Novamente a Semiótica é convocada para desmontar outra “bomba
semiótica” que detonou na mídia nesses últimos dias. E dessa vez uma bomba
plantada pela própria Polícia Federal: investigações do órgão concluíram que o boato que
levou ao pânico beneficiários do “Bolsa Família” em 12 estados foi
“espontâneo”, não havendo, portanto, causa intencional. Conclusão tão irracional, retoricamente saturada e
cientificamente sem sentido que entra na categoria das “bombas semióticas”:
artifícios letais camuflados de informação, mas que escondem construções de
sentido arbitrárias e, nesse caso, com uma novidade: se o fenômeno aconteceu porque
aconteceu, então os fenômenos da comunicação entram no terreno da tautologia e da magia.
A
Polícia Federal deu uma histórica contribuição científica que será o divisor de
águas dos estudos no campo da Comunicação. O relatório final das investigações
sobre o boato que provocou grandes filas e tumultos em agências da Caixa
Econômica Federal e casas lotéricas em 12 estados em um final de semana de maio
encerrou o caso da seguinte maneira: “foi espontâneo, não havendo como afirmar
que apenas uma pessoa ou grupo tenha causado. Conclui-se, assim, pela
inexistência de elementos que possam configurar crime ou contravenção penal”.
Essa
conclusão de “investigação de campo” é “revolucionária” por que: (a) insere na
Comunicação um elemento tautológico (o boato aconteceu porque aconteceu!). Em
outras palavras, a Polícia Federal insere um elemento animista e mágico nos
fenômenos de comunicação: o mundo é animado por forças que estabelecem bizarras
contiguidades entre fatos aparentemente aleatórios; (b) rompe com um princípio
básico da ontologia da Comunicação: a intencionalidade.
O que define o fenômeno comunicacional é a intencionalidade
do emissor (por que ele comunica? Qual sua intenção ou finalidade?) e a decisão do receptor - aceitar ou não o
“jogo” proposto pelo emissor.
Dessa
forma, a conclusão da Polícia Federal sobre a “espontaneidade” do fenômeno do
boato o tiraria o fenômeno comunicacional do campo humano e cultural para ser
transferido para o reino da natureza e da magia!
Deixando
de lado as ironias, a conclusão da Polícia Federal para o caso é mais uma
dessas “bombas semióticas” que estão explodindo na mídia nos últimos meses,
tornando cada vez mais pesada a atmosfera política atual. É uma conclusão tão
irracional, retoricamente saturada e cientificamente sem sentido que entra na
categoria das “bombas semióticas”: artifícios letais camuflados de informação,
mas que escondem construções de sentido arbitrárias e, nesse caso uma novidade,
um sentido até mágico.
Portanto,
cabe a nós desmontarmos mais essa bomba semiótica. Como sempre, uma engenharia
reversa feita a posteriori porque a
bomba já foi plantada e detonada nas grandes mídias.
Orson Welles: o pai de todos os boatos
O
boato está totalmente identificado com um espaço acústico ressonante. Diferente
de veículos como a TV e o Cinema que estimulam o espaço visual, o rádio
estimula o aspecto sensorial da ressonância: cria um ambiente plástico marcado
pela simultaneidade, invisibilidade, envolvimento, inclusão e integração.
Não
é por acaso que o pai de todos os boatos midiáticos foi a transmissão
radiofônica de “Guerra dos Mundos” em 1938 pela rádio CBS em Nova York.
Dirigido pelo ator e, então, futuro diretor de cinema Orson Welles, foi uma
adaptação feita pelo “Mercury Theater on the Air” do livro “War of the Worlds”
do escritor inglês H.G. Wells. Usando técnicas do programa de notícias “March
of the Time” da mesma CBS associando-as à linguagem de dramatização de
rádio-teatro, Welles conseguiu confundir muitos ouvintes que começaram a
acreditar que estava em curso uma invasão marciana nos EUA.
Depoimentos
como esse publicado no jornal “Herald Examiner” apresenta como foi a dinâmica
da disseminação do boato:
“Samuel Tishman de 100 Riverside Drive foi um da multidão que fugiu para as ruas depois de ouvir parte do programa de rádio. Ele declarou que centenas evacuaram suas casas temendo que a cidade estivesse sendo bombardeada. “Eu cheguei em casa por volta das 9:15 da noite quando recebi um telefonema do meu sobrinho que estava louco de medo. Contou-me que a cidade estava sofrendo bombardeios aéreos e que todos estavam sendo aconselhados a abandonarem os prédios. Eu liguei o rádio e ouvi a transmissão, confirmando o que meu sobrinho havia dito, agarrei meu chapéu e sobretudo e alguns pertences pessoais e corri para o elevador. Quando cheguei nas ruas vi centenas de pessoas correndo desorientadas em pânico. Muitos de nós correram em direção da Broadway” (“Radio Fake Scares Nation”, Herald Examiner, Chicago, 31/10/1938).
