Dando prosseguimento à
nossa perigosa aventura de localização e desmontagem de bombas semióticas, nos
defrontamos com um novo e mais letal tipo porque detentor de um efeito tóxico e
de longo prazo: a comunicação não verbal do Jornal Nacional da TV Globo. A
melhor analogia para entender essa bomba é o sorriso do gato de “Alice no País
das Maravilhas” – o seu sorriso permanecia no ar, mesmo quando o gato
desaparecia lentamente. O principal telejornal da emissora possui um complexo
sistema semiológico para simular espontaneidade de gestos, sobrancelhas
levantadas, mãos agitadas, locuções carregadas de vogais e pausas etc. Uma
estratégia linguística para, assim como o sorriso do gato de Alice, os signos
verbais permanecerem na memória mesmo depois que a notícia for esquecida ou, talvez, nem
assimilada. O propósito? Disseminar signos não verbais que sinalizem uma difusa
atmosfera de caos, anomia e instabilidade.
No capítulo 6 do livro Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, Alice
encontra o gato de Chershire e pergunta para ele se há algum lugar onde não
exista gente louca e como chegar lá. O sorridente gato responde que todos são
loucos, inclusive ele e Alice e desaparece lentamente deixando apenas o seu
sorriso. O gato é o único personagem na fábula que Alice se refere como
“amigo”: o seu sorriso se destaca e se autonomiza da cabeça felina. Muitos
significados e simbolismos foram atribuídos a esse personagem (sorriso lunar,
autoconsciência de Alice de que tudo se tratava de um sonho etc.), mas uma
coisa fica evidente: o poder da comunicação não verbal do gato – pouco importa
o que ele dizia, seu sorriso enigmático que permanecia no ar era o mais
importante.
Pois todas as noites, em rede
nacional pela TV, repete-se essa cena surrealista narrada por Carroll: sobrancelhas,
olhos, testas franzidas e mãos sobre uma bancada ganham tanta poder que
se tornam mais importantes que a própria notícia – são índices de um “contínuo
midiático atmosférico”, de um clima do estado da Nação. Por isso, enquadram-se em
uma metódica e recorrente “bomba semiótica” que, principalmente desde as
manifestações de rua de junho, vem sendo detonada de segunda a sábado no Jornal
Nacional da TV Globo.
Primeiro telejornal de rede da
história da televisão brasileira, esse noticiário convive com uma interessante
contradição: é o telejornal de maior audiência da emissora, ponte entre duas novelas
do horário nobre mais caro da mídia nacional. Por isso, é a oportunidade única
para expressar a linha editorial e ideológica do grupo de comunicações Globo.
Mas, ao contrário do telejornal do horário mais tardio da emissora (o Jornal da Globo) onde Carlos Alberto Sardenberg e
William Waack têm a liberdade de “tricotar” à vontade em cima dos infográficos catastróficos
da economia brasileira, o Jornal Nacional tem que apresentar, no mínimo, uma
aparência de isenção e objetividade jornalística.
A contradição entre a oportunidade da Globo divulgar seu posicionamento político no horário nobre e a necessidade de criar uma aparência de isenção jornalística |
Como resolver essa contradição?
Através do arsenal fono-gestual-fisionômico da comunicação não verbal.
Sobre as manipulações e
imparcialidades da pauta, edição e escolha das fontes pelo Jornal Nacional já é
sabido até pelo mundo mineral. Exemplos não faltam. Mas tudo isso se restringe
ao campo ideológico-político para ser discutida por acadêmicos e militantes
políticos. Denúncias e discussões em torno dentro desse campo se restringem aos
críticos de comunicação.
Se forem verdadeiras as descobertas
do pesquisador norte-americano Paul Lazarsfeld feitas nos anos 1940 de que nove
em cada dez receptores de meios de comunicação estão desatentos em relação aos
conteúdos e que a TV é uma das mídias cuja recepção é das mais dispersivas,
então temos que encontrar as bombas semióticas de destruição em massa em outro
campo: na dimensão não verbal da
comunicação.
