Um homem corre pela sua vida através de um túnel entre dois trens; uma
figura encapuzada emerge de fissuras na parede para empurrar incautos
passageiros nos trilhos do metrô; uma enigmática jovem fantasiada de urso
assombra as paisagens labirínticas do metrô. A rede ferroviária do metrô de Budapeste
se transforma em um fac-símile da comédia humana no filme “Kontroll” (2003),
estreia do diretor Nimród Antal (“Temos Vagas”, 2007; “Predadores”, 2010) e
sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho. Antal retoma o arquétipo platônico
da caverna, representado no cinema por metrôs, porões, subsolos,
estacionamentos subterrâneos, becos etc., para descrevê-lo como um microcosmo onde
o protagonista é prisioneiro e uma enigmática jovem tenta resgatá-lo. A
integração de drama, suspense, comédia e sátira resulta numa experiência visual
única e alternativa.
Antes
de dirigir típicos filmes com todas as convenções de gênero hollywoodianas como
“Temos Vagas”(Vacancy, 2007) e “Predadores” (Predators, 2010), Nimród Antal
(filhos de pais húngaros, nascido em Los Angeles e que iniciou sua carreira
cinematográfica na Hungria), dirigiu e escreveu uma pequena pérola
cinematográfica: “Kontroll” (o primeiro filme húngaro em vinte anos a ser
exibido e premiado em Cannes – Prêmio da Juventude em 2004), um estranho e
fascinante conto que mistura a crítica social ambientada nos túneis do segundo
mais antigo metrô do mundo (Budapeste) e um mundo subterrâneo repleto de
analogias místicas e gnósticas.
A
estreia de Antal como diretor não poderia ser mais promissora: o filme está
repleto de referências de outros diretores como Andrey Tarkovsky (longas
sequências com misteriosos cenários em ruínas e desolação lembrando o filme
“Stalker”), Stanley Kubrick (cenas elegantemente iluminadas com ângulos agudos,
simetrias e pontos de fugas e gangues urbanas que lembram os “Drugs” de “Laranja
Mecânica”), e o humor negro de Terry Gilliam.
O
protagonista Bulcsú (Sándor Csáyi) trabalha em uma das equipes de controle de
passageiros no metrô de Budapeste, convivendo com passageiros excêntricos,
colegas de trabalho incompetentes e uma organização hierárquica kafkiana com
chefes paranoicos e arbitrários. Ao longo do filme percebemos que Bulcsú jamais
sobe à superfície: ele come em cafeterias para passageiros e dorme encostado em
cantos nos vastos corredores de um colossal complexo subterrâneo, em meio ao
barulho das composições nos trilhos e silvos hidráulicos. Os controladores de
passageiros são odiados por todos. Eles têm que cobrar bilhetes e expulsar do
metrô todos que não pagam a passagem. Por isso são intimidados por gangues e
pequenos escroques.
Mas
as coisas pioram quando um serial killer começa a empurrar passageiros nos
trilhos para serem atropelados pelos trens. Pressionados pela companhia
metropolitana, os chefes têm que encontrar imediatamente um bode expiatório. As
suspeitas, então, começam a se voltar à figura de Bulcsú que estranhamente
nunca sobe à superfície.
O arquétipo dos mundos subterrâneos
“Kontroll”
explora um dos grandes arquétipos cinematográficos: mundos subterrâneos –
porões, metrôs, subsolos, estacionamentos subterrâneos, cavernas etc. Esse
arquétipo corresponde a um imaginário antiquíssimo, pré-socrático, cavernas
como antecâmera de um mundo subterrâneo, terra dos mortos, o meio do caminho
para o contato com deuses em uma realidade separada da humana. A busca da
sabedoria na escuridão através da incubação de sonhos em cavernas. Aqueles que
se iniciavam nesses lugares sagrados participavam de uma jornada no reino dos
mortos na esperança de encontrar uma divindade que se tornaria seu amigo ou
mentor. Tais cultos apresentavam a caverna como lugar de cura e conexão com o
transcendental mundo para além dos nossos sentidos.
A partir de Platão a caverna será apresentada como uma parábola da
limitação da percepção derivada da experiência sensorial, portanto, um lugar de
onde devemos escapar para encontrar a verdade. Essa parábola mostra a visão de
mundo do ignorante, que vive no senso comum, e do filósofo na eterna busca da
verdade. Aprisionado no interior de uma caverna, limita-se a ver sombras nas
paredes projetadas do mundo exterior - o Mundo das Ideias, oposto ao mundo das
coisas sensíveis.
