Em um futuro próximo, a
relação com as celebridades será tão obsessiva que todos desejarão entrar em
"comunhão biológica" comprando vírus e enfermidades exclusivas dos
famosos e comendo carne processada com células de seus ídolos. Assistindo
ao filme canadense “Antiviral” (2012) percebemos que o diretor Branon Cronenberg sugere o
elemento religioso por trás da nossa civilização das imagens e das celebridades.
Mais precisamente, o mistério do “dogma revelado” (a misteriosa união entre o
Verbo e a carne representada por Jesus Cristo) estaria motivando todo o culto
fetichista pelas imagens na atual indústria do entretenimento, mas dessa vez
não mais por meio de uma comunhão simbólica através da hóstia e vinho, mas
agora por meios tecnológicos e mortais.
Na Bíblia o Evangelho Segundo
João nos oferece dois versículos que são fundamentais para entendermos os
mecanismos arquetípicos presentes na atual cultura das celebridades repercutida
pela civilização das imagens: “E o Verbo se fez carne”, diz o versículo 14 do
capítulo primeiro; “Eu sou o pão vivo que desceu do
céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida
do mundo é a minha carne. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como
pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Respondeu-lhes Jesus: Em
verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não
beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”, versículos 51-71 do
capítulo 6.
Se o
pesquisador em Midiologia, o francês Regis Debray, estiver certo de que há uma
linha de continuidade entre a civilização das imagens atual e os Concílio de
Nicéia no ano 787 que estabeleceu o mistério da Encarnação de Cristo (o Eterno
que se tornou carne, o Infinito que se tornou finito) e a representação do
Invisível por meio de imagens, então Hollywood deveria erguer uma estátua em
homenagem a São João.
O
cristianismo é a única das três religiões monoteístas que ousou mostrar imagens
antropomórficas do Criador e a “visão beatífica”, o êxtase da contemplação por
meio das imagens. E o culto de Jesus Cristo que permitiu tratar o Eterno como
fosse uma pessoa utilizando cinzel ou pincel. Com Javé ou Maomé no comando da
cultura Ocidental, certamente não teríamos Hollywood, cinema, fotografia e toda
a civilização das imagens. Pelos menos não na configuração atual, como culto
fetichista de celebridades.
Brandon
Cronenberg no filme “Antiviral” vai ao âmago dessa natureza religiosa de toda
sedução pelas imagens: se no cristianismo a comunhão com Cristo é feita de uma
forma simbólica por meio da Eucaristia, aqui a comunhão com a “visão beatífica”
das celebridades será radical, por meio de uma estranha “comunhão biológica”
graças a uma tecnologia de embrulhar o estômago. Com sequências bizarras e
ideias excêntricas, Brandon Cronenberg segue os passos e os temas do seu pai
David Cronenberg (as mutações do corpo através do desenvolvimento tecnológico) e
nos apresenta a angústia radical dos fãs em, de alguma forma, conectar-se com
uma suposta essência sagrada ou metafísica contidas nas celebridades.
E a
angústia dos fãs será a própria angústia religiosa da fé, a angústia diante do
mistério seminal atualizado através da civilização das imagens: como um
espírito pode tomar um corpo? Como o Infinito e Eterno se mostra para nós de
forma inversa, como carne finita? Que estranho mistério é esse sobre o qual foi
construída toda a cultura Ocidental das imagens e da representação?
O Filme
Em um
futuro próximo, o culto às celebridades assumirá grandes proporções ao ponto de
surgirem uma série de produtos e serviços de apoio a essa obsessão. Como não
poderia deixar de ser, o poder aquisitivo determinará a separação entre fãs
comuns e aqueles que buscarão uma comunhão “real” com as celebridades.
Os mais ricos buscarão a “comunhão
biológica” oferecida pela Clínica Lucas – “para o apreciador da Verdade”, diz o
seu slogan. A Clínica promete inocular em seus clientes micróbio e vírus de
enfermidades contraídas por celebridades. Dessa forma, o fã experimentará uma
relação carnal com seu ídolo por meio de uma doença.
Syd March (Caleb Landry Jones) é
um dos vendedores da clínica, responsável em colher amostras de sangue da
celebridade (isso se transforma em uma fonte de renda a mais para os famosos) e
levar para a clínica. Por meio de uma máquina chamada console ReadyFace, os
micro-organismos são protegidos contra cópia ou pirataria: a enfermidade será
exclusiva do comprador, tornando-a não-contagiosa.
