Finalista do “Vimeo Awards 2012” o curta-metragem brasileiro “Supermercado”
faz um bizarro tour em um centro de compras onde um consumidor “surta” e
transforma-se em um imundo “monstro” que passeia calmamente empurrando seu
carrinho de compras diante de clientes perplexos. O que os publicitários chamam
de identificação do consumidor com o produto e a marca, o curta leva às últimas
consequências: a revelação de que grandes centros de compras como supermercados
são locais de manipulação subliminar tanto da arquitetura quanto da percepção.
Entramos em um supermercado
através de um plano sequência pelo ponto de vista do interior de um carrinho de
compras. Passamos pelos corredores formados pelas gôndolas de produtos. A lente
em grande angular só reforça a poluição visual da parafernália de cores,
displays e embalagens. Um homem todo vestido de branco empurra esse carrinho.
Ele se detém diante de uma prateleira de refrigerantes, pega uma pet, abre e
despeja o conteúdo calmamente na cabeça.
Esse é o início do curta-metragem
brasileiro “Supermercado” que foi um dos finalistas do “Vimeo Awards 2012”. Seus
realizadores Eduardo Srur e Fernando Huck descrevem o curta como “uma intervenção
no supermercado que caminha por várias nuances, do prazer absoluto a repulsa
total, um surto dentro de uma prisão chamada consumo. O espaço público é
utilizado como palco da subversão e dialetiza com os consumidores de forma
pacífica, mas contundente.”
De fato, o protagonista “surta”: despeja em sua cabeça camadas e mais
camadas de achocolatados, mostarda, creme de leite e assim por diante, até
adquirir a aparência de um monstro imundo no ambiente asséptico de um supermercado. E continua calmamente empurrando
seu carrinho diante de perplexos clientes.
Embora o argumento do curta-metragem baseie-se em clichês
psicologizantes das tradicionais análises sobre o consumismo (o consumidor como
um ser passivo e indefeso, a sociedade de consumo como uma prisão – reforçada
pelo ponto de vista interno do carrinho que faz uma analogia com as celas de
uma prisão, etc.), a narrativa apresenta interessantes insights acerca do verdadeiro espaço subliminar que é um
supermercado.
O “surto” do protagonista do curta “Supermercado” lembra a situação
corriqueira onde consumidores impulsivos abrem produtos para provar jogando as
embalagens abertas no chão. Embora proibido, consumidores adoram tomar iogurtes
ou sucos durante a compra, gerando perdas que, logicamente, já estão
incorporadas nos preços finais.
Fantasias orais no consumo
Mais do que falta de educação, esse comportamento revela o resultado
de uma intensa exploração subliminar daquilo que os psicanalistas chamam de
oralidade. Sorver produtos (e no vídeo o protagonista banha-se principalmente em
produtos líquidos, pastosos e leitosos) é uma das principais fantasias
exploradas pelo consumismo, associando a um amálgama de significados que vai do
amor à proteção e bem-estar.
A cada virada de esquina nos inúmeros cruzamentos de gôndolas
displays, stands e mensagens berrantes surgem como objetos de desejo
inesperados. Araré Wellausen em seu trabalho Consumismo – origem em cada um de nós revela que nessas situações o
objeto psíquico de desejo é interpretado pelo organismo como algo que vai ser
sorvido. Imediatamente o estômago secreta o ácido clorídrico como se preparasse
para a iminente digestão. Resultado: a sensação de fome que será a isca para o
consumo impulsivo.
E isso não se refere exclusivamente a produtos alimentícios. Repare o
comportamento de pessoas diante de vitrines em shoppings observando qualquer
coisa que, de repente, tornou-se objeto do desejo: bocas abertas, língua
passando pelos lábios, roer unhas etc.
Essa pulsão oral visa no consumismo garantir o suprimento da segurança
emocional: as coisas levadas à boca são internalizadas como se fossem objetos
que irão afugentar os males psíquicos produtores da solidão, do medo e do
abandono.
A oralidade tem menos a ver com o problema da obesidade física do que
com uma espécie de “obesidade mental”:
“À pessoa com orientação oral tudo pode ser incorporado. Qualquer coisa, bem, produto, serviço pode se afigurar a fantasia inconsciente, um objeto a ser incorporado; características pessoais de outrem, habilidades, conhecimentos, amigos, ideias, sentimentos, informações, utensílios, viagens, fim, literalmente tudo que pode ser mentalmente ‘comido’” (WELLAUSEN, Araré. Consumismo – origem em cada um de nós, Porto Alegre: Tchê! Editora, 1988, p. 165).
