Iscas mirins,
repórteres dublês de humorista e câmeras escondidas são hoje as principais
armas de uma onda de moralismo seletivo que domina as telas de TV, como no caso
exemplar que envolveu o deputado José Genoino e o programa “CQC”. Mas há algo
de mais profundo nessa onda moralizante do que o atual jogo de cena
político-midiático. Por trás da onda de programas televisivos representado pelo
“CQC” (programas, por assim dizer, “sensacionalisticamente corretos”)
esconderia a própria natureza do funcionamento da indústria cultural que no
passado pesquisadores como Adorno e Horkheimer tematizaram: a ritualização de
uma espécie de correia de transmissão na sociedade onde “aquele que é duro
contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais e se vinga da própria
dor”. O sensacionalismo seletivo que prefere despejar toda indignação nos
“pequenos” que desde o início já estão derrotados e condenados do que nos
poderosos seria a ritualização de um prazer voyeurista e sádico do espectador.
O episódio que protagonizou o
“repórter” mirim usado como isca para que o programa "CQC" (Custe O Que Custar da
TV Band) arrancasse de José Genoino algumas palavras (ele se recusa a conversar
com os dublês de repórter/humorista do programa) esconde algo de mais profundo.
Condenado pelo julgamento do chamado “mensalão” e exposto extensivamente ao
linchamento midiático como um caso exemplar da onda de defesa da moralidade que
varre o país, há algo de simbólico na figura de um político acuado em sua sala
no Congresso, a portas fechadas deixando entrar uma criança oferecida como isca
a alguém isolado e, talvez, carente por simpatia – a criança se dizia filho de
militante do PT.
O CQC pareceu querer requentar
uma notícia já passada, “chutar cachorro morto”, tentar tripudiar em cima de
uma figura já julgada e condenada por chicanas jurídicas e pelo veredito
midiático. Em outras palavras, ofereceu para os espectadores alguém
supostamente fraco e derrotado para o deleite público da humilhação.
O sintoma mais profundo por trás
do episódio pode ser encontrado em uma onda de programas televisivos atuais que
não são mais regidos pelo velho modelo dos programas sensacionalistas do
passado como “O Povo na TV” ou “Aqui e Agora”. “Profissão Repórter” da TV
Globo, “Brasil Urgente” do José Luiz Datena da Band, “Polícia 24 Horas” também
da Band e o próprio CQC fazem parte de uma tendência que, poderíamos chamar, de
“programas sensacionalisticamente corretos”: aspiram a ser um canal de prestação
de serviço comunitário, expõem casos exemplares de imoralidades da máquina
pública ou de ações de má fé que prejudicam consumidores e cidadãos, expõem a
transgressão de práticas anti-éticas ou que põem em perigo a convivência
pública – guiar bêbado, andar de carro no acostamento, o achaque do fiscal da
prefeitura a um pequeno comerciante, o baile funk barulhento que prejudica o
sono dos vizinhos etc.
O que há em comum em todas as
“denúncias” sensacionais de todas essas práticas negativas para a sociedade?
Todas essas denúncias parecem ser sempre direcionadas a personagens
supostamente em condição inferior a do espectador, seja no aspecto
sócio-econômico, pela sua condição (a embriagada que faz um escândalo uma loja
de conveniência em um posto de gasolina por problemas familiares) ou apenas por
serem flagradas por meio câmeras escondidas que fazem a delícia do público – o prazer
voyeurista do espectador em saber que a pessoa na tela não sabe que está sendo
observada.
A indignação moral seletiva para o socialmente inferior desde o início já culpado pelo linchamento midiático |
Em outras palavras mais diretas:
esses programas parecem ter uma indignação moral bem seletiva ao apontar as
câmeras para pessoas miúdas e, desde o início, já derrotadas ou culpadas por
antecipação. Ou seja, inferiorizadas. Mas jamais as munições desses programas
são detonadas sobre personagens graúdos, poderosos ou de alto prestígio midiático
tal como empresários, alto executivos ou grandes corporações.
Matadouros e salsichas
Um flagrante exemplo: novamente
o programa CQC volta sua mira para os rincões do interior da Bahia para denunciar
as condições insalubres, imundas e desumanas de um matadouro público municipal.
Para além da cantilena da má gestão da coisa pública e mostrar de forma
sensacionalista pessoas humildes cuja única forma de ganha-pão é através
daquilo que escandaliza nossos olhos politicamente corretos, uma questão
incomoda: por que essa mesma indignação não se volta a grandes frigoríficos e não
é mostrada, por exemplo, a matéria-prima de salsichas – mix de restos de
vísceras e ossos dos mais variados lotes de animais, colorizados e aromatizados
para se tornarem palatáveis?
