domingo, abril 21, 2013

Deus está nos números no filme "Número 9"


Três personagens em três episódios. Cada um em uma espécie diferente de prisão: o primeiro em uma prisão domiciliar; o segundo em um reality show; e o último preso ao vício por games de computador. Em sua estreia como diretor no filme “Número 9” (The Nines, 2007), John August  faz uma reflexão metalinguística sobre o trabalho do diretor/roteirista no cinema usando uma poderosa metáfora gnóstica do protagonista como o próprio ser humano prisioneiro na Terra, cujo planeta é visto como uma realidade mal produzida e roteirizada por um “deus ex machina”: toda vez que o protagonista começa a compreender o simbolismo místico da recorrência do número nove na sua vida, o mundo é desmanchado para recomeçar em um próximo episódio, do zero, levando o personagem principal ao esquecimento da sua verdadeira identidade.

Chris Carter, criador da série “Arquivo X”, em um comentário sobre o episódio chamado “Improbable” da nona temporada fez a seguinte detalhamento do argumento da estória: “tudo é sobre a compreensão da natureza de Deus através do uso da numerologia, sincronicidade, probabilidade, reconhecimento de padrões, física teórica ou algo parecido”.

Nesse episódio de Arquivo X a personagem Agente Scully trava um interessante diálogo com a Agente Reys:
“Scully: veja, Agente Reys, você não pode reduzir tudo na vida, toda criação, toda obra de arte, arquitetura, música, literatura... num jogo de vencedores e perdedores.
Reys: Por que não? Talvez os vencedores sejam aqueles que jogaram melhor o jogo. Eles conseguiram ver padrões e conexões, assim como nós estamos tentando fazer nesse momento.”
Pois o filme “Número 9” dirigido e escrito por John August (em seu primeiro filme como diretor depois de fazer o roteiro de diversos filmes de Tim Burton) lida diretamente com esse tema ao propor que a compreensão do simbolismo místico das coincidências e sincronicidades permitiria um ser divino escapar da sua prisão corporal. A compreensão dos significados das sincronicidades como ferramenta para a libertação.


O filme se desenrola em três episódios a princípio bem distintos (inclusive com lettering indicando as divisões dos segmentos), com os mesmos atores em diferentes “encarnações”. Aos poucos vamos descobrindo que as narrativas se sobrepõem e se interligam na medida em que o filme avança:

"The Prisoner": conta a história de uma estrela de televisão (Ryan
Reynolds), que se encontra sob uma espécie de prisão domiciliar com sua assessora (Melissa McCarthy) e uma vizinha frustrada com seu casamento (Hope Davis), fornecendo suas únicas ligações com o mundo exterior. Eventos misteriosos levam-no a questionar se uma ou ambas as mulheres estão enganando a ele sobre a natureza de seu encarceramento.

"Reality Show": é um episódio de meia hora de um “reality TV” chamado "Behind the Screen," que acompanha o processo de criação de um drama de televisão. Depois de ter filmado o piloto, criador /produtor Gavin Taylor (também Ryan Reynolds) enfrenta pós-produção com a ajuda de seu melhor amigo (e atriz) Melissa McCarthy e desenvolvimento VP Susan Howard (Hope Davis).

"Knowing": um famoso designer de videogames (também Ryan Reynolds) e sua esposa (Melissa McCarthy) enfrentam problemas com o carro e um lugar remoto. Sua filha (Elle Fanning) descobre informações que o levam a uma escolha difícil e irrevogável.

O filme desafia o espectador a encontrar recorrências ou padrões nesses três episódios e resolver o enigma de uma narrativa propositalmente descontínua e truncada. Para começar os atores, que assumem diversas encarnações nos episódios. Mas as principais recorrências são a condição de prisioneiro dos protagonistas (reforçadas pela condição do prazer proporcionado por um vício) em cada episódio e a onipresença do número nove que aparece em dezenas de situações.

O consumo de crack após um colapso emocional faz a estrela de TV ficar confinada em uma casa; o prazer do roteirista em manipular ficção e realidade o faz permanecer num Reality TV da sua própria vida; e o vício por games que prende o protagonista a uma existência terrena. E a recorrência do número nove, que os personagens interpretados por Ryan Reynolds tentam compreender o porquê da onipresença numérica. Por exemplo, em momentos que fazem lembrar o filme “Amnésia” (Memento, 2000) de Christopher Nolan, o protagonista deixa um post it com um recado para o protagonista de outro episódio: “preste atenção nos noves”.

O filme “Número Nove” já pode ser considerado um clássico do “AstroGnosticismo” tal qual o filme “Earthling” analisado em postagem anterior (veja links abaixo): a visão do ser humano como uma criatura celeste prisioneira em um planeta. Sem conseguir adaptar-se, ele sofre e sente a nostalgia de algo que deixou ou perdeu. No caso de “Número 9”, a maneira de encontrar esse “conhecimento” (explicitado no episódio final) é compreender o simbolismo das sincronicidades, recorrências e padrões que estariam debaixo de nossos narizes. Cegos ou adormecidos, não conseguiríamos perceber.