A dinâmica do boato
Nesse episódio seminal
encontramos os primeiros elementos que envolvem a disseminação do boato:
(a) É necessário um meio
“físico” condutor, uma atmosfera semioticamente carregada. Estudos posteriores
revelaram que muitas pessoas presumiram que eram nazistas, e não marcianos, que
invadiam os EUA. Era o momento da Segunda Guerra Mundial e para o imaginário
paranoico do momento, nazis, alemães e marcianos eram significações muito
próximas.
(b) Houve o elemento da
intencionalidade. Logicamente, Orson Welles declarou para a FCC (Federal
Communications Commission que apurou as
responsabilidades do evento) em Washington que jamais lhe passou pela cabeça
que as pessoas acreditariam em um história tão absurda. Mas a sua
experimentação estética inédita (a fusão da linguagem ficcional com a documental
e jornalística, hoje comum em qualquer telejornal) foi o fator causal e,
portanto, intencional.
(c) Mais tarde em 1947 Gordon
Allport e Leo Postman publicaram “A Psicologia do Rumor” onde apontam dois
fatores que estão presentes no episódio da “Guerra dos Mundos”: importância e ambiguidade. Primeiro, a notícia deve ser “importante” no sentido
de poder ser atribuída a ela pelo receptor uma novidade que resulte em seu
próprio interesse – “o que ganho ou perco com isso?”. Essa importância será
multiplicada pelo fator ambiguidade: o ineditismo deve ser tão inusitado que
deixe uma dúvida: é verdade ou mentira?
(d) Esse fator ambiguidade
corresponderia à típica comunicação dominada pelo que a Semiótica chama de signos indiciais. Como um sinal ou
fragmento que aponta para a existência de um objeto ou evento, o índice possui
uma natureza ambígua porque a sua compreensão é subjetiva e perceptiva. Ele
aponta para um referente, mas a princípio nada sabemos sobre sua intensidade e
qualidade: a fumaça aponta para a existência do fogo, mas pouco informa sobre a
extensão ou natureza. Assim como no boato o “me disseram” ou “dizem” aponta
para a existência de algo ambíguo que dependerá da decisão do receptor.
Encontramos aqui a outra ponta
da dinâmica do boato: se de um lado temos a intencionalidade
do emissor, do outro temos a decisão
do receptor: ele poderá ampliar ou não a intensidade e qualidade do evento
indiciado. Como bem documentou os estudos empíricos da Mass Communication
Research de Paul Lazarsfeld na década de 1940, há o fator latente da memória
seletiva no processo da comunicação – o receptor somente entende o que quer
entender, ouve o que quer ouvir. Isto é, a predisposição (política, ideológica,
emocional etc.) é que define a decisão do receptor em selecionar determinados
fragmentos de um discurso para reforçar algo que ele já pensa.
Se o receptor está sintonizado
com uma atmosfera semioticamente carregada (paranoia, insegurança, ignorância,
informações desconexas etc.), as decisões dos receptores começam a apontar para
uma direção que supostamente o índice indicaria.
Propaganda versus boato
Nos ambientes atuais de comunicação e informação em
tempo real, as mídias visuais como TV e Cinema progressivamente são
incorporadas pelo espaço acústico ressonante das redes sociais, Internet e
dispositivos de comunicação em tempo real. Por isso, a propaganda tradicional
torna-se cada vez mais limitada e pontual já que ela é produto da cultura
visual cuja natureza é assertiva e sem ambiguidades: toda imagem é afirmativa.
A retórica visual cercada pelo discurso (textos publicitários, jingles, slogans
etc.) composta por signos icônicos e simbólicos são unívocas, devem apontar
sempre para uma afirmação, uma declaração, uma convocação, um comando.
Ao contrário, no espaço acústico ressonante dominado
por índices (emoticons, boatos, signos não verbais como entonações, gestos,
conotações etc.) a ambiguidade torna-se o fator potencializador de novidades,
notícias e eventos.
Se esse novo espaço ressonante que incorpora o visual
é marcado por conceitos como intencionalidade, decisões, importância e ambiguidade,
de forma alguma sua dinâmica pode ser considerada “espontânea”, mas humana e
cultural porque produz significações linguísticas arbitrárias. Ou seja, está
dentro dos fenômenos políticos e comunicacionais.
Se a revolução copernicana que a Polícia Federal
pretende for verdadeira, então teremos que inscrever esses fenômenos no reino
natural. Quem sabe, as instituições públicas ou privadas ao invés de contratarem
estudiosos de comunicação, deveriam a partir de agora terem em seus quadros meteorologistas
para preverem as variações atmosféricas que propiciam boatos: prever as frentes
frias, quentes ou oclusas que moveriam os humores da chamada “opinião pública”.