Nesse momento
em que vemos em pleno horário nobre das emissoras o vazamento de documentos da
NSA (Agência de Segurança nacional dos EUA) por Edward Snowden dando conta de que
a privacidade das comunicações de indivíduos e nações pode ser a qualquer
momento devassada por dispositivos eletrônicos, é oportuno assistir ao
documentário “Pax Americana e a Militarização do Espaço” (2009) do francês Denis Delestrac.
Principalmente porque a descrição que o documentário faz do modus operandi da inteligência militar norte-americana e a
noção de “espaço” pensada por ela é bem diferente da tradicional noção
orwelliana de “espaço” que os analistas vem pensando o caso Snowden. Se os
conteúdos revelados pelos documentos há décadas são conhecidos e divulgados por
estudiosos de comunicação e teóricos da conspiração, por que só agora foram “vazados”
de forma generalizada por todas as mídias?
Em 12 de junho de 1982 houve uma grande
manifestação em Nova York. Quase um milhão protestaram contra as armas
nucleares e a corrida armamentista. Era então o auge da Guerra Fria. Na TV falava
o tenente-general Daniel Graham que era o chefe da Defesa Estratégica de Ronald
Reagan. Perguntaram-lhe se estava preocupado com uma manifestação de um milhão
de pessoas nas ruas protestando contra armas nucleares. Disse: “Parece-me
fantástico! Estão protestando contra mísseis balísticos intercontinentais,
enquanto nós vamos para o espaço. Eles não fazem ideia do que fazemos. Então,
que continuem assim”.
Esse episódio descrito por “Pax Americana e a
Militarização do Espaço” talvez seja o mais perturbador neste documentário
dirigido pelo francês Denis Delestrac. Sugere que todo movimento de protestos,
críticas ou denúncias estaria sempre aquém dos poderes que pretendem
desmascarar. Como um jogo de “resta um”, parece que sempre falta o conhecimento
de uma outra cena, de um outro passo que estaria sempre à frente do alvo das
manifestações.
Em tempos de documentos da NSA vazados pelo técnico
em redes de computação Edward Snowden sobre fatos que qualquer pesquisador em
Comunicação ou até mesmo um teórico da conspiração já conhecem no mínimo há
vinte anos (a novidade nesse episódio é que um dissidente ganhou cara e
identidade na mídia), esse fato narrado pelo documentário dá o que pensar.
Quando acompanhamos a grande mídia como a TV Globo cuja pauta sempre foi
conservadora, abraçando e repercutindo informações que há muito tempo são temas
de movimentos mais à esquerda do espectro político, imediatamente vêm à mente
documentários como “Pax Americana e a Militarização do Espaço”. E se a verdade estiver em “outra cena”?
Talvez a principal coisa a ser discutida nisso tudo
seja a noção de “espaço”: será que o conceito de “espaço” (cibernético, cujos
conteúdos são monitorados e esquadrinhados) que as denúncias mobilizam contra a
NSA é a mesma noção de “espaço” que agências de inteligência dos EUA pensam?
O Documentário
“Pax Americana” detalha os possíveis resultados
atuais de uma corrida espacial que começou em 1957 com o lançamento do satélite
Sputnik pelos soviéticos, cujas origens estão nos foguetes V-2 de Hitler. O que
se seguiu após o fim da Segunda Guerra foi a chamada “Operação Paperclip” que
conduziu o cientista idealizador dos V-2 Wernher Von Braun para a NASA, após um
processo de “desnazificação” dele junto à opinião pública.
A partir daí os custos em projetos secretos para
armar e policiar a alta estratosfera se tornaram crescentes: cinquenta centavos
de cada dólar de imposto vão para os crescentes gastos militares nesse setor em
projetos como “Guerra nas Estrelas” ou os “Escudos Antimísseis”. Muitos
especialistas consultados pelo documentário sustentam que a defesa antimísseis
seria a maior fraude na história da defesa dos EUA. Sob o pretexto da defesa
dos interesses comerciais, de ser o “árbitro da paz” ou de defesa contra
possíveis ataques estrangeiros, na verdade tudo seria um ardil para disfarçar
as verdadeiras intenções americanas de conquista da hegemonia espacial como
forma de dominação geopolítica – livrar-se dos tratados anti-mísseis balísticos
foi uma das primeiras medidas da administração Bush.
A preocupação midiática que a defesa americana
demonstra com relação a ameaças por armas químicas, biológicas ou nucleares
seria uma mera cortina de fumaça para encobrir o seu real objetivo: o domínio
do espaço. Mas para quê? Para disparar raios mortais? Destruição de cidades
inteiras a partir de máquinas de guerra em órbita?
Toda a nossa vida depende de satélites. Para
controlar tráfego aéreo, marítimo, terrestre e até nosso carro. Transmissões de
TV, telefonia, saques em caixas eletrônicos, além de previsões meteorológicas e
de catástrofes. Existem aproximadamente 1.000 satélites em órbita que são
propriedade de 45 nações. Os EUA detêm 48,9%.
Para além de monitoramento e espionagem dos
conteúdos do tráfego de dados e comunicações, a hegemonia espacial corresponderia
a um projeto muito mais amplo que consiste na própria reformulação do conceito
de “espaço”. Se no passado a tática para controlar o campo de batalha era o de
ter uma posição mais elevada para poder ter a visão geral do teatro de
operações (desde a conquista de montanhas, torres, utilização de balões e
aviões), agora os militares procuram a sinergia terra, mar e ar pela conquista
do “tempo real” que anularia distâncias e diferenças geográficas.