Para
a pesquisadora Victoria Nelson, esse imaginário dos mundos subterrâneos
primeiro como lugar de conexão com o Divino e, depois, como microcosmo de um
universo que nos aprisiona e do qual devemos escapar reaparece com toda força
como um “sub-zeitgeist” no imaginário cinematográfico popular:
“Pense na mais profunda garagem de veículos nos últimos dez filmes de ação que tenha assistido, sempre mostrado como lugar de perigo e discórdia, onde o herói ou a heroína é atacado pelo vilão, onde perseguições de carros terminam em destruição em massa. Ou as misteriosas regiões em metros onde almas mortas se manifestam como hordas de sem-tetos. Ou os labirintos desses filmes sempre localizados sob ficcionais Chinatowns. Ou os numerosos mundos alternados ou secundários dos filmes de ficção-científica, incluindo as cavernas de misteriosos planetas como no filme Alien (1979) repletos de sinistros ovos que infectam a tripulação da nave Nostromo com um destrutivo e agressivo organismo que mata cada organismo que o hospeda. Ou a idéia, repetida de uma maneira ou outra em quase toda ficção em realidade virtual ou filme de que o que vemos em torno de nós é uma ilusão criada para mascarar uma outra realidade que reside abaixo ou acima de nós.” (NELSON. Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, p.6)
Tal qual Platão que via na
caverna a metáfora perfeita para a condição de ignorância humana “Kontroll”
focaliza o estilo de vida sonambúlico do protagonista de que por algum motivo
interno (algum bloqueio psicológico de origem traumática no passado) jamais quer
ver a luz do Sol e que apenas observa, de longe, as escadas rolantes que levam
ao mundo exterior.
Microcosmo gnóstico da condição humana
Nimród Antal transforma os túneis,
plataformas e o labirinto de corredores e salas do antigo metrô de Budapeste em
um microcosmo da condição humana. Parece que Bulcsú renunciou a algum projeto
profissional anterior importante, para se resignar em um obscuro e anônimo
trabalho de checar bilhetes de passageiros. Ele decaiu – assim como na
mitologia gnóstica o homem decaiu no cosmos físico para tornar-se prisioneiro
em uma pálida cópia da Plenitude à qual um dia pertenceu.
Bulcsú tem que se submeter a uma
paranoica e autoritária hierarquia de diretores e gerentes, às voltas com um
serial killer que empurra passageiros nos trilhos – o Mal. Preocupados com a
imagem pública do metrô precisam imediatamente achar um culpado. E Bulcsú é o
suspeito, a partir de imagens manipuladas do sistema de vídeo-vigilância. Todo
sistema de vigilância parte do princípio que todos são imediatamente suspeitos
e culpados, devendo as imagens absolvê-los. Um paralelo evidente com todos os
poderes de vigilância (Estado, religiões etc.) que buscam introjetar no homem o
medo, a culpa e o pecado.
Como querem as religiões, todo o
Mal provém do homem, personagem imperfeito que, através do pecado, trouxe o Mal
e a corrupção para a Criação de Deus.
Além disso, o sistema
burocrático estimula a competição e agressividade entre as equipes de
controladores com base no desempenho e cotas de bilhetes, uma irônica
referência à exploração do medo, dedo-durismo e o egoísmo pelos poderes.
Bulcsú sente-se
inexplicavelmente atraído por uma passageira enigmática chamada Szofi (Eszter
Balla), sempre vestida com uma fantasia de urso para exercer um emprego que a
narrativa não dá maiores informações sobre do que se trata. Tal como o
personagem Sophia das mitologias gnósticas, ela despertará em Bulcsú a necessidade
do autoquestionamento para superar seu
profundo trauma que o mantém prisioneiro naquele universo.
Uma enigmática coruja pontua
diversas vezes a narrativa, principalmente quando Bulcsú desperta dos seus
curtos intervalos de sono encostado desajeitado em algum pilar de uma plataforma
ou em cenas onde Szofi e Bulcsú contracenam. Lembra a famosa frase do filósofo
alemão Hegel: “a coruja de Minerva levanta voo somente ao anoitecer”, aludindo
a esperança de que a Filosofia e conhecimento ganhem força em momentos de crise
e obscurantismo.
E na cena que é o ápice do filme
e a fotografia do pôster promocional, a coruja observa Balla fantasiada como um
anjo estilizado segurando as mãos de Bulcsú diante das escadas rolantes da
saída de uma estação que prenunciam a luz do mundo superior. É a gnose final do protagonista.
O que torna “Kontroll” um grande
exemplo de como os arquétipos materializam-se em narrativas cinematográficas
está nessa declaração do diretor Nimród Antal sobre seu próprio filme: “Eu
tinha algo em mente para a maioria das cenas e imagens do filme quase sem
falhas, mas as pessoas interpretam de forma diferente esses momentos... O que
eu realmente aprendi nesse processo é que realmente não importa com o que acho que
eu estou fazendo, essa é a beleza da coisa, realmente, que uma vez que o filme
está lá fora e há todas essas centenas de outros olhos treinados sobre ele,
torna-se uma conversa”.
Em outras palavras, Antal não
precisa ser gnóstico para exprimir em sua narrativa fílmica elementos místicos
e esotéricos. Como diria Stephan Hoeller, “todo artista sério já é meio
gnóstico”, ou seja, a espontaneidade do diretor em “não mais importar com o que
acho que estou fazendo” talvez seja aquilo que permita esses “atos falhos”: a conexão
de diretores e roteiristas com símbolos, mitos e narrativas mitológicas que
estão no inconsciente coletivo da espécie.
Pena que desde que Antal saiu da
Hungria e continuou sua carreira no mainstream
hollywoodiano tenha perdido essa “despreocupação” com o que faz.
Ficha Técnica
- Título: Kontroll
- Diretor: Nimród Antal
- Roteiro: Jim Adler, Nimród Antal
- Elenco: Sándor Csányi, Eszter Balla, Zoltán Mucsi, Csaba Pindroch, Lajos Kovács
- Produção: Café Film
- Distribuição: THINKFilm
- Ano: 2003
- País: Hungria