Cresce o número de
divórcios no País, mas o mercado de casamentos é promissor com uma expectativa
de movimentar 16 bilhões de reais em 2013. Como explicar o paradoxo de uma
instituição que simbolicamente se esvazia diante de formas alternativas de
relacionamentos afetivos, mas que economicamente cresce como mercado de consumo
de bens e serviços? Talvez encontremos uma pista nas fotografias de casamento.
Com a ajuda da Semiótica, podemos descobrir no sistema de significados dessas
fotografias estratégias irônicas e de autodistanciamento que explicariam como
noivos e familiares perpetuam uma instituição cada vez mais psiquicamente
colocada em xeque.
Acompanhamos um curioso fenômeno
próprio de uma sociedade midiatizada como a que vivemos: a sobrevida de
instituições sociais tradicionais por meio de uma espécie de “autoconsciência
irônica”. Instituições que foram esvaziadas simbolicamente em sua autoridade,
legitimidade e significado (seja social, econômico, religioso, metafísico etc.)
pelas transformações sócio-históricas, mas que permanecem como “instituições
zumbis” que ganham uma sobrevida ao serem mercantilizadas e transformadas em
células de consumo dentro do sistema econômico.
A família seria uma dessas
instituições, como já vimos em postagens anteriores (veja links abaixo): a
perda da autoridade paterna tem uma relação direta com a idealização da família
perfeita presente nos comerciais de produtos matinais e de sabão em pó. Ao
mesmo tempo, acompanhamos o cultivo de um autodistanciamento irônico através da
crítica corrosiva em animações como “Os Simpsons” ou “The Family Guy” onde pais
e filhos riem de si mesmos.
"The Family Guy": autodistanciamento irônico necessáriopara suportar a instituição Família |
Outro caso exemplar é a da
instituição do Casamento. Muito se fala, escreve-se e pesquisa-se sobre o seu
esvaziamento simbólico e crise diante de formas alternativas de relacionamentos
afetivos (relacionamentos abertos, poligamia, poliandria, monogamia sequencial,
casamento sartreano etc.), mas o fato é que o casamento tradicional mantém-se
e, pelo menos, economicamente se fortalece: mais de um milhão de casamentos são
feitos por ano no Brasil, com uma expectativa de movimentação nesse mercado de 16 bilhões de
reais em 2013, 8% a mais do que no ano passado.
Paradoxalmente, cresce o número
de divórcios no País: segundo dados do IBGE, em 2011 o número de divórcios
atingiu seu maior valor desde 1984 – 2,6 por mil habitantes, totalizando 300.000
divórcios. Isso sem falar que esses mesmos dados apontam que 80% dos
entrevistados se declaram decepcionados com o casamento e 20% apenas “toleram”.
Como explicar tão paradoxo ou
sobrevivência de uma instituição que teria tudo para entrar em profunda crise?
Talvez a Semiótica nos dê algumas pistas. Se toda produção cultural humana é um
documento porque representa sintomas de uma determinada época, talvez as
fotografias de casamento nos forneçam algumas respostas de como os indivíduos
constroem significações recorrentes e padrões que apontem para estratégias
simbólicas que ajudem a sobrevivência dessa instituição.
Como corpus de análise vamos pegar um conjunto de 136 fotografias de
três álbuns de casamento.
Um sistema distintivo
Olhando a extensão dessas 136
fotografias e procurando nelas padrões e recorrências, podemos claramente
perceber que elas se organizam dentro de um rígido sistema de distinções: Antes
(Dia da Noiva)/Durante - A Cerimônia (Igreja)/Depois-Festa. Esse triplo recorte
de significações pode ainda ser subdividido em classes de equivalência (≡) da
maneira que se segue:
[Dia da Noiva ≡ Making
of]; [Cerimônia ≡ Sagrado]; [Ao ar livre ≡ Natureza]; [Festa ≡ Profano]; [Bolo
dos noivos ≡ autodistanciamento irônico].
