quarta-feira, abril 24, 2013

A ficção midiática contamina o atentado de Boston


Há uma ambiguidade nas imagens que envolveram o atentado de Boston, geradora tanto da espiral de interpretações conspiratórias (“Operação False Flag e autoterrorismo) quanto as rotineiras versões genéricas sobre terrorismo de “facções radicais”. A ambiguidade fundamental dessas imagens (jornalísticas e, ao mesmo tempo, carregadas de clichês retóricos) associada a uma série de sincronismos e coincidências revela, em seu conjunto, um estranho sintoma do verdeiro contínuo midiático atmosférico que domina a nossa cultura: a contaminação da realidade pela ficção midiática.

Para quem lida com análise fílmica e estrutura de roteiro como esse autor, é impossível não perceber um estranho mix entre ficção e realidade no incidente das bombas detonadas junto à linha de chegada na Maratona de Boston: o timing de todos os acontecimentos subsequentes até a captura dos “suspeitos” (estranha expressão porque desde já estão condenados à morte), os fatos encadeados como em um clássico roteiro com a narrativa dividida em três atos (atentado/perseguição/captura) com timing de filme de ação hollywoodiano, a facilidade de captação de imagens de toda a ação pelas mídias, e, por fim, as clássicas e emotivas imagens de velas sendo erguidas em homenagem à vítimas e pessoas histéricas gritando “USA! USA!” enquanto o “suspeito” sobrevivente era levado preso.

Impressiona como a ambiguidade dessas imagens (jornalísticas e, ao mesmo tempo, com forte carga retórica como o detalhe em close de uma sacola com a bandeira dos EUA em uma calçada manchada de sangue) acaba produzindo uma espiral de interpretações tanto conspiratórias (a “operação false flag” ou autoterrorismo) quanto um atentado arquitetado por “facções radicais”.

A notícia quase simultânea de uma ameaça de atentado à bomba em um trem no Canadá reforça ainda mais mix cinematográfico de tudo isso: faz lembrar o filme “Mera Coincidência” (Wag The Dog, 1997) onde uma guerra aos terroristas albaneses é inventada por um produtor de Hollywood para desviar a atenção da opinião pública do caso de um escândalo sexual na Casa Branca. E por onde os terroristas entram nos EUA? Pelo Canadá. Por que Canadá? Por que os americanos não gostam deles, afirma o hilário produtor interpretado por Dustin Hoffman.

Sincronicidades e coincidências

               
    Assim como o Massacre do Colorado foi cercado de uma série de coincidências como o atentado ter sido “previsto” na HQ de 1986 “O Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller onde um personagem fora de si invade um cinema armado e atira contra a plateia (veja links abaixo), o atentado de Boston igualmente se cerca de coincidências que podem ser analisadas pelo ponto de vista da sincronicidade. 
    
      A primeira delas, poucos dias antes o canal CNN Headline News apresentou uma matéria onde são mostradas cenas de treinamentos de soldados feitas por uma empresa chamada “Estrategic Operations” que presta serviços ao Exército americano. Utilizando efeitos especiais e cenográficos hollywoodianos, prometem treinamentos “hiperrealísticos” de situações de batalhas com atores com membros amputados para simulação de socorro a soldados feridos, simulações de cirurgias emergenciais, etc. - veja vídeo abaixo.

     Tal coincidência é atualmente munição para os teóricos da “operação false flag” que denunciam uma verdadeira simulação no raio de destruição das bombas: com analise detalhista das fotos, defendem que o homem com as duas pernas amputadas na calçada era um ator. Isso sem falar na presença suspeita de dois homens com mochilas pretas e trajes de campanha com bonés da Craft International, empresa que fornece soldados mercenários e treinamento ao Exército norte-americano, cujo lema é “A violência soluciona problemas”.

Outro sincronismo: A animação “Family Guy” onde o episódio “Turban Cowboy” teria “previsto” o atentado em Boston onde o protagonista Peter ganha a maratona depois de matar o resto dos participantes (é mostrado muito sangue e corpos desmembrados) e, sem querer, detona duas bombas com um telefone celular (veja sequência abaixo). O enredo é tão semelhante aos trágicos acontecimentos de Boston que as cenas foram excluídas das retransmissões, assim como foram retirados vídeos do YouTube onde se comparam imagens do atentado com as cenas de “Family Guy”. Para alimentar os teóricos da conspiração, muitos links do site “Infowars” do jornalista Alex Jones e do blog “Gamba” com “evidências da operação “False Flag” foram estranhamente bloqueadas no Facebook. Eu mesmo postei links de ambos os sites que logo vieram com a seguinte mensagem “Forbidden You don't have permission to access on this Server”. O que só alimenta a espiral conspiratória de interpretações.

