenta transformar uma lenda em
registro histórico: por que uma cidade inteira desapareceu depois de assistir
ao filme “O Mágico de Oz” em 1940? Inspirado em um caso real onde os habitantes
de uma vila esquimó desapareceram repentinamente deixando todos os seus
afazeres para trás, o filme “YellowBrickRoad”(2010) faz uma sombria releitura
do filme clássico de 1939 por um viés metalinguístico do cinema, forte
tendência dos filmes independentes atuais. Assim como Dorothy levantou a
cortina e descobriu que Oz não era um mágico no filme clássico, em "YellowBrickRoad" os espectadores daquela pequena
cidade remota descobriram da pior maneira possível, após saírem do cinema, que
a Cidade de Esmeralda do Mágico de Oz não existia.
Em
postagem recente sobre as origens ocultistas do filme O Mágico de Oz, falávamos que esse filme de 1939 tinha transcendido
a sua condição de produto cinematográfico para se transformar em um poderoso
arquétipo cultural. Após três gerações e muitas linhas de diálogo com
referências ao filme em produções como Zardoz,
Matrix, O Campo dos Sonhos, Avatar
e Depois de Horas de Scorsese, eis
que um filme independente de terror com baixíssimo orçamento vai de encontro ao
simbolismo gnóstico oculto da estrada de tijolos amarelos, para trazer a
jornada de 1939 para os tempos atuais. Mas de uma forma sombria e muito menos
otimista.
Estamos
falando do filme YellowBrickRoad
(2010), onde todos os elementos simbólicos do filme O Mágico de Oz (as bruxas
boas do Norte e do Sul, as bruxas más do Leste e Oeste, a estrada de tijolos
amarelos, Oz, o espantalho, a espiral etc.) transformam-se em elementos
literais, fazendo um grupo de cientistas e pesquisadores descerem em uma
jornada de loucura. E mais do que isso: acompanhando a tendência de filmes
metalinguísticos e autoreferenciais (Mais EstranhoQue a Ficção, O Segredo da Cabana,
Resolution etc.), YellowBrickRoad faz uma metaficção ao
tematizar o efeito contaminante coletivo do simbolismo do filme de 1939 e seus
efeitos na audiência que vai ao cinema como um espécie de loucura contagiosa.
Isso
não é pouco para uma jovem dupla de diretores (Jesse Holand e Andy Milton), fãs
de filmes de terror dos anos 1970 como O
Iluminado, O Exorcista e Carrie, A Estranha, iconicamente citados
no filme das formas mais estranhas possíveis.
O Filme
O
filme inicia no melhor estilo mockumentary em que, através de supostas fotos e
áudios da época, relata uma estranha lenda que envolve a localidade remota de
Friar, em New Hampshire nos EUA. Em 1940 repentinamente todos ao mesmo tempo os
habitantes da cidade resolveram abandonar tudo para se enveredar na trilha de
uma floresta que rodeia a localidade. Deixaram para trás seus trabalhos, casas,
vidas e até seus cachorros amarrados em postes até morrerem de fome. Jamais se
descobriu o porquê desse estranho comportamento coletivo.
Tempos
depois, o Exército organizou uma secreta busca nessa floresta e encontrou uma
realidade desoladora: restos mutilados de mais de 300 pessoas, cadáveres
congelados, muitos desaparecidos e o áudio incompreensível do único
sobrevivente.
Como
é de se esperar nesses casos, o Governo abafou o caso. A população da cidade
foi recompondo-se e recuperou seu ritmo habitual e tudo foi esquecido sob o
manto do segredo. Em 2008 um grupo de pesquisadores e especialistas formado por
psicólogos, cartógrafos, fotógrafos, alpinistas tentarão descobrir o que
realmente se passou a partir de um dossiê sobre o caso, adquirido através de um
contato exclusivo, com as coordenadas geográficas que levarão a esse estranho
caminho na floresta onde tudo ocorreu.
A música espectral
Mas,
quando a equipe segue as coordenadas exatas do início dos acontecimentos de
1940, chegam a um velho cinema. Lá encontram uma estranha garota que mantém o
projetor e os rolos de filme em funcionamento para um cinema vazio. E o mais
importante: também encontram em um dos projetores antigas cópias do filme O Mágico de Oz. A garota, então, conduz
o grupo ao início do caminho, na entrada da floresta, onde acham uma pedra com
a inscrição “Yellowbrickroad” feita pelo sobrevivente dos trágicos
acontecimentos do passado.
Aos
poucos, o que parecia ser um misto de passeio, pesquisas e alegres festas em
acampamentos, começa a se transformar em um progressivo estado de horror: primeiro
os GPS, pedômetros, bússolas e uma série de equipamentos de cartografia começam
a enlouquecer. Aleatoriamente dão estranhas coordenadas de qualquer ponto do
planeta. Repentinamente, todos começam a ouvir o som espectral de músicas dos
anos 1930, que parece executado por alguma antiga vitrola invisível. O som vem
de algum lugar impreciso, espectral, ecoante e que os acompanha como se viesse
de todos os lados da floresta. Aos poucos essa música começa a desorientar as
mentes e a instigar comportamentos imprevisíveis e agressões mútuas que vão se
tornando cada vez mais graves.
Por que o filme O Mágico de Oz?
