domingo, julho 28, 2013

Jornal Nacional e o sorriso do gato de Alice


Dando prosseguimento à nossa perigosa aventura de localização e desmontagem de bombas semióticas, nos defrontamos com um novo e mais letal tipo porque detentor de um efeito tóxico e de longo prazo: a comunicação não verbal do Jornal Nacional da TV Globo. A melhor analogia para entender essa bomba é o sorriso do gato de “Alice no País das Maravilhas” – o seu sorriso permanecia no ar, mesmo quando o gato desaparecia lentamente. O principal telejornal da emissora possui um complexo sistema semiológico para simular espontaneidade de gestos, sobrancelhas levantadas, mãos agitadas, locuções carregadas de vogais e pausas etc. Uma estratégia linguística para, assim como o sorriso do gato de Alice, os signos verbais permanecerem na memória mesmo depois que a notícia for esquecida ou, talvez, nem assimilada. O propósito? Disseminar signos não verbais que sinalizem uma difusa atmosfera de caos, anomia e instabilidade.

No capítulo 6 do livro Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, Alice encontra o gato de Chershire e pergunta para ele se há algum lugar onde não exista gente louca e como chegar lá. O sorridente gato responde que todos são loucos, inclusive ele e Alice e desaparece lentamente deixando apenas o seu sorriso. O gato é o único personagem na fábula que Alice se refere como “amigo”: o seu sorriso se destaca e se autonomiza da cabeça felina. Muitos significados e simbolismos foram atribuídos a esse personagem (sorriso lunar, autoconsciência de Alice de que tudo se tratava de um sonho etc.), mas uma coisa fica evidente: o poder da comunicação não verbal do gato – pouco importa o que ele dizia, seu sorriso enigmático que permanecia no ar era o mais importante.

Pois todas as noites, em rede nacional pela TV, repete-se essa cena surrealista narrada por Carroll: sobrancelhas, olhos, testas franzidas e mãos sobre uma bancada ganham tanta poder que se tornam mais importantes que a própria notícia – são índices de um “contínuo midiático atmosférico”, de um clima do estado da Nação. Por isso, enquadram-se em uma metódica e recorrente “bomba semiótica” que, principalmente desde as manifestações de rua de junho, vem sendo detonada de segunda a sábado no Jornal Nacional da TV Globo.

Primeiro telejornal de rede da história da televisão brasileira, esse noticiário convive com uma interessante contradição: é o telejornal de maior audiência da emissora, ponte entre duas novelas do horário nobre mais caro da mídia nacional. Por isso, é a oportunidade única para expressar a linha editorial e ideológica do grupo de comunicações Globo. Mas, ao contrário do telejornal do horário mais tardio da emissora (o Jornal da Globo) onde Carlos Alberto Sardenberg e William Waack têm a liberdade de “tricotar” à vontade em cima dos infográficos catastróficos da economia brasileira, o Jornal Nacional tem que apresentar, no mínimo, uma aparência de isenção e objetividade jornalística.
A contradição entre a oportunidade da Globo
divulgar seu posicionamento político
no horário nobre e a necessidade de
criar uma aparência de
isenção jornalística

Como resolver essa contradição? Através do arsenal fono-gestual-fisionômico da comunicação não verbal.

Sobre as manipulações e imparcialidades da pauta, edição e escolha das fontes pelo Jornal Nacional já é sabido até pelo mundo mineral. Exemplos não faltam. Mas tudo isso se restringe ao campo ideológico-político para ser discutida por acadêmicos e militantes políticos. Denúncias e discussões em torno dentro desse campo se restringem aos críticos de comunicação.

Se forem verdadeiras as descobertas do pesquisador norte-americano Paul Lazarsfeld feitas nos anos 1940 de que nove em cada dez receptores de meios de comunicação estão desatentos em relação aos conteúdos e que a TV é uma das mídias cuja recepção é das mais dispersivas, então temos que encontrar as bombas semióticas de destruição em massa em outro campo: na dimensão não verbal da comunicação.