O mesmo escândalo e perseguição
por helicópteros, câmeras escondidas e de dublês de repórter/humorista não se
verifica contra “supostos” criminosos de colarinho branco – lavagem de dinheiro
em paraísos fiscais, organização e pressão de lobbies de setores empresariais
junto ao Legislativo, sonegação de impostos, ameaça à saúde pública por
práticas sanitárias e tecnologias de produção de alimentos temerárias etc.
Essa fixação midiática em
escandalizar pequenos, anônimos, derrotados e fragilizados não pode ser apenas
compreendida apenas pelo jogo atual político-midiático da indignação seletiva: “aos amigos tudo, aos inimigos a Lei”. Há algo que pertence ao
funcionamento da própria Indústria Cultural desde a sua consolidação no período
nazi-fascista, tal qual discutido por autores como Walter Benjamin (a
estetização da política na mídia) e por Adorno e Horkheimer - a Indústria
Cultural como ritualização da “frieza” resultante dos indivíduos atomizados em
uma “multidão solitária”.
A correia de transmissão
Em um pequeno texto chamado “Educação
Após Auschwitz” Theodor Adorno nos dá uma pequena pista para entender essa
questão ao explicar o principal traço da personalidade autoritária ou
proto-fascista:
“Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir” (COHN, Gabriel. “Educação Após Auschwitz” In: Adorno. São Paulo: Ática, p.39).
A correia de transmissão produtora de "frieza" e das relações humanas proto-fascistas |
Para Adorno este seria o princípio
da gestação de uma configuração totalitária nas relações humanas: o fascismo. Dentro
de uma situação que sabem que não podem mudar, indivíduos frustrados, ressentidos
e condenados à resignação passam a descontar no outro a sua dor. É o início de
uma espécie de “correia de transmissão” que impulsionaria o autoritarismo e
indiferença na sociedade.
Podemos descrever essa dinâmica
da seguinte forma, tal como Adorno pressentiu à época da ascesão nazi-fascista:
o chefe da empresa admira o Füher
exposto massivamente pelo rádio e cinema. Frustrado por saber que jamais
deixará de ser o que é (mais um admirador de Hitler na multidão solitária)
desconta sua dor ao destratar e humilhar seu subordinado na empresa, um
assalariado chefe de família. Este, humilhado e frustrado, volta para casa e
também desconta na sua esposa com brigas e humilhações. Por sua vez, a esposa
se vinga nos filhos com arbitrariedades e surras. Os filhos, sem a presença dos
pais e, por isso, expostos a maior parte do dia aos meios de comunicação de
massas, vão idolatrar o Füher pop star. E fecha-se o ciclo que se
retro-alimenta continuamente.
Para Adorno, na massa todos nós
nos sentiríamos “mal amados” – ecos no autor da concepção de Freud sobre as
conexões existentes entre multidão e melancolia. Necessariamente, a frustração
tem que ser repassada para alguém socialmente mais fraco, criando uma espécie
de cadeia de pequenas vinganças movida pelo ressentimento e rancor diante da
impotência social. Isso se manifestaria desde a instrumentalização de bodes
expiatórios na propaganda política até a explosão de preconceito, intolerância
e xenofobia.
Os antigos programas sensacionalistas pelo menos não se escondiam por trás do álibi do "sensacionalisticamente correto" |
Os conteúdos da indústria
cultural seriam, portanto, mobilizados para a ritualização dessas pequenas
vinganças da dor de cada um: desde o riso voyeurista no desenho animado ao
perceber que o Pica Pau continua a correr sem saber que o chão acabou e que ele
está acima de um abismo, até o alívio em descobrir que existe gente em pior
estado que você ao ver a alcoólatra da loja de conveniência ser levada pelos policiais
em um programa do tipo “Polícia 24 Horas”.
Nessa perspectiva, a tendência
atual de programas “sensacionalisticamente corretos”, sob a aparência de
prestação de serviço e denúncia moralizante, reedita esse prazer sádico e
voyeurístico em descontar no mais fraco a frustração consigo mesmo.
É claro que tripudiar sobre
personagens miúdos que, desde o início, já estão condenados e derrotados
significa menos trabalho para a produção dos programas de TV do que enfrentar
os seguranças e o arsenal jurídico dos poderosos. E mesmo que um programa como
o “CQC” começasse a perseguir poderosos com suas iscas, câmeras secretas e
histéricos dublês de repórter/humorista, o prazer dos espectadores não seria
mais o mesmo. Denunciar as mazelas de pequenos diabos resulta em prazer
moralista e compensatório, ao passo que mirar nos poderosos exige um
posicionamento ideológico muito mais sério e desgastante para o psiquismo do
espectador.
Pelo menos nos antigos programas
sensacionalistas como “O Povo na TV” o sadismo e voyeurismo eram mais brutais e
evidentes, sem a necessidade do álibi atual da consciência politicamente
correta que vê na mobilização de todo um arsenal midiático para denunciar
pequenos escroques como o supra-sumo da consciência politizada.
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