Nas
entrevistas, a dupla de diretor afirma que o argumento do filme foi inspirado
no caso de uma vila esquimó encontrada abandonada cujos detalhes se assemelham
aos do filme. Um caso assustador e nunca resolvido. Mas com uma diferença: o
filme O Mágico de Oz. Por que a dupla
de diretores escolheu esse antigo filme? Para Holland e Mitton, durante e após a
Grande Depressão dos EUA o cinema era a grande forma de fuga de uma realidade
desoladora. E O Mágico de Oz era o preferido. “Em nossa lenda urbana criada
para o filme, há boatos de que os habitantes da cidade caminharam para o Norte
através da trilha depois de ficarem obsecados pelo filme O Mágico de Oz. Por
isso, marcaram ‘Yellowbrickroad’ na pedra que inicia a trilha”, diz Holland.
Dessa
maneira, o filme pretende fazer uma versão em negativo de O Mágico De Oz. Todos
os simbolismos de O Mágico de Oz são invertidos e transformados em não mais
como índices da iluminação espiritual, mas em um mergulho nos fantasmas do
inconsciente de cada um. Um exemplo é o simbolismo da espiral no clássico de
1939. A jornada pela estrada de tijolos amarelos começa com um espiral para,
através dela, Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão procurarem a
realização dos seus desejos por meio do mágico de Oz na Cidade de Esmeralda. Em
YellowBrickRoad a equipe de
pesquisadores descobre que, na verdade, a misteriosa trilha na floresta os
conduz em um movimento espiral que não leva a parte alguma.
Ao
mesmo tempo, a perda de orientação dos cartógrafos da expedição remete a
inversão da geografia espiritual proposta pelo filme O Mágico de Oz: as bruxas boas do Norte e do Sul (eixo vertical de
ascensão espiritual) versus as bruxas más do Leste e Oeste (eixo material).
Simplesmente o grupo perde a orientação e começa a andar aparentemente a esmo –
mas na verdade, descobrem um padrão em espiral.
E
a música espectral que atormenta os membros da expedição é uma nostálgica
lembrança dos musicais dos filmes como o Mágico
de Oz, isso sem falar que o tom melancólico e nostálgico das músicas
ouvidas que remetem ao Hotel Overlook do filme O Iluminado de Kubrick – o que fica mais evidente na sequência
final do filme.
“Horror”, “Terror” e “Pavor”
A
dupla de diretores parece ter uma boa formação teórica sobre o cinema. Em
entrevista eles citam o professor, novelista e crítico Orson Scott Card que
divide o medo na ficção em três categorias: “horror”, “terror” e “pavor”: “pavor
é quando está sozinho à noite e vê a janela aberta, e você tem certeza que a
fechou; terror é quando o assassino corre atrás da vítima com uma faca; e o
horror é o resultado, o cadáver ensanguentado. Nosso filme é 75% pavor, 20% terror e 5% horror” (“Exclusive
Interview: YellowBrickRoadDirectors Jesse Holand and Andy Mitton” – Live
for Films).
Holland
prefere a palavra “estranho” a “pavor”, fazendo uma referência ao conceito
freudiano de “Uncanny” – o Estranho. Freud sustenta que
as pulsões inconscientes provêem da inesperada erupção de medos que foram por
muito tempo reprimidos. O inconsciente é o retorno do reprimido, a perturbadora
fusão entre o conhecido e o desconhecido. De um lado essa pulsão reprimida é
monstruosa, chocante, motivo pelo qual foi a muito escondido no inconsciente.
Ao mesmo tempo essa mesma energia inconsciente deve necessariamente retornar por
ser a força essencial da motivação e organização psíquica.
A
narrativa de YellowBrickRoad é magistral em progressivamente mostrar ao espectador
a irrupção do Estranho no cotidiano: tudo que ocorre no filme é familiar (a
música espectral, as referências ao Mágico
de Oz, os personagens clichês em um thriller de terror na floresta etc.),
porém colocado fora do lugar, o que causa estranheza tanto para os personagens
como para o espectador.
Uma trágica metalinguagem
Diante
dos estranhos fenômenos, os pesquisadores elaboram três hipóteses para tentar
explicar racionalmente todos os estranhos fenômenos: (a) erupções solares,
geomorfologia e magnetismo; (b) presença humana; (c) Alucinação coletiva ou
psicose contagiosa.
Aqui,
o filme se inscreve na tendência metalinguística que filmes independentes
recentes estão seguindo. A lenda de uma cidade inteira ter ficado fascinada com
o simbolismo do filme O Mágico de Oz em
1940 e todos terem tentado repetir a experiência de Dorothy de seguir para o
Norte, em busca da Cidade de Esmeralda, é a referência da própria relação dos
espectadores com o cinema. Uma cidade inteira tentou fugir das obrigações
cotidianas em busca da realização do simbolismo mágico da Cidade de Esmeralda.
Nesse
ponto, YellowBrickRoad se assemelha
ao filme clássico: assim como no final Dorothy levanta a cortina e descobre que
Oz não é um mágico e que tudo o que ela procurava já estava o tempo inteiro
dentro de si mesma, da mesma forma a equipe de pesquisadores descobrirão ao
final uma estranha autoreferência cinematográfica – de que, na verdade, a indústria
do entretenimento oferece para nós continuamente esperança de que é possível
escapar da nossa triste rotina, mas apenas encontramos os nosso medos mais inconscientes.
E a equipe de pesquisadores descobrirá
isso da pior maneira na estrada de tijolos amarelos.
Ficha Técnica
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Título: YellowBrickRoad
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Diretor: Jesse Holand, Andy Mitton
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Roteiro: Jesse Holand, Andy Mitton
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Elenco: Cassidy Freeman, Anessa Ramsey, Clark Freeman, Michael Laurino,
Lee Wilkof
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Produção: Points North Films
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Distribuição: The Collective
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Ano: 2010
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País: EUA
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