A engraçada ficção científica checa “Accumulator 1” (1994) se associa a
uma longa tradição cinematográfica de representações da TV e do controle remoto
como veículos de disseminação do Mal, portais multidimensionais ou como meio de
conexão com mundos espirituais e virtuais que podemos ver em filmes como “Poltergeist”,
“Videodrome” ou “Click”. Por trás desse imaginário estaria o fascínio pelos
fenômenos eletromagnéticos que, desde a sua descoberta, sempre estiveram
associados ao oculto e ao espiritualismo. Em “Accumulator 1”, por
exemplo, a TV é um dispositivo que drena energias vitais dos espectadores que
vão animar um universo alternativo espelhado.
Se você já dormiu assistindo televisão ou sua
imagem já apareceu na TV em uma dessas enquetes que repórteres fazem nas ruas,
cuidado! Você poderá ter suas energias vitais absorvidas por uma sombria força
que emerge do tubo de imagem desse aparelho.
A associação do tubo de imagem e dos raios
catódicos da televisão com sinistras forças espirituais não é novidade no
cinema: “Poltergeist” e 1982 (onde entidades espirituais malignas se utilizam do
tubo de imagem como um portal de contato com o mundo dos encarnados) ou
“Videodrome” de 1983 onde Cronenberg sugere que a tecnologia em si mesma
conteria o impulso de dominar a carne para produzir um novo ser híbrido, são
exemplos desse fascínio místico em relação aos fenômenos da eletricidade e do
magnetismo.
Pesquisadores como Erik Davis acreditam (“Techgnosis
– myth, magic and mysticism in the age of information”, New York: Serpent Tail,
2004) que o Espiritualismo foi a primeira religião da Era da Informação. Os
fenômenos mediúnicos, mesas girantes, escritas automáticas etc. estudados por
Alan Kardec e pela Antroposofia de Madame Blavatsky e Leadbater no século XIX,
surgem simultaneamente à descoberta do eletromagnetismo e na transformação da eletricidade
em informação com o telégrafo. Os próprios fenômenos paranormais começam a ser
interpretados como fenômenos eletromagnéticos de comunicação espiritual.
Pois a alegre e satírica ficção científica checa “Accumulator 1”
(Akimulátor 1, 1994) vai fazer um surpreendente encontro irônico entre o
espiritualismo New Age, elementos de contos de fadas e uma sombria visão sobre
a TV ao melhor estilo “Poltergeist” e “Videodrome”.
Olda (Petr Forman) é uma pessoa comum que passa por um período de
depressão quase fatal. Ele atribui isso ao fato de que sua namorada terminou
com ele para ficar com o seu melhor amigo. No entanto, isso foi apenas o
gatilho para Olda se colocar em tempo integral solitário e trancado no seu
apartamento diante da TV que, estranhamente, parece lhe minar as energias
vitais.
Inconsciente é levado às pressas ao hospital. Lá conhecerá o
personagem que lhe salvará a vida: Fisarek (Zdenek Sverák), um curandeiro
espiritualista que, às escondidas dos médicos, acompanha diversos casos
semelhantes ao de Olda, dando secreta assistência no hospital. Fisarek lhe
restitui as forças com cargas de passes e energizações para lhe contar toda a
verdade: a TV é uma espécie de mundo espelhado que apenas subsiste sugando a
energia positiva dos espectadores.
Quatro anos antes do filme “Show de Truman” ser lançado,
“Accumulator 1” já explorava a ideia de confusão entre o mundo cenográfico
televisivo e a realidade: toda a suposta realidade que o telespectador
acompanha nos telejornais (guerras, tragédias, acidentes, terremotos,
revoluções, golpes militares etc.) na verdade seriam simulações elaboradas em
gigantescos estúdios com o objetivo de atrair a atenção dos telespectadores e,
assim, absorver a energia vital dos seus corpos.