Secretamente Syd faz parte de um
mercado negro de vírus de celebridades onde o código anti-pirataria é quebrado
e as enfermidades são vendidas. Um submundo violento e que oferece produtos
bizarros como carne processada a partir de células de celebridades. A comunhão
biológica chega às raias do canibalismo! Em sequências bizarras são mostrados
laboratórios em porões onde são cultivados “jardins de células” para, mais
tarde, serem vendidos “bifes de celebridades” – coisas nojentas como carne
feita a partir de verruga genital de um famoso.
Mas o principal objeto do desejo
do mercado é mesmo os vírus das celebridades. Enquanto a carne de celebridade é
vista como algo mais grosseiro, a conexão viral é investida com um significado
mais espiritual e divino.
Mas Syd que ser mais do que um
traficante de vírus. Ele inocula nele mesmo um pouco de cada amostra para
também alcançar essa comunhão até que sua sorte muda drasticamente: obcecado
pela modelo alemã Hannah Geist (Sarah Gadon - o sobrenome é simbólico, "Geist", “espírito”
em alemão) inocula o vírus dela em si mesmo antes de comercializar a amostra,
para depois descobrir que a modelo morreu e que o vírus de Hannah pertence a
uma sinistra conspiração que envolve disputas por territórios no mercado negro.
Syd está com os dias contados,
adiando a sua morte com um antivírus, enquanto corre contra o tempo para
entender a conspiração e encontrar um antídoto.
O mistério do Dogma Revelado e as imagens
Para Regis Debrays em seu livro “Curso
de Midiologia Geral” a atual cultura das imagens e das celebridades é
atualização de uma questão teológica central: o mistério do dogma revelado da
chamada “união hipostática” entre o Verbo e a Carne, entre Infinito e finito, representado
na figura de Jesus Cristo. Se for verdade que a Igreja Católica foi a primeira
máquina de crença baseada na irradiação de imagens e o Concílio de Nicéia a primeira
estratégia midiológica da História, Cristo foi a primeira celebridade mundial,
o modelo seminal de criação de imagens para culto e adoração fetichista que se
perpetua de forma secularizada na indústria do entretenimento.
A imagem oferecida como uma
comunhão visual, o milagre da representação onde o Eterno e o Invisível poderiam
se materializar através de um ícone.
Mas o filme “Antiviral” nos
apresenta uma dimensão existencial que está por trás da “comunhão biológica”: o
protagonista Syd, assim como os fãs, são angustiados, querem através dessa
comunhão radical resgatar algo imaterial e invisível que as celebridades
carregariam, como fala o personagem Dr. Abendroth (Malcom McDowell) mostrando
os seus “patches” de pele de celebridades em seu braço:
“A crença em Deus, sempre me impressionou como um sinal de infantilismo perigoso. Mas você vai me perdoar se eu te disser que, com cada uma deste patches, meu mundo tornou-se mais vivo, que existe uma força, algo no encalço do olho coletivo que pode ser consumido e apropriado. Você se julga um cético, mas eu não acredito. Certamente poderia ter roubado o sangue de Hannah sem injetar em si mesmo. Por que você fez isso? Talvez você sinta o que eu sinto. Ou talvez você seja somente mais um fã.”
Essa questão lembra as reflexões
do filósofo dinamarquês Kiekegaard sobre fé e angústia colocadas pelo seu existencialismo
cristão: como um ser que
se reconhece finito o homem se encontra como o momento da realização de uma
totalidade infinita, de uma realidade que o ultrapassa, a Divindade. O
Cristianismo tenta resolver essa angústia de forma paradoxal através da união
transcendente de Deus e do homem na pessoa de Jesus Cristo. O problema é que
essa revelação da Verdade não foi feita por meio de pompas e circunstâncias,
mas foi encarnada por meio de um homem obscuro que morreu como um criminoso na
cruz. Dessa forma o acesso à Verdade somente foi possível por meio do paradoxo
e do absurdo da “união hipostática” entre Verbo e carne. Por isso, a fé poderia
ser resumida da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”.
Se a Eucaristia com todo o seu ritual
de comunhão com o sangue o corpo de Jesus Cristo através da hóstia e do vinho
tenta estabilizar esse “absurdo”, esse “dogma revelado”, em “Antiviral” a
ciência e tecnologia é colocada a serviço para ir além de todos os simbolismos
ou ícones: a conexão direta com a própria carne para tentar encontrar nela o
Verbo que apazigue a nossa angústia diante da finitude, do descontínuo e da
morte.
Ficha Técnica
- Título: Antiviral
- Diretor: Brandon Cronenberg
- Roteiro: Brandon Cronenberg
- Elenco: Caleb Landry Jones, Sarah Gadon, Douglas Smith, Joe Pingue, Malcom McDowell
- Produção: Téléfilm Canadá, Alliance Films, TF1 International
- Distribuição: TF1 International, Sundance Selects
- Ano: 2012
- País: Canadá