O sistema semiológico do Jornal Nacional
Desde a escalada de
manifestações de rua em junho, passando pela Copa das Confederações até a atual
visita do Papa na Jornada Mundial da Juventude há uma atmosfera de
manifestações permanente: multidões nas ruas em passeatas, revindicações,
confrontos e depredações. Para o Jornal Nacional, a visita do Papa é uma
espécie de novo capítulo nesse verdadeiro plantão de protestos: imagens de multidões
na praia de Copacabana para ver a missa celebrada do papa aproximam-se metonimicamente,
em um mesmo bloco de notícias, com imagens de depredações de black blocks na Avenida Paulista em São
Paulo.
E na bancada do Jornal Nacional
índices vocais, gestuais e fisionômicos dos âncoras
pontuam e reforçam essa atmosfera. Portanto, vamos tentar encontrar
recorrências desses elementos não verbais para montar o seu sistema semiológico.
Embora esses elementos simulem serem índices (sinais espontâneos da
subjetividade dos apresentadores William Bonner e Patrícia Poeta), podemos
encontrar padrões ou classes de equivalência que seguidamente pontuam o
noticiário. Isso demonstraria que, ao contrário, possuem uma natureza simbólica e arbitrária. E, como o gato de Alice,
permanecem no ar mesmo depois que a notícia foi esquecida ou nem mesmo assimilada
pelo espectador. Resta apenas a impressão de uma atmosfera difusa que dominaria
o País: anomia, caos e instabilidade.
O âncora
O âncora: a confusão entre enunciado e enunciação |
Em primeiro lugar temos que
entender o papel do âncora no macrodiscurso do Jornal Nacional. Se na semiótica
o termo ancoragem se refere a por em relação duas grandezas semióticas
diferentes como o quadro e seu nome ou a fotografia e sua legenda, no
telejornal ocupa um duplo papel semelhante: fazer a passagem entre diversas
matérias, reportagens (muitas vezes com diferentes texturas de imagens –
videotape, webcam, videoamadores etc.,) e sessões dando continuidade e
uniformidade para que, no todo, o telejornal seja agradável ao espectador; e a
personalização do apresentador através de uma deliberada confusão entre
enunciado (o conteúdo da notícia) e a enunciação - a simulação de interação com
o espectador através do teleprompter (simula
falar “olhos nos olhos”) e a representação de si mesmo por meio de um complexo
sistema de signos não verbais aparentemente espontâneos e que definiriam a “personalidade”
ou “credibilidade” do apresentador.
Shifters e classes de equivalência (≡)
Dentro desse período analisado
(junho/julho) encontramos os chamados shifters
(ou “engatadores”), índices que reúnem em si o laço existencial e o laço
convencional, isto é, estados “emocionais” que parecem emergir da subjetividade
do apresentador, mas se originam de uma grade semiológica bem organizada: /Tensão,
Preocupação/, /Contentamento/, /Desaprovação/, /Aprovação/ e /Neutro, Editorial/.