Mas “Accumulator 1” vai mais além, ao explorar mais uma “maligna”
ideia: a obsessão do telejornalismo atual com o clichê do “povo fala” (enquetes
aleatórias onde transeuntes são pegos de surpresas por repórteres e
cinegrafistas para opinar sobre qualquer coisa) é mais uma estratégia de
capturar a imagem dessas pessoas, criar um duplo delas nesse mundo espelhado
televisivo que absorverá a energia do incauto telespectador no mundo real. Em
“Accumulator 1” a depressão no mundo real tem uma relação direta com a
vitalidade e energia do mundo televisivo.
O filme possui um senso de humor lunático ao melhor estilo dos
trabalhos do grupo inglês Monty Python: Olda se mune de um arsenal de pilhas e
controles remotos tornando um exterminador de TVs para desligá-las em toda
cidade; cenas das reações fisiológicas internas do corpo de Olda ao ser
submetido ao pode da TV e às injeções dos médicos; ou a sequência em que
bebidas são misturadas a um polidor de dentes gigantes em uma convenção de
dentistas etc.
O paradoxo da televisão
Em "Accumulator 1" a TV cria um universo alternativo que vive da energia drenada dos espectadores |
Esse imaginário cinematográfico sombrio sobre a tecnologia
televisiva certamente é o reflexo de um paradoxo que reside no funcionamento
dessa mídia: a televisão é uma das mídias mais bem sucedidas do século XX, mas,
por outro lado ela foi recebida com um misto de estranhamento e ceticismo. A
principal crítica era em relação à pequena tela comparada com o cinema e o grau
de dispersão do espectador em relação aos seus conteúdos.
A televisão surge na década de
30 num contexto fortemente dominado pelo cinema e o rádio. Ela é recebida com
forte ceticismo e estranhamento: ao contrário do cinema com suas imagens amplas
e bem definidas, a TV propunha um olhar para o mundo através de uma pequena
tela, com imagens cheias de interferências e fantasmas.
Por exemplo, para o cineasta
Americano Darry F. Zanuck (1902-1979), a televisão não poderia se manter muito
tempo no mercado, pois as pessoas logo se cansariam de passar a tarde olhando
um “caixote”.
A chegada da televisão polarizou
mais a curiosidade popular em relação ao objeto tecnológico em si do que a
fruição dos conteúdos da programação. A pesquisadora Adriana Paes de Barros
descreve dessa maneira as reações pitorescas da chegada da televisão em Cuiabá
no estado do Mato Grosso do Sul:
“Um desses fatos ocorreu em frente ao Banco do Brasil, na área central da cidade, onde a equipe técnica instalou um aparelho de TV. Segundo reporta Antonieta Coelho, o Sr. Leôncio, um vendedor de bilhetes de loteria, ao ver as primeiras imagens, reconheceu a pessoa de Antonieta na tela, levando um enorme susto e aproximando‑se do aparelho, retrucou inconformado: "Êah! Que que esse Niêta! Como que ocê entrou nessa caixinha! Você é tão grande, como que entrou nessa caixinha?", e foi olhar por trás para ver, e ele não acreditava como que eu estava dentro da caixinha” (BARROS, Adriana Paes, “A implantação da TV em Cuiabá: o impacto real e virtual”, ALAIC, 1998, disponível em: “A Implantação da Televisão em Cuiabá: O Impacto ... - ECA - USP”).
Ao mesmo tempo, é considerado pesquisadores
como uma das mídias mais dispersivas. Ao contrário do cinema onde a
recepção é atenta, com a TV a relação é dispersiva, tal qual a relação com um
eletrodoméstico. Por exemplo, segundo pesquisa Latin Panel realizada em 2004,
55% dos brasileiros jantam vendo TV - Latin Panel ouviu 25 mil pessoas,
representando 82% da população brasileira e 86% do potencial de consumo. Vê‑se
TV conversando, lendo o jornal. Constantemente a recepção é interrompida pelo
telefone, campainha, barulhos da rua, etc. É comum o hábito de manter a TV
ligada mesmo ao receber visitas inesperadas, como se quisesse deixar um som de
fundo para as conversas.
