sábado, abril 27, 2013

E o Verbo se fez carne de celebridade no filme "Antiviral"


Em um futuro próximo, a relação com as celebridades será tão obsessiva que todos desejarão entrar em "comunhão biológica" comprando vírus e enfermidades exclusivas dos famosos e comendo carne processada com células de seus ídolos. Assistindo ao filme canadense “Antiviral” (2012) percebemos que o diretor Branon Cronenberg sugere o elemento religioso por trás da nossa civilização das imagens e das celebridades. Mais precisamente, o mistério do “dogma revelado” (a misteriosa união entre o Verbo e a carne representada por Jesus Cristo) estaria motivando todo o culto fetichista pelas imagens na atual indústria do entretenimento, mas dessa vez não mais por meio de uma comunhão simbólica através da hóstia e vinho, mas agora por meios tecnológicos e mortais.

Na Bíblia o Evangelho Segundo João nos oferece dois versículos que são fundamentais para entendermos os mecanismos arquetípicos presentes na atual cultura das celebridades repercutida pela civilização das imagens: “E o Verbo se fez carne”, diz o versículo 14 do capítulo primeiro; “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”, versículos 51-71 do capítulo 6.

Se o pesquisador em Midiologia, o francês Regis Debray, estiver certo de que há uma linha de continuidade entre a civilização das imagens atual e os Concílio de Nicéia no ano 787 que estabeleceu o mistério da Encarnação de Cristo (o Eterno que se tornou carne, o Infinito que se tornou finito) e a representação do Invisível por meio de imagens, então Hollywood deveria erguer uma estátua em homenagem a São João.


O cristianismo é a única das três religiões monoteístas que ousou mostrar imagens antropomórficas do Criador e a “visão beatífica”, o êxtase da contemplação por meio das imagens. E o culto de Jesus Cristo que permitiu tratar o Eterno como fosse uma pessoa utilizando cinzel ou pincel. Com Javé ou Maomé no comando da cultura Ocidental, certamente não teríamos Hollywood, cinema, fotografia e toda a civilização das imagens. Pelos menos não na configuração atual, como culto fetichista de celebridades.

Brandon Cronenberg no filme “Antiviral” vai ao âmago dessa natureza religiosa de toda sedução pelas imagens: se no cristianismo a comunhão com Cristo é feita de uma forma simbólica por meio da Eucaristia, aqui a comunhão com a “visão beatífica” das celebridades será radical, por meio de uma estranha “comunhão biológica” graças a uma tecnologia de embrulhar o estômago. Com sequências bizarras e ideias excêntricas, Brandon Cronenberg segue os passos e os temas do seu pai David Cronenberg (as mutações do corpo através do desenvolvimento tecnológico) e nos apresenta a angústia radical dos fãs em, de alguma forma, conectar-se com uma suposta essência sagrada ou metafísica contidas nas celebridades.

E a angústia dos fãs será a própria angústia religiosa da fé, a angústia diante do mistério seminal atualizado através da civilização das imagens: como um espírito pode tomar um corpo? Como o Infinito e Eterno se mostra para nós de forma inversa, como carne finita? Que estranho mistério é esse sobre o qual foi construída toda a cultura Ocidental das imagens e da representação?

O Filme


Em um futuro próximo, o culto às celebridades assumirá grandes proporções ao ponto de surgirem uma série de produtos e serviços de apoio a essa obsessão. Como não poderia deixar de ser, o poder aquisitivo determinará a separação entre fãs comuns e aqueles que buscarão uma comunhão “real” com as celebridades.

Os mais ricos buscarão a “comunhão biológica” oferecida pela Clínica Lucas – “para o apreciador da Verdade”, diz o seu slogan. A Clínica promete inocular em seus clientes micróbio e vírus de enfermidades contraídas por celebridades. Dessa forma, o fã experimentará uma relação carnal com seu ídolo por meio de uma doença.

Syd March (Caleb Landry Jones) é um dos vendedores da clínica, responsável em colher amostras de sangue da celebridade (isso se transforma em uma fonte de renda a mais para os famosos) e levar para a clínica. Por meio de uma máquina chamada console ReadyFace, os micro-organismos são protegidos contra cópia ou pirataria: a enfermidade será exclusiva do comprador, tornando-a não-contagiosa.

Secretamente Syd faz parte de um mercado negro de vírus de celebridades onde o código anti-pirataria é quebrado e as enfermidades são vendidas. Um submundo violento e que oferece produtos bizarros como carne processada a partir de células de celebridades. A comunhão biológica chega às raias do canibalismo! Em sequências bizarras são mostrados laboratórios em porões onde são cultivados “jardins de células” para, mais tarde, serem vendidos “bifes de celebridades” – coisas nojentas como carne feita a partir de verruga genital de um famoso.

