O vidro talvez tenha
sido um dos objetos que mais representaram a Modernidade na arquitetura, design
e decoração. Da transparência, passando pelo fumê e espelhado dos shoppings e
mansões dos novos ricos, hoje chegamos à opacidade definitiva – a conversão em tela
touchscreen. O curta publicitário “A Day Made Of Glass” apresenta de forma
sintética a ideologia por trás dessa transformação do vidro em interface: da
transparência como uma janela aberta para o mundo e para si mesmo (telescópios
e espelhos), o vidro transforma-se em tela onde ícones e diagramas fazem a
mediação com o real criando a ilusão de controle e funcionalidade. Cada vez
menos nosso interesse em objetos, pessoas e eventos é orientado pela
curiosidade da descoberta, e muito mais pelo interesse operacional e logístico.
Como será o futuro? A Corning, uma empresa norte-americana
que fabrica vidros protetores de alta resistência, produziu um curta chamado “A
Day Made Of Glass” (Um Dia Feito de Vidro) com cenários futuros do que seria o
dia-a-dia das pessoas: como será a interação da humanidade com os eletrônicos
através de interfaces de vidros, logicamente produtos da empresa. Para a
Corning os dispositivos touchscreen
serão parte integrante do cotidiano, não apenas em computadores, mas em
celulares, espelhos no banheiro, fogões, outdoors.
Curtas como esse, ainda mais publicitários, são sempre muito
interessantes porque estamos diante de um produto cultural altamente
concentrado e sintético: retórica, ideologia e visão de mundo sintetizados em
um curto espaço de tempo. Por isso, torna a visão de mundo ideológica
explícita, sem as camadas de linguagem como nos filmes longa-metragem.
Além dos aspectos retóricos evidentes da linguagem
publicitária (os planos e fotografia lembram um grande comercial da família
feliz com cereais matinais e os personagens elaborados a partir dos tipos
ideais que lembram os modelos sorridentes da cidade de “Seaheaven” do filme
“Show de Truman”), o que chama atenção é que o vídeo não é uma “visão de um futuro
próximo”. É na verdade um wishfull thinking,
isto é, uma projetação em um futuro hipotético dos próprios desejos da empresa Corning
no presente. O que torna esse vídeo não uma utopia (o vislumbre de novos mundos
diferentes dos atuais), mas uma “atopia”: o futuro como uma espécie de
metástase da visão de mundo pré-existente.
E qual visão de mundo é essa? Poder ser resumida dentro dos
seguintes princípios: (a) As interações dominantes são baseadas em interfaces,
preferencialmente as telas; (b) Não há mais contato direto com pessoas, objetos
ou eventos, mas mediado por signos (imagens, diagramas etc.); (c) A relação com
esses objetos, pessoas ou eventos é unicamente de interesse funcional,
operacional ou logístico.
E toda essa visão de mundo representada pelo vidro, agora
transformado em tela touchscreen no
vídeo da Corning.
O imaginário do vidro
A transparência do vidro como símbolo da Modernidade |
De todos os objetos e materiais, talvez o vidro seja aquele
que mais simbolizou a modernidade através da arquitetura, design e decoração.
Um material duro, frio, liso e transparente como representante da funcionalidade,
racionalidade e assepsia.
Antes da modernidade, o vidro sempre teve simbolismos
mágicos: o fascínio em ver como areia, cinzas e cal podem se transformar em
esferas de vidro brilhantes, cheias de luz através de um sopro. Por isso passou
a ser visto com propriedades mágicas como as bolas de cristal das videntes ou
talismãs contra o mal.
Isso continuou através da literatura: Alice entrou no País
das Maravilhas através do espelho, a fada madrinha deu a Cinderela sapatos de
vidro e Harry Potter viu seu maior desejo em um espelho enfeitiçado.
Mas a Modernidade retira esse simbolismo do vidro primeiro
pela descoberta do vidro ótico no Renascimento permitindo a construção de
lunetas, microscópios e telescópios que revolucionarão a Ciência. No século XX
com a integração do vidro à arquitetura, design e decoração ele passa a
adquirir uma nova constelação de significados: inovação, arrojo, velocidade e
leveza.
O filósofo Walter Benjamin talvez tenha sido o primeiro a
problematizar essa nova cultura do vidro no seu texto “Experiência e Pobreza”
ao associar ao material o desenvolvimento da técnica que se sobrepõem ao homem,
anulando a memória e a experiência. “Um
material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa”, dizia Benjamin, como
metáfora de uma “nova forma de miséria”: o esquecimento.
A visão de Benjamin se inscreve no campo da crítica à
Alienação, isto é, a situação onde o rápido desenvolvimento tecnológico é
imposto à sociedade que se torna, em consequência, mais desumana. Mas, e se a
tecnologia tornar-se cada vez mais “amigável”, “interativa”, sempre antecipando
as reações e intenções de seus usuários?
A partir da Modernidade, é curioso como o vidro evoluiu da
sua forma transparente e original para formas cada vez mais opacas: da
transparência nas arquiteturas de Le Corbusier ou Niemayer, passando para o
fumê e espelhado nas arquiteturas pós-modernas dos shoppings, prédios
comerciais e residências de novos ricos até chegar à opacidade máxima: o vidro
como uma tela touchscreen.
