O tema “alienígenas”
encontra a sua maturidade no cinema no filme indie “Earthling” (2010). Nesse
filme abandonamos os temas da invasão, dominação e submissão para entrarmos em
um campo mais metafísico e gnóstico: será que todos nós seríamos aliens
aprisionados nesse mundo? Alienígenas aos poucos vão despertando nesse planeta
e descobrem que na verdade não são quem pensavam ser. Um acidente de carro e um
incidente em uma estação espacial são os acontecimentos que despertarão nos
aliens humanos o desejo de retornar à suas origens. Seríamos todos nós
estrangeiros nesse planeta e a nossa condição de estranhamento e alienação sintomas
dessa verdade? Esse é o tema central de um subgênero que podemos nomear como
filmes AstroGnósticos.
O Gnosticismo clássico nos
ensinou que os seres humanos são criaturas celestes prisioneiras de um Demiurgo
sádico e louco. Somos prisioneiros nesse planeta apenas para acalmar seu ego ferido.
Todos nós, incluindo o Demiurgo, seriamos emanações do Pleroma ou da Plenitude
e de lá fomos expulsos devido a uma espécie de terrível aborto cósmico: a
Criação.
Por sua vez, o Gnosticismo
Cristão nos ensina que Cristo era um ser puramente espiritual, um “aeon” que
foi enviado a nós diretamente do Pleroma com o objetivo de nos despertar para a
realidade de que somos prisioneiros de um Deus cego auxiliado pelos seus
Arcontes. Despertarmos através do conhecimento trazido por Ele sobre a nossa
verdadeira natureza e identidade.
Esse núcleo do Gnosticismo foi desenvolvido pelo Cinema
através do que denominamos como “filmes gnósticos” por meio de quatro
categorias de narrativas:
(1) CosmoGnóstico: filmes
que parecem inspirar-se na Cosmologia basilidiana (Basilides -117-138 DC - Filósofo
gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia. Admitiu um
princípio incriado, o Pai, cinco hipóteses emanadas dele e trezentos e sessenta
e cinco céus, um dos quais é o nosso mundo comandado pelo Demiurgo - Yahweh,
Jeová ou Javé). Filmes como “O Décimo Terceiro
Andar” (1999) sobre pluralidade de universos simulados, multiversos ou, então,
filmes como “Sr. Ninguém” (2009) que exploram o tempo como produtor de
universos alternativos e falha cosmológica que nos aprisiona entram nessa categoria;
(2) TecnoGnóstico:
“Matrix” e “Show de Truman” entram nessa categoria. Protagonistas prisioneiros
de mundos que são simulações tecnológicas, sejam realidade virtual, mundos
midiáticos, simulações computacionais etc.
(3) PsicoGnóstico: Novamente
vemos o protagonista como prisioneiro, mas dessa vez é uma prisão interior,
psíquica ou onírica. Filmes como “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”,
“A Passagem” e “Vanilla Sky” mostram personagens que sem saberem estão presos
respectivamente, nas próprias memórias da mente, em um limbo entre a vida e a
morte e em “sonhos lúcidos” artificialmente produzidos por uma corporação.
(4) AstroGnóstico: os
seres humanos teriam sido o resultado de um enxerto na biologia dos primatas
avançados feita por uma consciência alienígena espiritualmente superior. Os
seres humanos estariam presos nesse planeta sofrendo, pois sua consciência não
só é inadaptável como, apesar de viverem em um ambiente reconhecidamente belo,
o atrito com essa existência cria estados emocionais que levam à depressão,
assassinato em massa, loucura e destruição. Filmes como “O Homem Que caiu na
Terra” (1974, onde um alien vem à Terra em busca de ajuda e é corrompido pela
sociedade humana) com o gnóstico pop David Bowie e “The People” (1972 – onde
uma comunidade isolada semelhante aos Amishs revela-se ser habitada por aliens
que fugiram de um planeta em extinção) com o eterno Capitão Kirk de “Jornada
nas Estrelas” William Shatner.
O filme “Earthling” enquadra-se
nessa última categoria. “Você não é quem você pensa que é”, é a mensagem do
filme cuja protagonista é Judith, uma jovem professora de uma high school que
sofre um acidente automobilístico que resulta em aborto. O acidente coincide
com um misterioso evento cósmico que atinge uma estação espacial onde dois
astronautas morrem e o único sobrevivente chega em coma na Terra.
