Por que o PT é tão
assertivo nas questões sociais e reticente quando se trata da Lei dos Meios e
monopólios midiáticos? O verdadeiro ato falho do ministro da Educação Aloízio
Mercadante ao sair em defesa ao “seu” Frias frente às denúncias da Comissão da
Verdade representa aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard chamava de
“grau zero da política”: as esquerdas nunca quiseram chegar ao Poder
e, dizia Baudrillard, se um dia chegassem não haveria perigo porque o poder, de
fato, não existe. Ele estava sendo profético.
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À primeira vista, talvez o tema dessa postagem (política
partidária) cause estranheza ao leitor em um blog especializado na discussão
sobre cinema e gnosticismo. As últimas discussões sobre a Lei dos Meios e os
monopólios de mídia e a reticência do governo atual em debatê-la lembram um
conceito de influência gnóstica do pensador francês Jean Baudrillard: a
reversibilidade simbólica, o gênio maligno presente em todos os sistemas –
todos os sistemas chegam a um ponto de desenvolvimento e complexidade que
acabam inviabilizando sua própria finalidade, voltando-se contra si mesmo. É o
caso do sistema político que chegaria ao chamado “grau zero”, onde a finalidade
social foi substituída pela simulação e sedução. É a “transparência do Mal”.
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Em carta ao jornal Folha de São
Paulo o ministro da educação Aloízio Mercadante saiu em defesa da memória de
Octávio Frias de Oliveira, falecido dono da “Folha”, após um delegado dos
tempos da ditadura militar dizer, na Comissão da Verdade, que ele colaborou
ativamente na repressão e tortura aos “terroristas” e “subversivos”. Esse
episódio parece que foi a gota d’água para muitos que ainda, pacientemente,
esperavam que após 10 anos de governos de esquerda a questão do monopólio
midiático no país já tivesse sido, pelo menos, confrontada.
A gota d'água: Ministro da Educação Aloizio Mercadante sai em defesa do "Seu" Frias |
Enquanto isso o ministro da
Comunicação Paulo Bernardo adota um tom genérico e não dá prazos quando trata
sobre a Lei dos Meios - a promulgação do marco regulatório para concessões
públicas, TVs abertas, TVs por assinatura e rádios. E para irritar ainda mais
os setores de esquerda, a Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência da
República) continua com sua orientação “técnica” e “republicana” de manter o
direcionamento de grossas verbas publicitárias aos monopólios midiáticos, os
mesmos veículos de comunicação que diariamente fustigam o Governo com denúncias
sobre escândalos e sonham com a judicialização da política e a próxima eleição
presidencial sendo decidida pelo Supremo Tribunal federal.
Se no plano sócio-econômico os
governos petistas são reconhecidos internacionalmente pelas medidas de inserção
social, eliminação da pobreza, aumento do poder aquisitivo da chamada “nova
classe média”, e crescimento do mercado de consumo interno, no plano
simbólico-midiático mantém-se estático e subjugado aos “barões da mídia”. Mesmo
depois de três mandatos presidenciais consecutivos.
Por que? Sadomasoquismo?
Covardia? O resultado de um governo de coalização obrigado a encontrar um ponto
de equilíbrio entre diferentes grupos de interesses? A sedução pelo holofote
que as grandes mídias oferecem?
E se o problema do PT não for em
relação à Política, mas em relação ao imaginário da Política? Ou talvez o “problema”
não seja em relação ao partido. O PT hoje faz o jogo parlamentar que no passado
era acusado de recusar por ser considerado um partido sectário e formado por
radicais. Talvez o “problema” esteja nas nossas expectativas em relação ao que
representa ser “de esquerda”, as nossas expectativas em relação ao próprio
imaginário da Política.
O Poder não existe
Em 1977
em seu texto “A Luta Encantada ou a Flauta Final” o pensador francês Jean
Baudrillard apresentou uma hipótese irônica e que lhe valeu a pecha de
intelectual direitista: a esquerda jamais esteve interessada
no poder, e que as sucessivas lutas políticas da esquerda não passam de algo
artificial por excelência, marcado pelo simulacro da tensão revolucionária
artificial. A ironia, para Baudrillard, está no fato de a esquerda critica o
poder sempre, mas não toma a iniciativa de assumi-lo.
Mais tarde em outro texto
chamado “Partidos Comunistas: Paraísos Artificiais da Política” Baudrillard apresentava
três teses ao criticar o discurso de Enrico Berlinguer (secretário do partido
comunista Italiano de 1972 a 1984): (1) os comunistas não mudarão nada se
chegarem ao poder; (2) os comunistas não querem chegar ao poder; e (3) a tese
totalmente niilista: não há perigo em ganhar o poder, porque o poder, de fato,
não existe.