Deus Ex Machina e Reencarnações

A onipresença do simbolismo
do número nove
Em entrevistas, o diretor Jonhn August afirmou que todo o argumento do filme seria metalinguístico: a responsabilidade do criador (diretor ou roteirista) diante da sua própria criação. “A pergunta ‘qual o direito que você tem de cair fora de tudo o que você escreveu? é a minha própria experiência como escritor quando em muitos momentos tenho que simplesmente pular fora de algum ponto do qual iniciou a narrativa” (“The Nines: John August Interview”, LoveFilm.com). August refere-se ao que os roteiristas chamam de deus ex machina: termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos.

Mas para fazer essa metalinguagem do próprio ofício do diretor/roteirista, August utilizou uma poderosa e dramática metáfora AstroGnóstica como se a nossa própria existência fosse um roteiro mal feito de um cosmos mal produzido. Os protagonistas dos três episódios (Gary, Gavin e Gabriel) são prisioneiros em mundos onde personagens femininos (Sophia?) tentam atrair a confiança para revelar a sua verdadeira identidade e sua verdadeira origem da qual nada se lembra. “Você não é quem imagina ser”, falam recorrentemente para os personagens prisioneiros interpretados por Ryan Reynolds.

Quando Gary e Gavin (menos Gabriel, que alcançará a gnose final que quebrará o ciclo vicioso) são confrontados com a Verdade simbolizada pela recorrência do número 9, entra em ação o deus ex machina - a intervenção do demiurgo roteirista/diretor: o mundo é desmanchado para ser reconstruído em um próximo episódio, iniciando-se do zero ou do esquecimento do protagonista sobre a revelação anterior.

Tudo isso lembra a visão gnóstica das sucessivas reencarnações na Terra: ao contrário da visão evolucionista ou aditiva espírita (a necessidade das reencarnações como forma de aprendizado), aqui temos uma concepção subtrativa: somos condenados a esquecer e recomeçar do zero, perpetuando a prisão do espírito na carne através da amnésia. Prazeres como o vício das drogas ou a ambição pelo poder (como no segundo episódio focado na busca do sucesso em uma emissora de TV) são estratégias do Demiurgo para nos entreter no próprio esquecimento.

O “Hino da Pérola”

Como o leitor poderá observar quando assistir ao filme, os três episódios se integram como o percurso da jornada espiritual de um peregrino exilado e que tenta atender ao chamado de volta para a sua terra natal, chamado simbolizado pelos padrões e a simbologia dos números.

Gary, Gavin e Gabriel são muito parecidos com os protagonistas Neo de “Matrix” e John Murdock de “Cidade das Sombras” (Dark City, 1998), mas existe uma diferença básica: ao contrário de Neo e Murdock, eles não querem reorganizar ou salvar o mundo. Na verdade eles querem simplesmente fugir do inferno.

Por isso há uma incrível semelhança entre o filme “Número 9” e o poema gnóstico cristão “O Hino da Pérola” escrito supostamente por Bardesanes no século II sobre o relato da peregrinação da alma que termina com a sua salvação simbolizada pela aquisição da “pérola” (a Gnose) e o posterior retorno à Casa do Pai. Um poema que guarda semelhança com a Parábola do Filho Pródigo de Jesus. Vejamos esse trecho do poema:

“Eu esqueci que era filho dos reis, e eu servi seu rei;
Esqueci a pérola, pela qual meus pais me enviaram,
E por causa do peso de suas opressões eu estava em sono profundo.
Mas todas essas coisas que me aconteceram
Meus pais perceberam, e ficaram tristes por mim.” (clique aqui e leia todo o poema)
Ao utilizar uma simbologia gnóstica para discutir metalinguisticamente a condição do diretor e roteirista e a sua responsabilidade diante dos personagens e da própria narrativa, John August confirma uma hipótese de muitos pesquisadores sobre o filme gnóstico como Erik Wilson, Christopher Knowles e eu mesmo: se o cinema é a própria atualização do mito da Caverna de Platão, então certamente esse meio é a expressão artística mais adequada para que os espectadores entrem em contato com realidades mais profundas – a busca da centelha de redenção e gnose através de simbolismos dentro de um meio que nos faz imergir por duas horas em uma outra dimensão.

Ficha Técnica

  • Título: Número 9 (The Nines)
  • Diretor: John August
  • Roteiro: John August
  • Elenco: Ryan Reynolds, Melissa McCarthy, Hope Davis, Elle Fanning
  • Produção: Destination Films, Jinks/Cohen Company
  • Distribuição: Sony Pictures Home Entertainment (DVD)
  • Ano: 2007
  • País: EUA


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