O Filme
Após o acidente Judith começa a
parecer distante, a sofrer pesadelos com pessoas que ela jamais viu na vida até
conhecer uma aluna chamada Abby que faz uma personagem ao estilo espírito
livre/hippie e que, para completar, ainda dirige uma Kombi – um dos símbolos do
movimento hippie dos anos 1960-70.
Enquanto cresce uma tensão
erótica entre elas, (Abby parece ser uma lésbica sexualmente agressiva) aos poucos
a aluna começa a revelar a sua natureza e a Judith sua verdadeira condição: eles
não pertencem aqui, e o grupo à qual Abby pertence conta com ela para
libertá-los desse planeta. A partir daí Judith mergulha em um submundo repleto
de assassinatos (assassinam pessoas para tornar seus corpos hospedeiros),
insanidade e uma menina grávida. Judith passa a ficar cada vez mais alheia à
sua vida, ameaçando perder o seu emprego e marido.
Como é clássico em uma narrativa
AstroGnóstica, tanto o protagonista como o espectador não têm certeza se os
personagens que fazem a revelação estão dizendo a verdade ou são todos loucos
assassinos de alguma seita dominada por uma ilusão coletiva. Mas Judith, assim
como os integrantes do grupo, passa a desenvolver na testa um tumor semelhante
a chifres: um sinal de que os organismos de acolhimento não suportam a presença
alienígena.
Ao mesmo tempo vemos o colapso emocional do último
sobrevivente da estação espacial, as tentativas de romper a sua amnésia com
técnicas de hipnose e, finalmente, a sua conexão com o grupo alien que tenta
retornar para suas origens
Aliens e Estrangeiros
Em postagem anterior dizíamos que a
subjetividade contemporânea é expressa a partir de três tipos de protagonistas
básicos no cinema: o detetive, o viajante e o estrangeiro. O subgênero
AstroGnóstico é aquele que melhor simboliza a condição humana como a do
estrangeiro: aquele que não se sente em casa em lugar nenhum.
A condição
humana como a de um alienígena é a da sensação de estrangeiro dentro do seu
próprio país, vivem um auto-exílio. Sente não pertencer ao mundo, está em
constante mal-estar e à deriva. O que está errado? Tudo parece estar no lugar,
seguindo os padrões e expectativas do status
quo. O estrangeiro pressente a inautenticidade do mundo em que ele está.
Demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um
melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os
lugares que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte. Este fascínio pelo
universo loser levará o protagonista
a um confronto final contra o Demiurgo que criou este mundo inautêntico que o
rodeia.
Como no
filme “Eathling” essa condição de alienação e estranhamento é representada por
situações de perda de consciência (acidente, coma etc.) que faz o protagonista
despertar, passando a ver o mundo de uma maneira bem diferente do que era. Por isso, a atração do protagonista apor
outros estrangeiros – atração pelos losers, por personagens de submundos, por minorias etc.
Em “Earthling”
a condição de estrangeiro é levada à sua radicalidade: “Você não é quem você
pensa ser”, isto é, sua condição de estrangeiro não garante nem a sua própria
identidade. Isso é o que faz distingui o filme AstroGnóstico de filmes com
aliens perdidos na Terra (ET, 1982), que chegam à Terra com mensagens virtuosas
para a humanidade (O Dia Em Que a Terra Parou, 1951), ou o alien como invasor
que ameaça à espécie humana (“Invasores de Corpos”, 1956). No filme
Astrognóstico, o alien pode ser tanto um ser que decaiu e esqueceu suas origens
extraterrestres ou estar em processo de degeneração e corrupção ao perder suas
memórias e poderes ao tentar se disfarçar como um homem como no filme “O Homem
Que Caiu na Terra” de 1976.
Filmes
AstroGnósticos como “Earthling” demonstra que alcançamos a maioridade do tema “alienígena”:
abandonamos s temas da invasão, poder e dominação para adentrarmos ao campo
radicalmente metafísico: na verdade os aliens somos nós mesmos dentro de um
mundo que parece nos expulsar.
Ficha Técnica
- Título: Earthling
- Diretor: Clay Liford
- Roteiro: ClayLiford
- Elenco: Rebecca Spence, Peter Greene, William Katt, Amelia Turner
- Produção: Well Tailored Films, Zero Trans Fat Productions
- Distribuição: CineBinario Films (DVD)
- Ano: 2010
- País: EUA