O Making of
Desde que o DVD se popularizou, o making of se tornou uma ferramenta
promocional tão poderosa que, muitas vezes, é melhor do que o próprio filme. Se
a força do cinema era a ilusão e a fantasia, com o making of a ilusão é
desconstruída e a cenografia e efeitos especiais explicados didaticamente ao
público, detalhes de produção, realização e repercussão.
O making of dá uma relação de autodistanciamento diante do filme, como se o custo dos efeitos e o grau de dificuldade da produção valorizassem
mais o filme do que a qualidade da própria história contada. O making of igualmente evolui nos vídeos e
álbuns de fotografia de casamentos. Nessa classe de equivalência encontramos as
noivas em spas e cabeleireiras, em três tipos de fotos: flagrantes
(instantâneos com maquiadores, noiva imersa em banheira etc. – em geral em
preto e branco ou sépia para dar um aspecto “documental”), posadas (noiva pronta
posando antes de sair para a cerimônia, noiva posando com os cosméticos mais
caros) e compostas (fotos simbólicas, com os anéis do casamento ao lado de
cosméticos que produzirão a noiva, a grinalda dependurada em uma parede
adornada, etc.).
A equivalência de significação é
óbvia: demonstração do quão dispendiosa é a produção para valorizarmos o que
veremos adiante. Assim como o making of
do filme “Titanic” (por favor, sem trocadilhos com navios que afundam!)
valoriza a narrativa com a demonstração dispêndio e complexidade da produção.
Encontramos aqui a primeira evidência de esvaziamento simbólico do casamento: é
como se o Dia da Noiva fosse uma estratégia de saturação sígnica para tentar
preencher de significado o ritual do casamento, nem que seja por meio da
demonstração de despesa, luxo e desperdício.
O Sagrado e a Natureza
Podemos considerar as classes de
equivalência [Cerimônia ≡ Sagrado] e [Ao Ar Livre ≡ Natureza] o “recheio” de
todo o sistema semiológico do Casamento por ser, por assim dizer, o “núcleo
duro” das significações: estão nessas classes de frequência os simbolismos mais
arquetípicos ou ancestrais que ainda subsistem na contemporaneidade.
Mas, como podemos perceber,
também enfrentam um processo de esvaziamento para assumirem um aspecto
semiótico menos “pesado”, mais light. Por exemplo, nas fotos dos noivos no
altar há um forte contraste em relação a álbuns de casamentos antigos (quer
dizer, dos anos 1970 para trás): o padre é colocado no mesmo nível dos noivos
(diferente do passado, quase sempre em um patamar acima em púlpitos ou altares)
e os enquadramentos não mais são em plano geral para posicionar os noivos
diante da nave e altar com a totalidade dos ícones cristãos que, simbolicamente,
legitimavam e dava sentido a toda a cerimônia. Agora os enquadramentos são mais
fechados (close up, plano médio e planos
detalhe), concentrados apenas nos noivos e o padre como um personagem
periférico que apenas segura o microfone para os noivos fazerem seus votos.
Em outras palavras, na classe de
equivalência [Cerimônia ≡ Sagrado] o significado religioso é reduzido a uma
condição periférica e até cenográfica. O que temos nessa classe é a
signalização do Sagrado e do religioso, a construção cênica de uma atmosfera. É
sintomático que para os cinegrafistas o pior momento de uma cerimônia de
casamento seja a liturgia (o que deveria ser o mais importante, pois é o
momento que dá todo sentido ao ritual), porque, dizem, “nada acontece”: todos
ficam parados ouvindo o sacerdote. Entra em ação todo o aparato de edição,
efeitos especiais e trilha musical para tentar aliviar “o peso” do simbolismo
religioso.
A classe de equivalência [Ao Ar
Livre ≡ Natureza] corresponde às fotos externas em praças, jardins, limusines,
etc. É marcante a presença da equivalência simbólica com a Natureza, pela
presença massiva de árvores, flores, folhagens, arranjos, buquê, fotos em
contra luz com por do Sol, montanhas ao fundo, diante de fontes etc. Também é
visível a hegemonia de fotos somente com a noiva como integrada ao entorno natural.