Eles irão “engatar-se” em
elementos não verbais visíveis e estudados formando as seguintes classes de
equivalência que, para os limites dessa postagem, envolveriam o gestual e o
fisionômico:
(a) [testa franzida (Bonner),
olho semicerrado (Bonner), olho arregalado (Poeta), ambas sobrancelhas erguem-se
em movimentos rápidos (Bonner) duas sobrancelhas se erguem e se mantem por mais
tempo (Poeta), mãos agitadas (Bonner) e fechadas (Poeta), cabeça maneando de
cima para baixo (Bonner) ≡ tensão, preocupação];
(b) [sorriso aberto (Poeta),
sorriso discreto (Bonner) olhos com pálpebras relaxadas (Poeta), cabeça
inclinado para um lado (Poeta), cabeça maneando rapidamente para direita e
esquerda (Bonner), sobrancelhas se erguem numa frequência menor (Poeta) ≡
Contentamento];
(c) [lábios em uma espécie de
sorriso atravessado (Poeta), sobrancelhas erguidas mantidas erguidas por mais
tempo (Poeta), sobrancelha direita ergue-se constantemente (Bonner), punhos se
fecham (Bonner), cabeça maneando de cima para baixo (Bonner) ≡ Desaprovação];
O poder letal da comunicação não verbal |
(d) [lábios com sorriso
atravessado (Poeta) sobrancelhas se erguem em movimentos rápidos (Poeta),
sobrancelha direita ergue-se seguidas vezes (Bonner), olhos mais apertados
(Bonner) cabeça maneando de cima para baixo (Poeta e Bonner) ≡ Aprovação];
(e) [mãos mais juntas (Poeta),
corpo se projeta para frente (Poeta) rostos e lábios sem expressividade e
sobrancelhas levantam-se muito pouco ≡ Neutro/Editorial] – Obs.: apenas os
signos não verbais da Patrícia Poeta foram analisados nessa classe de
equivalência por que apenas ela leu um editorial sobre a postura do
telejornalismo da Globo na cobertura das manifestações.
Aspectos de locução
Discutir os aspectos vocais,
fonoaudiológicos e de locução iria além dos limites de espaço dessa postagem,
mas podemos enumerar alguns aspectos iniciais. Para além da óbvia observação da
padronização das locuções pela eliminação de regionalismos e sotaques criando
uma nova língua brasileira (o “globês”), há alguns aspectos decisivos para o
funcionamento das classes de equivalência listadas acima: para os shifters “engatarem”
o existencial com o convencional (isto é, simular a espontaneidade dos índices
de subjetividade dos apresentadores para haver a confusão enunciado/enunciação),
é necessário que seja diminuída a fluência da fala, para não denunciar a
leitura do teleprompter.
Por isso, a locução produz
valores mais altos de pausas silenciosas como indicadores temporais de um
discurso não planejado, como índices da complexidade no planejamento verbal. O
que difere da antiga linguagem radiofônica como a do antigo Repórter Esso, com
voz empostada, fluência e sem pausas. E ainda temos a profusão da utilização de
articuladores de discurso ou conectores como “isto é”, “isto quer dizer”, “embora”,
“explicando melhor” etc. para criar a simulação de um esforço espontâneo do
apresentador em buscar coesão textual - maiores detalhes veja a tese de doutorado de Cláudia Cotes "O Estudo dos Gestos Vocais e Corporais no Telejornalismo Brasileiro" - clique aqui.
Repórter Esso (1952-1970): TV em estilo radiofônico |
Outro aspecto, dessa vez de
valor retórico, é a pronúncia das vogais. Há um constante alongamento de vogais
abertas ou nasais e agudização na pronúncia das vogais. Ao contrário do
passado, na locução do Repórter Esso as vogais eram pronunciadas de forma mais
fechada e apenas alongada no final de grupo prosódico, com narrativa
hiperarticulada e próxima da escrita.
As vogais carregam a melodia que
exprimem emoções e atitudes do falante. Não é à toa que os refrões das músicas
pop brasileiras são carregadas de vogais – veja links abaixo.
Concluindo: toda a complexa
estratégia do sistema semiológico não verbal do Jornal Nacional tem dois claros objetivos: primeiro, conferir espontaneidade aos shifters para que simulem terem vínculo existencial com os
locutores; segundo, produzir o efeito gato de Alice: dada a dispersão e a pouca
fixação dos conteúdos informativos, o que deve permanecer é a imagem de
sobrancelhas levantadas, senhos franzidos e mãos agitadas. Assim como no
sorriso do gato da fábula de Alice que permanece mesmo depois que a cabeça
desaparece, esses índices permanecerão como sinais de uma difusa atmosfera
carregada e anômica.
Por ser uma bomba semiótica de
efeito latente e de longo prazo, ela é mais letal do que caracteres e
caracteres de contra-informações, desmentidos e denúncias de manipulação na
edição. As denúncias de manipulação apelam para a Rzão, enquanto as bombas não
verbais incidem na dimensão emocional e afetiva.