Para Baudrillard a Esquerda simulava querer o Poder |
Na ciência política, o Poder sempre foi pensado como uma substância, ou
um topos, em torno da qual gravita uma
somatória de partidos políticos, interesses de classe, grupos, tudo enfim que
se manifesta no campo político e que produz a politização geral da sociedade
Em toda história, essa substância se manifestou em diversos lugares e
situações: no corpo do rei (na concepção fisiológica do Poder, quem o detém é
porque possui características natas no próprio corpo, o "sangue
azul", por exemplo); na inteligência instrumental do príncipe (a concepção
maquiavélica do Poder, onde a política é pensada como um jogo cênico‑teatral de
aparências, através do qual a vontade política se esgueira pela mentira); no Leviatã de Hobbes (Estado totalitário e
centralizador, necessário para impedir a situação de anomia provocada pelo
confronto dos interesses egoístas); no Estado Liberal burguês (onde o Poder é
definido como espaço vazio, ocupado periodicamente pelo representante de uma
vontade política pública e consensual) ou no Estado da ditadura do proletariado
de Lênin e Stálin onde o Poder revolucionário é meio de liberação das forças
produtivas e sociais amarradas historicamente pelas classes dominantes.
Em todas essas visões o Poder e
a Política são vistos como produção
de alguma finalidade social. Mas a tese de Baudrillard é outra: e se a
necessidade de reprodução tiver
dominado o Poder (reprodução da democracia, da participação, dos direitos
humanos, do acesso ao mercado, da manutenção macroeconômica) a tal ponto que
alcançamos o grau zero da política? Explicando melhor, e se nesses dez anos os
governos de esquerda nada mais foi feito do que modernizar um país marcado pelo
anacronismo (exclusão, pobreza etc.) diante das necessidades de reprodução do
valor e do capital?
Para Baudrillard, ainda pensamos
o Poder como um espaço a ser preenchido por uma classe social e a Política como
um campo de forças onde se produzem novas finalidades sociais (revoluções,
contra-revoluções, golpes, etc.). Talvez o poder desterritorializante e sem
limites do valor de troca tenha legado ao Poder a condição se tornar um mero
aparelho reprodutor onde todas as ideologias, crenças ou doutrinas gravitariam
em torno dessa necessidade imperiosa de reprodução macroeconômica. Em outras
palavras, se Baudrillard estiver certo, o reconhecimento internacional pelos
projetos de inclusão social dos governos do PT é o reconhecimento do próprio
capital pela normalização das funções de reprodução de força de trabalho e
consumo.
Ao chegar no poder o PT
encontrou o grau zero da política. A sua reticência em relação à Lei dos Meios
e os monopólios midiáticos é o primeiro sintoma disso: ele encontrou o limite
estrutural do sistema político – o limite simbólico e midiático. Para
entendermos um pouco mais isso, devemos ir mais fundo nessa tese de
Baudrillard.
Eventos supracondutores
A necessidade do sistema político simular a existência do Poder através do escândalo midiático das denúncias de corrupção |
A escandalização da Política
através das denúncias diárias de corrupção, tráfico de influências ou “mensalões”
e a cobertura sensacionalista do terrorismo internacional pelas mídias são
eventos que Baudrillard chamava de “supracondutores”.
Para ele, o escândalo das
denúncias está para a Política assim como a especulação está para o sistema
financeiro. Ambos os sistemas (financeiro e político) já há muito perderam sua
finalidade social de produção para serem seduzidos pelo ardil das imagens, da
circulação veloz de informação e notícias com um único propósito: simular a
existência de algum valor de uso, de alguma finalidade para a existência do
Poder, da Política e da Economia.
Para ficar apenas no sistema da
Política, a imoralidade, a simulação e a sedução se tornaram componentes
determinantes da política, com o propósito de, assim como no sistema
financeiro, evitar crises sistêmicas: evitar que a sociedade, afinal, descubra
que a inércia dominou a Política, que o Poder perdeu seu poder de atração
centrípeda e que ele é apenas mais um dos personagens que gravitam em torno das
ondas concêntricas da mídia.
E assim como no sistema
financeiro onde a suspeita de que nada exista por trás de papéis, títulos ou
compromissos resulta em pânico e corridas para sacar ativos, da mesma forma a
Política convive com o fantasma de que um dia o eleitor descubra que por trás
da representação democrática nada existe de produção (revoluções,
transformações, História, enfim), mas apenas a reprodução da onisciente
necessidade de reprodução macroeconômica do valor de troca.
Em termos mais diretos, a
incrível tolerância do PT em manter polpudas verbas publicitárias às grandes
mídias e a sua omissão em relação à necessidade de um marco regulador para os
meios de comunicação representa um ato falho dessa necessidade sistêmica do
sistema político manter a espiral de escândalos para manter a miragem
referencial de que existe um lugar de Poder a ser disputado. Onde, mesmo na sua
indiferença, os eleitores ainda mantenham em seu horizonte a percepção da
existência de um lugar chamado Política e Poder.
O sistema político necessita da
dose diária dos escândalos das denúncias. Seja quem ocupar o espaço do Poder,
terá que fazer parte dessa irônica estratégia de retroalimentação do sistema.
Cientistas políticos, críticos e jornalistas parecem ainda partilhar da ilusão
de um valor de uso, de uma transparência final das finalidades sociais da
Política e do Poder. Mas, como membros que somos de toda a midiosfera (com
verbas ou sem verbas publicitárias do Governo), fazemos parte desse irônico jogo
de simulação e sedução.