Tomados por si mesmos esses sincronismos não comprovam “operações” ou “conspirações”, mas apresentam uma estranha contaminação da realidade pela ficção midiática. Assim como no atentado de 2001 ao World Trade Center materializou décadas de destruição de Nova York pelo cinema e o massacre do Colorado projetou a personalidade do psicopata personagem do Coringa das HQs e da perturbadora interpretação do ator Heath Ledger no filme “The Dark Knight” (2008), as bombas de Boston parecem ser esse estranho sintoma de um contínuo atmosférico midiático que envolve nossa cultura.

"Family Guy" previu o atentado?
Esse sintoma se aproximaria daquilo que o pesquisador Loren Coleman chama de “efeito Copycat”: Personagens, palavras ou narrativas podem adquirir força ao transformarem-se em verdadeiros arquétipos que, quando repercutidos pelas mídias, adquirem poder de contágio rápido como memes.

Para Coleman, esses “memes” ou arquétipos que passam a povoar esse contínuo atmosférico midiático atrai todo um subconjunto de pessoas vulneráveis, homicidas e suicidas em um nível inconsciente. Ou, como alerta outro pesquisador em sincromisticismo Christopher Knowles, esses doentes psíquicos estão entre o mundo racional da causa e efeito e o mundo crepuscular dos sinais e dos símbolos. A diferença é que são atormentados por essa realidade sincromística que, então, pode infectar a população em geral (sobre isso veja links abaixo).

O roteiro das bombas de Boston


            Analisando o atentado de Boston e a cadeia de eventos subsequentes do ponto de vista do argumento de uma roteirização cinematográfica, além dos sincronismos impressiona também os simbolismos.
                
                O atentado cometido no Patriots’ Day (comemoração cívica que rememora as primeiras batalhas de 1775 na Revolução Americana pela independência) associado com a maratona possui alto poder simbólico. Como mostrado no filme “Forrest Gump” onde o protagonista inicia uma maratona de ida e volta pelos EUA, atraindo uma multidão de admiradores do simbolismo da coisa, esse esporte é dotado de um valor individualista na cultura norte-americana, a luta sobrevivencialista de um indivíduo livre.
                
               O mito do Cowboy, do Pioneiro e do Astronauta como “sobreviventes” ou como heróis eleitos por um “destino manifesto” americano é aglutinado na figura do maratonista solitário – vejam por exemplo as sequência do treinamento de “Rock, um Lutador” onde o personagem corre, sobe escadarias e do alto ergue os braços como vitorioso.

                O pensador francês Jean Baudrillard em seu livro “América” (uma série de crônicas das suas viagens pelos EUA e suas impressões sobre a cultura e cotidiano desse país) descreve o impacto que a Maratona de Nova York provocou nele: 
"jamais poderia acreditar que a Maratona de Nova York fosse capaz de me arrancar lágrimas. (...) São 17.000 e cada um corre sozinho, sem mesmo o espírito de uma vitória, simplesmente para sentir que existem. “I did it!” (“Consegui!), suspira o corredor exausto ao despencar no gramado do Central Park. (...) A Maratona de Nova York tornou-se uma espécie de símbolo internacional dessa performance fetichista, do delírio de uma vitória em vazio, da exaltação de uma façanha sem consequência” (BAUDRILLARD, Jean. América. R. de Janeiro: Rocco, 1986, p. 21-22)
                Assim como no atentado ao World Trade Center em 2001 a demolição das torres representou o ataque à autoestima de um simbolismo fálico do império norte-americano, o atentado na segunda maratona mais tradicional do mundo atinge a própria autoimagem individualista do norte-americano em um dos seus símbolos mais caros: a de um esporte onde, do ponto de vista norte-americano, a sobrevivência vale mais do que a própria vitória.

                E por que explosões juntas à linha de chegada? Para serem televisionadas. Da mesma forma como após o choque do primeiro avião na torre do WTC em 2001 houve um intervalo de pouco mais de meia hora, tempo suficiente dado pelos terroristas para que os links ao vivo fossem estabilizados e transmitissem ao vivo o segundo impacto.

                Parece que os terroristas aprenderam bem a lição dada pelo historiador Daniel Boorstin em seu livro “The Image: a guide to pseudo-events in America” de 1961 onde sustenta que os eventos para serem notícias devem, antes de tudo, ser “noticiáveis”. Um evento deve atender à logística e às necessidades por conveniência (grade horária, horário de fechamento das redações etc.) das mídias para se transformar em notícia.

                Parece que o evento das bombas de Boston atendeu a esse princípio de “noticiabilidade” no momento em que os terroristas ofereceram um show de explosões, sangue e corpos desmembrados para as câmeras, e o FBI muniu as mídias de abundantes e oportunas imagens que culminaram nas eletrizantes cenas de perseguição (ao melhor estilo das populares perseguições policiais a motoristas fora de si transmitidas pelas TVs). Bom, mas aí estaremos entrando novamente no campo das conspirações...



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