A hegemonia espacial por satélites criaria esse
espaço virtual ou ciberespaço onde não apenas criaria instantâneos de operações
militares reais, mas também mapeamentos, cartografias e fluxogramas de todas as
comunicações do planeta em tempo real. E para garantir tudo isso é necessário o
lançamento de satélites com armas letais para a interceptação, anulação
eletrônica e até destruição física de satélites oponentes.
O documentário conta com depoimentos de Noam
Choamsky, Hellen Caldicott e do ator Martin Sheen – vemos cenas dele sendo
preso por policiais de choque em protestos de rua nos EUA contra a
militarização espacial.
O novo conceito de “espaço”
Do "Espaço" orwelliano ao "Espaço" ressonante |
Uma das lições que podemos aprender de “Pax Americana”
é a notável capacidade da inteligência norte-americana criar um jogo de simulação,
produzindo uma verdadeira cortina de fumaça através das mídias. A hegemonia dos
EUA na propriedade de satélites em orbita do planeta e a capacidade de “vazar”
informações, vídeos e dados têm uma relação direta, como demonstra, por
exemplo, o filme “Mera Coincidência” (Wag the Dog, 1997): em uma estratégia de
desvio de atenção de uma grave crise envolvendo um escândalo sexual do
presidente às vésperas da reeleição, deixam “vazar” de satélites um vídeo fake de uma suposta frente de batalha
dos EUA contra os terroristas albaneses. A mídia engole a isca e repercute
destaque exclusivo, despertando um oportuno patriotismo na opinião pública.
Aqui, a noção de “simulação” é no sentido dado pelo
pensador francês Jean Baudrillard: a importância das informações atuais é muito
mais de logística e de estratégia do que de conteúdo, isto é, o seu poder de
ressonância nesse novo espaço em tempo real criado pela hegemonia orbital. Em
outras palavras, a informação perdeu sua importância referencial (o seu
conteúdo) para adquirir a importância de ressonância. Para a Inteligência
norte-americana importaria cada vez menos monitorar o conteúdo do tráfego de
informação, mas muito mais dominar a sua infra-estrutura (satélites) de forma
militar.
Hipóteses: invertendo o caso Snowden
Analisando o caso do vazamento de documentos secretos
da NSA pelo seu ex-funcionário Edward Snowden em confronto com o documentário “Pax Americana” poderíamos
levantar as seguintes hipóteses:
(a) Se aceitarmos a
premissa baudrillardiana de que toda informação é simulação destinada a
repercutir no espaço ressonante em tempo real, deveríamos inverter as análises
sobre o caso Snowden: e se, como no episódio narrado por “Pax Americana”, a
verdade estiver em “outra cena”? Isto é e se todas as atenções estiverem sendo desviadas para o
controle orwelliano aqui na Terra quando o controle decisivo está no espaço?;
(b) Snowden estaria desempenhando
a sua última missão para a NSA como o dissidente que irá desaparecer para
sempre?
(c) Analistas midiáticos
ainda pensam o espaço de forma orwelliana onde o Estado seria um Big Brother
que vê tudo e controla tudo de forma centralizada. Sabemos que em sistemas
complexos e caóticos como a Internet e redes de comunicação é impossível um
controle ou transparência total de conteúdos pela natureza desses ambientes - entrópicos
e randômicos. Enquanto pensarmos o Estado de forma orwelliana, estaremos ainda
no paradigma da censura, da mentira e da dissimulação. Como demostra “Pax
Americana” todos os dispositivos de inteligência funcionam como vazamentos de
simulações. Ao invés de esconder, expor.
(d) Isso explicaria o
porquê deste “vazamento” estar sendo repercutindo por todas as mídias e por todo
espectro político da Direita à Esquerda.
(e) Projeto Echelon, Prism,
escritórios da CIA e NSA em Brasília e demais mecanismos algoritmos de
vigilância são conhecidos há décadas por estudiosos da comunicação e teóricos
da conspiração. São segredos de polichinelo. Agora são revelados
bombasticamente como novidades no horário nobre de todas as emissoras.
(f) Esse Estado orwelliano
ainda não é fascista, porque controlado e subjugado por grandes conglomerados e
empresas. Como apresenta “Pax Americana”, a conquista militar do espaço é uma
grande oportunidade de lucros privados. Os “vazamentos” da ação de um suposto
estado Big Brother, associado à instabilidade e crises econômicas sucessivas,
visariam criar uma atmosfera generalizada de paranoia, insegurança e medo.
Historicamente, tal clima é propício para revindicações por governos “puros” e “apartidários”. A partir daí, então, temos o início da implantação de um verdadeiro Estado fascista.
Ficha Técnica
- Título: “Pax Americana e a Militarização do Espaço” (Pax Americana and the Weaponization of Space)
- Diretor: Denis Delestrac
- Roteiro: Louis Caron, Harold Crooks
- Entrevistados: Helen Caldicott, General Kevin Chilton, Noam Chomsky, Martin Sheen, Joseph Cirincione
- Produção: Coptor Productions Inc. e Lowik Media
- Distribuição: Primer Plano Film Group e Films Transit International
- Ano: 2009
- Países: Canadá e França