No curta “Supermercado” acompanhamos o paroxismo da internalização ou
introjeção oral do objeto do desejo: o protagonista vai além disso, ele quer se
fundir ao objeto ao senti-lo escorrendo pelo próprio corpo até se transformar
em uma segunda pele. Os publicitários chamam isso de identificação do
consumidor com o produto e a marca. “Supermercado” leva essa aspiração da
Publicidade às últimas consequências.
A estratégia “Gruen Transfer” e Dissociação
O supermercado e o Shopping Center são espaços subliminares por
excelência, pois são resultantes da conjunção de conceitos tanto das
estratégias de arquitetura subliminar quanto das táticas psicológicas e de
percepção da comunicação visual e do marketing.
Os especialistas em táticas subliminares veem esses grandes centros de
consumo como a colocação em prática de conceitos do arquiteto inventor do
conceito de Shopping Mall ou Shopping Towns em 1956, o austríaco Victor Gruen.
Antes dele, as lojas tinham uma orientação “extrovertida”, isto é, eram
expostas aos elementos (chuva, frio, sol etc.) e as mercadorias eram expostas
não para manipulação do consumidor que requeria ao vendedor que as pegasse.
Gruen imaginou um conceito mais “introvertido” de centro de compras
onde o consumidor passaria por grandes portais, átrios e saguões sem mais
contato com o mundo exterior e ficaria diante não apenas de vitrines, mas em
contato direto com os produtos. Esse conceito “introvertido” de consumo criaria
um efeito subliminar que posteriormente ficou conhecido como “Gruen Transfer”: termo é usado para designar o momento em
que consumidores, perdem as referências de orientação temporais e espaciais
(ausência de relógios em áreas comuns, ausência de janelas, corredores formando
círculos fechados, escadarias em zigue-zague, lojas em dois níveis,
estacionamentos labirínticos, bizarros desenhos nos pisos) criando uma espécie
de estado psicológico misto de torpor e euforia.
Os espaços de
deslocamento para fazer compras são ampliados em até seis vezes, aumentando o
período médio de visita para três horas. Sem saberem as horas e mesmo se é dia
ou noite, essa espécie de “Jet lag” faria os consumidores perderem o foco e o
controle das suas decisões de compras. Esta é a condição esperada antes de
entrarem nas lojas e serem presas fáceis das estratégias de vendas orientadas
pelo conceito de dissociação
Esse conjunto de
técnicas conhecida por “dissociação” seria uma forma de fazer consumidores
perderem o controle e o foco dentro do espaço de vendas das lojas, tornando-os
mais vulneráveis: deixar o cliente aguardando de 10 a 15 minutos enquanto o
vendedor “procura” o modelo pedido no estoque; troca de vendedor durante as
negociações; criar jogos mentais durante um test drive, por exemplo, com uma
pergunta do tipo “esse modelo de veículo não é o que sempre gostou de ter?”. Tudo
para criar desconcentração e embaraço.
Na Psicologia a
Dissociação é um mecanismo de defesa psicológico onde eventos traumáticos ou
pensamentos que provoquem ansiedade ou choque são separados do restante do psiquismo.
Transtorno de múltiplas identidades, desrealização, despersonalização ou
amnésia são exemplos mais conhecidos desse tipo de desordem.
A estratégia de
dissociação criaria situações de ansiedade e stress da qual o consumidor quer
se livrar o mais rápido possível favorecendo a compra por impulso. Para
favorecer esse mecanismo de defesa psíquico, o vendedor apresentará opções
simplistas, binárias que facilitam ainda mais a persuasão: querer/não querer,
aceitar/recusar, modelo X/modelo Y e assim por diante.
Portanto, pelos
insights e detalhes sobre o consumo que o curta-metragem “Supermercado” revela,
o vídeo é um ótimo ponto de partida para a sociedade de consumo e o psiquismo
humano.
Ficha Técnica
- Título: Supermercado (curta-metragem)
- Diretor: Fernando Huck
- Roteiro: Eduardo Srur e Fernando Huck
- Elenco: Eduardo Srur
- Montagem: Fernando Huck
- Fotografia: Fernando Huck
- Ano: 2012
- País: Brasil
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