O sistema semiológico do Jornal Nacional


Desde a escalada de manifestações de rua em junho, passando pela Copa das Confederações até a atual visita do Papa na Jornada Mundial da Juventude há uma atmosfera de manifestações permanente: multidões nas ruas em passeatas, revindicações, confrontos e depredações. Para o Jornal Nacional, a visita do Papa é uma espécie de novo capítulo nesse verdadeiro plantão de protestos: imagens de multidões na praia de Copacabana para ver a missa celebrada do papa aproximam-se metonimicamente, em um mesmo bloco de notícias, com imagens de depredações de black blocks na Avenida Paulista em São Paulo.

E na bancada do Jornal Nacional índices vocais, gestuais e fisionômicos dos âncoras pontuam e reforçam essa atmosfera. Portanto, vamos tentar encontrar recorrências desses elementos não verbais para montar o seu sistema semiológico. Embora esses elementos simulem serem índices (sinais espontâneos da subjetividade dos apresentadores William Bonner e Patrícia Poeta), podemos encontrar padrões ou classes de equivalência que seguidamente pontuam o noticiário. Isso demonstraria que, ao contrário, possuem uma natureza simbólica e arbitrária. E, como o gato de Alice, permanecem no ar mesmo depois que a notícia foi esquecida ou nem mesmo assimilada pelo espectador. Resta apenas a impressão de uma atmosfera difusa que dominaria o País: anomia, caos e instabilidade.

O âncora


O âncora: a confusão entre
enunciado e enunciação
Em primeiro lugar temos que entender o papel do âncora no macrodiscurso do Jornal Nacional. Se na semiótica o termo ancoragem se refere a por em relação duas grandezas semióticas diferentes como o quadro e seu nome ou a fotografia e sua legenda, no telejornal ocupa um duplo papel semelhante: fazer a passagem entre diversas matérias, reportagens (muitas vezes com diferentes texturas de imagens – videotape, webcam, videoamadores etc.,) e sessões dando continuidade e uniformidade para que, no todo, o telejornal seja agradável ao espectador; e a personalização do apresentador através de uma deliberada confusão entre enunciado (o conteúdo da notícia) e a enunciação - a simulação de interação com o espectador através do teleprompter (simula falar “olhos nos olhos”) e a representação de si mesmo por meio de um complexo sistema de signos não verbais aparentemente espontâneos e que definiriam a “personalidade” ou “credibilidade” do apresentador.

Shifters e classes de equivalência (≡)


Dentro desse período analisado (junho/julho) encontramos os chamados shifters (ou “engatadores”), índices que reúnem em si o laço existencial e o laço convencional, isto é, estados “emocionais” que parecem emergir da subjetividade do apresentador, mas se originam de uma grade semiológica bem organizada: /Tensão, Preocupação/, /Contentamento/, /Desaprovação/, /Aprovação/ e /Neutro, Editorial/.

Eles irão “engatar-se” em elementos não verbais visíveis e estudados formando as seguintes classes de equivalência que, para os limites dessa postagem, envolveriam o gestual e o fisionômico:

(a) [testa franzida (Bonner), olho semicerrado (Bonner), olho arregalado (Poeta), ambas sobrancelhas erguem-se em movimentos rápidos (Bonner) duas sobrancelhas se erguem e se mantem por mais tempo (Poeta), mãos agitadas (Bonner) e fechadas (Poeta), cabeça maneando de cima para baixo (Bonner) ≡ tensão, preocupação];

(b) [sorriso aberto (Poeta), sorriso discreto (Bonner) olhos com pálpebras relaxadas (Poeta), cabeça inclinado para um lado (Poeta), cabeça maneando rapidamente para direita e esquerda (Bonner), sobrancelhas se erguem numa frequência menor (Poeta) ≡ Contentamento];