Mas o principal objeto do desejo do mercado é mesmo os vírus das celebridades. Enquanto a carne de celebridade é vista como algo mais grosseiro, a conexão viral é investida com um significado mais espiritual e divino.

Mas Syd que ser mais do que um traficante de vírus. Ele inocula nele mesmo um pouco de cada amostra para também alcançar essa comunhão até que sua sorte muda drasticamente: obcecado pela modelo alemã Hannah Geist (Sarah Gadon - o sobrenome é simbólico, "Geist", “espírito” em alemão) inocula o vírus dela em si mesmo antes de comercializar a amostra, para depois descobrir que a modelo morreu e que o vírus de Hannah pertence a uma sinistra conspiração que envolve disputas por territórios no mercado negro.

Syd está com os dias contados, adiando a sua morte com um antivírus, enquanto corre contra o tempo para entender a conspiração e encontrar um antídoto.

O mistério do Dogma Revelado e as imagens


Para Regis Debrays em seu livro “Curso de Midiologia Geral” a atual cultura das imagens e das celebridades é atualização de uma questão teológica central: o mistério do dogma revelado da chamada “união hipostática” entre o Verbo e a Carne, entre Infinito e finito, representado na figura de Jesus Cristo. Se for verdade que a Igreja Católica foi a primeira máquina de crença baseada na irradiação de imagens e o Concílio de Nicéia a primeira estratégia midiológica da História, Cristo foi a primeira celebridade mundial, o modelo seminal de criação de imagens para culto e adoração fetichista que se perpetua de forma secularizada na indústria do entretenimento.

A imagem oferecida como uma comunhão visual, o milagre da representação onde o Eterno e o Invisível poderiam se materializar através de um ícone.

Mas o filme “Antiviral” nos apresenta uma dimensão existencial que está por trás da “comunhão biológica”: o protagonista Syd, assim como os fãs, são angustiados, querem através dessa comunhão radical resgatar algo imaterial e invisível que as celebridades carregariam, como fala o personagem Dr. Abendroth (Malcom McDowell) mostrando os seus “patches” de pele de celebridades em seu braço:
“A crença em Deus, sempre me impressionou como um sinal de infantilismo perigoso. Mas você vai me perdoar se eu te disser que, com cada uma deste patches, meu mundo tornou-se mais vivo, que existe uma força, algo no encalço do olho coletivo que pode ser consumido e apropriado. Você se julga um cético, mas eu não acredito. Certamente poderia ter roubado o sangue de Hannah sem injetar em si mesmo. Por que você fez isso? Talvez você sinta o que eu sinto. Ou talvez você seja somente mais um fã.”
Essa questão lembra as reflexões do filósofo dinamarquês Kiekegaard sobre fé e angústia colocadas pelo seu existencialismo cristão: como um ser que se reconhece finito o homem se encontra como o momento da realização de uma totalidade infinita, de uma realidade que o ultrapassa, a Divindade. O Cristianismo tenta resolver essa angústia de forma paradoxal através da união transcendente de Deus e do homem na pessoa de Jesus Cristo. O problema é que essa revelação da Verdade não foi feita por meio de pompas e circunstâncias, mas foi encarnada por meio de um homem obscuro que morreu como um criminoso na cruz. Dessa forma o acesso à Verdade somente foi possível por meio do paradoxo e do absurdo da “união hipostática” entre Verbo e carne. Por isso, a fé poderia ser resumida da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”.

Se a Eucaristia com todo o seu ritual de comunhão com o sangue o corpo de Jesus Cristo através da hóstia e do vinho tenta estabilizar esse “absurdo”, esse “dogma revelado”, em “Antiviral” a ciência e tecnologia é colocada a serviço para ir além de todos os simbolismos ou ícones: a conexão direta com a própria carne para tentar encontrar nela o Verbo que apazigue a nossa angústia diante da finitude, do descontínuo e da morte.  

Ficha Técnica

  • Título: Antiviral
  • Diretor: Brandon Cronenberg
  • Roteiro: Brandon Cronenberg
  • Elenco: Caleb Landry Jones, Sarah Gadon, Douglas Smith, Joe Pingue, Malcom McDowell
  • Produção: Téléfilm Canadá, Alliance Films, TF1 International
  • Distribuição: TF1 International, Sundance Selects
  • Ano: 2012
  • País: Canadá


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