Mesmo a recepção publicitária (a
própria razão de a TV comercial existir) é difícil. Segundo pesquisa da agência
de publicidade SSC e Lintas Worldwide em 2005 em média, apenas 30% dos
telespectadores entrevistados ficaram atentos à TV, entre os que permaneceram
na sala durante os intervalos comerciais: 55% dividiram a atenção entre a TV e
outras atividades e 14% dedicaram‑se apenas a outras atividades, enquanto 1 %
teve uma situação indefinida.
TV e a atividade da fantasia do espectador
Como uma mídia com essa natureza tão dispersiva, capaz de provocar
estados de sonolência e letargia nos espectadores (não é à toa que existe a
função “timer” nos controles remotos) foi tão bem sucedida como veículo de
conteúdos e disseminação de modas e tendências?
Ao contrário do que parece, a TV exige uma forte atividade da
fantasia e do imaginário do espectador para preencher as lacunas informativas
produzidas pelas próprias limitações do veículo: tela pequena, enquadramentos
em close ups e planos detalhes, cortes rápidos e ritmo acelerado ajudam a
minimizar a dispersão e o efeito zapping (trocar de canais seccessivamente com
o controle remoto) acabam criando lacunas na informação. Faltam,
portanto, às imagens televisiva os planos mais abertos que contextualizaria os
personagens e as sequências.
Vemos os personagens enquadrados
em pequenos planos, dificilmente vemos atores por inteiro, ao contrário do
cinema ou teatro: poucos planos gerais, ausência de contexto
além da baixa definição da imagem levam à maior atividade da fantasia e do
imaginário do espectador.
É comum acharmos que tal ator é
mais alto ou mais forte na telinha e termos um choque ao vê‑lo na realidade, à
sua frente. Há uma discrepância entre a atividade da fantasia que preencheu os
buracos de informação e a realidade.
A linguagem dos telejornais
sensacionalistas, por exemplo, ilustra a própria natureza da mídia televisão.
Ao contrário de um telejornal sério onde as informações são mais completas (“alta
definição") deixando poucas lacunas ou espaços para a atividade da
fantasia do telespectador, nos programas sensacionalistas os fatos são mais
sugeridos do que explicados permitindo a atividade da fantasia: a imaginação do
telespectador tende a exagerar a amplitude, importância ou conseqüência dos
fatos. Tudo passa a ficar mais eletrizante e fantástico.
Isso fica mais claro na relação
da criança com a televisão. Na sua ingenuidade diante do novo veículo, ao verem
rostos em close‑up muitas crianças
creem que o resto do corpo do ator está distribuído pelos outros canais. Na
falta de conhecimento sobre a sintaxe da linguagem televisiva, a imaginação e a
fantasia preenchem a lacuna de informação. Isso pode parecer um exemplo bizarro,
mas esclarece muito o funcionamento da imaginação nos receptores adultos de
televisão.
O imaginário cinematográfico da TV
Esse amálgama entre a visão espiritualista da eletricidade e do magnetismo
e a tecnologia eletromagnética da televisão que exige uma participação ativa da
fantasia do espectador é o que alimenta esse imaginário cinematográfico da TV
ao qual pertence o filme “Accumulator 1”.
Filmes como “Click” (2006), onde a vida se funde a um controle
remoto transformando-se num vídeo interativo; “A Vida em preto e Branco”
(Pleasantville, 1998), onde um casal de adolescentes é sugado para o interior de
um sitecon dos anos 1950; sem falar os citados “Poltergeist” e “Videodrome”
testemunham esse fascínio místico pelos fenômenos eletromagnéticos onde o
fascínio pela TV é muito mais do que como meio de informação: é principalmente
como um simbólico portal para mundos virtuais e espirituais.
Link para baixar o filme (até 11/07) com a senha "locadora": WeTransfer
Legendas em português: Opensubtitles
Ficha Técnica
- Título: Accumulator 1
- Diretor: Jan Sverák
- Roteiro: Zdenek Sverák, Jan Slovák
- Elenco: Zdenek Sverák, Petr Forman, Edita Brychta, Bolek Políkva, Ladislav Smoljak
- Produção: Heureka PF
- Distribuição: Vivarto
- Ano: 1994
- País: República Checa