(c) [lábios em uma espécie de sorriso atravessado (Poeta), sobrancelhas erguidas mantidas erguidas por mais tempo (Poeta), sobrancelha direita ergue-se constantemente (Bonner), punhos se fecham (Bonner), cabeça maneando de cima para baixo (Bonner) ≡ Desaprovação];

O poder letal da comunicação não verbal
(d) [lábios com sorriso atravessado (Poeta) sobrancelhas se erguem em movimentos rápidos (Poeta), sobrancelha direita ergue-se seguidas vezes (Bonner), olhos mais apertados (Bonner) cabeça maneando de cima para baixo (Poeta e Bonner) ≡ Aprovação];

(e) [mãos mais juntas (Poeta), corpo se projeta para frente (Poeta) rostos e lábios sem expressividade e sobrancelhas levantam-se muito pouco ≡ Neutro/Editorial] – Obs.: apenas os signos não verbais da Patrícia Poeta foram analisados nessa classe de equivalência por que apenas ela leu um editorial sobre a postura do telejornalismo da Globo na cobertura das manifestações.

Aspectos de locução


Discutir os aspectos vocais, fonoaudiológicos e de locução iria além dos limites de espaço dessa postagem, mas podemos enumerar alguns aspectos iniciais. Para além da óbvia observação da padronização das locuções pela eliminação de regionalismos e sotaques criando uma nova língua brasileira (o “globês”), há alguns aspectos decisivos para o funcionamento das classes de equivalência listadas acima: para os shifters “engatarem” o existencial com o convencional (isto é, simular a espontaneidade dos índices de subjetividade dos apresentadores para haver a confusão enunciado/enunciação), é necessário que seja diminuída a fluência da fala, para não denunciar a leitura do teleprompter.

Por isso, a locução produz valores mais altos de pausas silenciosas como indicadores temporais de um discurso não planejado, como índices da complexidade no planejamento verbal. O que difere da antiga linguagem radiofônica como a do antigo Repórter Esso, com voz empostada, fluência e sem pausas. E ainda temos a profusão da utilização de articuladores de discurso ou conectores como “isto é”, “isto quer dizer”, “embora”, “explicando melhor” etc. para criar a simulação de um esforço espontâneo do apresentador em buscar coesão textual - maiores detalhes veja a tese de doutorado de Cláudia Cotes "O Estudo dos Gestos Vocais e Corporais no Telejornalismo Brasileiro" - clique aqui.

Repórter Esso (1952-1970): TV em
estilo radiofônico
Outro aspecto, dessa vez de valor retórico, é a pronúncia das vogais. Há um constante alongamento de vogais abertas ou nasais e agudização na pronúncia das vogais. Ao contrário do passado, na locução do Repórter Esso as vogais eram pronunciadas de forma mais fechada e apenas alongada no final de grupo prosódico, com narrativa hiperarticulada e próxima da escrita.

As vogais carregam a melodia que exprimem emoções e atitudes do falante. Não é à toa que os refrões das músicas pop brasileiras são carregadas de vogais – veja links abaixo.

Concluindo: toda a complexa estratégia do sistema semiológico não verbal do Jornal Nacional tem dois claros objetivos: primeiro, conferir espontaneidade aos shifters para que simulem terem vínculo existencial com os locutores; segundo, produzir o efeito gato de Alice: dada a dispersão e a pouca fixação dos conteúdos informativos, o que deve permanecer é a imagem de sobrancelhas levantadas, senhos franzidos e mãos agitadas. Assim como no sorriso do gato da fábula de Alice que permanece mesmo depois que a cabeça desaparece, esses índices permanecerão como sinais de uma difusa atmosfera carregada e anômica.

Por ser uma bomba semiótica de efeito latente e de longo prazo, ela é mais letal do que caracteres e caracteres de contra-informações, desmentidos e denúncias de manipulação na edição. As denúncias de manipulação apelam para a Rzão, enquanto as bombas não verbais incidem na dimensão emocional e afetiva.

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review