De janela aberta para o mundo onde, por meio da sua
transparência (visual ou ótica), vislumbramos o que está distante e o que está
perto, o vidro torna-se cada vez menos “orgânico” ou integrador ao meio
ambiente que nos cerca para cada vez mais vedar, fechar, clivar a nossa relação
com o exterior para se transformar em uma mediação, uma tela que filtra a
realidade. Dos vidros fumê e espelhados que filtravam a luz solar à tela que
transcodifica o real em bites para recriar o mundo em diagramas, ícones e
imagens digitais.
O vidro: da transparência à interface
O vídeo publicitário da Corning apresenta rapidamente essa
transição na primeira sequência quando o casal desperta: da imensa fachada
envidraçada do quarto que anuncia uma nova manhã, a atenção do casal passa a
ser voltar para as telas de vidro com imagens de como está o trânsito, previsão
do tempo, mapas, diagramas etc.
O filósofo espanhol Rubert De Ventós em seu livro De La Modernidad alertava que cada vez
mais as indicações visuais e informativas ao nosso redor não são mais para a
nossa compreensão da realidade, mas para nossa reação diante da
realidade. Se no passado, a transparência do vidro nos ajudava a
compreender o que é ou como é o mundo, agora convertido em tela
o mundo transposto em ícones, imagens e diagramas interativos é convertido em para que.
Em outras palavras, a pergunta “o que é?” (indagação,
conhecimento, curiosidade) é substituída em “como” ou “para que” (logística,
operacionalidade). “Se tratam de mensagens cada vez mais numerosas, porque não
nos custa decifrar... porque são demasiadamente fáceis: não temos de ir até
elas, porque elas vêm até nós” (VENTÓS, X. Rubert De, De La Modernidad, Barcelona: Ediciones Península, 1982, p. 15).
Mensagens e imagens em telas altamente interativas, sempre
antecipando o que queremos, criando uma relação com eventos, pessoas e objetos
não mais de curiosidade ou aprendizagem, mas de interesse logístico e
instrumental. Isso talvez explique o paradoxo apresentado por esse verdadeiro
êxtase da comunicação: excesso de informação convivendo com a desinformação e a
incompreensão do Outro e da realidade.
A cultura da interface em telas touchscreen cria um progressivo desinteresse metafísico ou
ontológico com o mundo (o que ele é? Por que?) em nome da manipulação
telemática da realidade (para que? Como?). No lugar do questionamento, dúvida
ou crítica, temos a reação, adequação ou o feedback eficaz e eficiente aos
inputs de informações que recebemos.
No vídeo um personagem vê na tela de vidro imagens em webcam da situação do trânsito
congestionado em uma avenida. A imagem suscita mais uma reação do que um
questionamento. Questionamentos políticos, sociológicos ou de planejamento
urbano sobre o porquê dos problemas públicos são substituídos por ícones ou
diagramas com alternativas ou soluções logísticas – o “como” e o “para que”.
A ilusão do controle
Mas toda essa “operacionalidade” e “funcionalidade” e
ideológica em um duplo sentido: primeiro, ao obliterar questionamento crítico
(“por que?” e “o que?”) e não permitir que a informação ascenda ao
conhecimento; e, segundo, pela ilusão de controle que oferece ao usuário.
A Ciência na pós-modernidade possui duas características bem
claras: de início abandonou qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento
da totalidade global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela
privatizou e individualizou seus propósitos. Abandona o macro para
concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e prédios
inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o entorno
público são dominados pelo caos da poluição, trânsito e lixo.
Como fica evidente no vídeo “A Day Made of Glass” as
interfaces translúcidas repletas de ícones, diagramas e janelas se abrindo
sobre janelas dão uma falsa sensação de controle privado, enquanto a dimensão
pública é regida pelo caos e imprevisibilidade.
Isso conduz à segunda característica: nosso envolvimento com
a tecnociência é cada vez mais estético e lúdico. Os gadgets tornam-se atraentes
não pela sua funcionalidade, mas pela sua embalagem, miniaturização e pela
relação tamanho-alcance. Em termos lúdicos, percebemos claramente no vídeo que
as interfaces aumentam a possibilidade de brincar, realizar jogos e obter
divertimento.
Ilusão de controle pela funcionalidade, estética e
tecnologia lúdica. Essas parecem ser as categorias principais dessa ideologia
por trás do vídeo publicitário da Corning. Uma ideologia que, através das
imagens de extrema leveza e fluidez, cria uma cultura da interface que media
nossas relações com o real ao transforma-lo em algo funcional, operacional,
logístico, previsível, seguro, bonito e divertido. Enquanto o mundo público que
está além dos ícones e diagramas padece no caos e desordem.
Ficha Técnica
Ficha Técnica
- Título: A Day Made of Glass
- Diretor de criação: Michael Litchfield
- Diretor de filmagem: Dave Mackie
- Agência: Doremus, San Francisco
- Produção: Interactive Media Criatives e Rough House
- Ano: 2012
- País: EUA