Estamos aqui diante de um simbolismo arquetípico: desposada pelo marido, a
noiva é como que retirada da Natureza e trazida para o interior da Cultura, a
Cerimônia). Como elemento da Natureza é um personagem neutro, uterino: é o
corpo reprodutor, a garantia da continuidade da espécie.
Se na classe de equivalência
anterior os recursos sígnicos esvaziam o sentido simbólico da cerimônia, nessa
classe os simbolismos arquetípicos da mulher associados à Natureza se mantêm
destacados.
O Profano
Na classe de equivalência [Festa
≡ Profano] encontramos uma transformação fundamental na significação do
/Profano/. O que caracteriza a festa no sentido antropológico é a natureza de
comunhão (partilhar comida e bebida), purificação (fogo e água), renovação e
fertilidade (alimentos fálicos e afrodisíacos) e inversão da ordem cotidiana –
homem que vira mulher, embriaguês, exacerbação dos sentidos etc. Essa é a
dimensão simbólica do profano que nas fotografias é resignificada, dessa vez dentro
do imaginário do desabafo e do escapismo: afrouxar ou tirar a gravata, tirar a
grinalda, ficar descalço.
Nas fotos a narrativa é a do
desabafo, da explosão após horas de contenção em papéis e cerimônias
artificiais e desnecessárias. Inicia aqui o fechamento do sistema semiológico
com autodistanciamento irônico, que será significado na próxima classe de
equivalência: [bolo dos noivos ≡ autodistanciamento irônico].
O bolo de casamento, símbolo máximo da festa profana
porque condensa os significados de /comunhão/renovação/fertilidade/purificação/,
é transformado pelo sistema semiológico do casamento em ícone máximo do
autodistanciamento irônico principalmente nas cenas sugeridas pelos bonecos que
representam os noivos: a noiva que fala ao telefone enquanto o noivo veste uma
camisa de time de futebol segurando um copo de cerveja (o prenúncio do tédio da
rotina conjugal), o noivo que jogou uma boia na noiva e a puxa com uma corda
(possessão) ou a noiva que agarra o noivo que tenta fugir (ciúme e traição).
Para o historiador norte-americano Christopher
Lasch, quando o cotidiano é percebido como pouco mais do que movimentos sem
sentido e quando as rotinas sociais, antes elevadas à dignidade dos rituais,
degeneram em representações de papéis, as pessoas procuram escapar da sensação
de inautenticidade criando uma distância irônica de sua rotina diária. É o
refúgio em piadas, zombaria e cinismo.
Considerações finais
Por isso, nessa classe de frequência a Festa se
degenera em desabafo, cinismo e ironia.
Olhando em perspectiva esse sistema semiológico podemos
descrevê-lo como estruturado a partir de um “núcleo duro” simbólico onde, de um
lado, a significação litúrgica da cerimônia é esvaziada ou signalizada para
tornar-se mais “light” e o entorno da Igreja reduzido a cenografia ou em uma
atmosfera diluída de religiosidade; e do outro, a associação arquetípica entre
a noiva e a Natureza, não só mantida como reforçada pela retórica das fotos - veja diagrama abaixo.
Fechando o sistema temos nas fronteiras as classes
de frequência do Dia da Noiva e do Bolo da Noiva, ambos marcados pelo
autodistanciamento irônico: o making of
que procura dar sentido ao ritual do casamento não tanto pelo seu conteúdo
simbólico, mas pelo dispêndio da produção; e o bolo da noiva como ironia e
cinismo ao se autodistanciar da realidade futura conjugal como uma fatalidade
que não pode ser levada a sério.
Essa pesquisa semiótica inicial das fotografias de
casamento talvez forneça essa pista para o porquê do paradoxo da instituição
casamento se manter apesar do seu esvaziamento e crise apontada pelas estatísticas
de divórcios: a instituição se mantém pelo autodistanciamento irônico.
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