domingo, julho 01, 2012

Meios "Quentes" e Meios "Frios" - paradoxos das produções midiáticas

Um dos aforismos mais conhecidos de McLuhan é "o meio é a mensagem". Para ele, o conteúdo de uma mensagem não tem uma grande importância. O meio muda mais do que a soma das mensagens incluídas nesse meio. As mesmas palavras ditas de forma presencial, impressas em papel ou apresentadas na televisão fornecem três mensagens diferentes. Oral, escrito ou eletrônico, o canal primário da comunicação molda o modo como entendemos o mundo. O meio dominante numa época domina as pessoas. A partir dessa ideia podemos entender os diversos paradoxos que envolvem a produção midiática e os fenômenos de recepção e das novas linguagens. 

1. Paradoxo Fascinação versus Dispersão


O fato de a televisão e o rádio terem sido as mídias de massa mais bem sucedidas e longevas, no século XX é um verdadeiro milagre pelo ponto de vista técnico da teoria da comunicação. Principalmente no que se refere à televisão: a invenção desta mídia tinha tudo para dar errado.

Ao contrário do que pensamos, a história das invenções na área de comunicação é também a história também das reações negativas e resistências. Desde o surgimento da fotografia até a apresentação pública da televisão para um público estupefato, o que vemos é muito menos uma recepção calorosa como se as pessoas estivessem necessitando delas há muito tempo, e muito mais reações iniciais de estranhamento e até resistência.

No caso da fotografia, os primeiros resultados foram tão realistas que as pessoas, feridas em seu narcisismo, recusaram aceitar aquelas imagens como suas. De fato, fotografia só se toma popular quando surge a possibilidade da retocagem diretamente nos negativos, possibilitando reconstruir as imagens de acordo com a auto‑estima:        
“Muitos se sentem nervosos quando vão ser fotografados: não porque receiem, como os primitivos, ser violados, mas porque temem a desaprovação da câmera. As pessoas querem a imagem idealizada: uma foto que mostre a melhor aparência possível. Sentem‑se repreendidas quando a câmera não devolve uma imagem mais atraente do que elas são na realidade. Mas poucos têm a sorte de ser 'fotogênicos' ( ... ) Em meados da década de 1840, o processo negativo‑positivo de Fox Talbot começou a substituir o daguerreótipo. Uma década depois, um fotógrafo alemão inventou a primeira técnica de retocar o negativo. Suas duas versões de um mesmo retrato ‑ uma retocada, a outra não ‑ espantaram a multidão na Exposition Universelle de Paris, em 1855. A notícia de que à câmera podia mentir tomou mais popular o ato de deixar ser fotografado”[1]
Quanto ao cinema, é bem conhecida a história. A primeira projeção pública de um filme pelos irmãos Lumière, em Paris, mostrando um trem chegando a uma estação provocou pânico entre os espectadores por acharem a projeção excessivamente realista como se a locomotiva fosse atropelar a todos. As primeiras imagens em close‑up na história do cinema também levaram ao terror os espectadores por acharem estar vendo uma cabeça não só decapitada como também falante...

Com a televisão não foi diferente. A televisão não surgiu para atender a uma necessidade imediata de comunicação. Antes dela o rádio já cumpria o papel de integração social. A TV não veio atender a nenhuma espera da comunicação social, mas surgiu diretamente como um meio técnico, mais um eletrodoméstico. Isso pode ser percebido nas primeiras reações das pessoas diante do invento. As primeiras reações giravam em tomo do pessimismo e ceticismo em relação ao futuro da TV. Por exemplo, para o cineasta Americano Darry1 F. Zanuck (1902­1979), a televisão não poderia se manter muito tempo no mercado pois as pessoas logo se cansariam de passar a tarde olhando um “caixote”[2] A chegada da televisão polarizou mais a curiosidade popular em relação ao objeto tecnológico em si do que a fruição dos conteúdos da programação. A pesquisadora Adriana Paes de Barros descreve dessa maneira as reações pitorescas da chegada da televisão em Cuiabá no estado do Mato Grosso do Sul:
“No imaginário social de grande parte da população cuiabana desconheciam‑se os princípios da eletrônica que geravam transmissão de imagem e som televisiva. Para estes cidadãos era quase uma ficção científica que se tomava realidade. Em virtude disso, ocorreram vários episódios pitorescos quando da geração de uma imagem experimental emitida a 6 de novembro de 1967, e recebida por diversos aparelhos de TV espalhados pela cidade. Um desses fatos ocorreu em frente ao Banco do Brasil, na área central da cidade, onde a equipe técnica instalou um aparelho de TV. Segundo reporta Antonieta Coelho, o Sr. Leôncio, um vendedor de bilhetes de loteria, ao ver as primeiras imagens, reconheceu a pessoa de Antonieta na tela, levando um enorme susto e aproximando‑se do aparelho, retrucou inconformado: "Êah! Que que esse Niêta! Como que ocê entrou nessa caixinha! Você é tão grande, como que entrou nessa caixinha?" e foi olhar por trás para ver, e ele não acreditava como que eu estava dentro da caixinha" (Coelho, 1993)”[3]
A televisão surge na década de 30 num contexto fortemente dominado pelo cinema e o rádio. Ela é recebida com forte ceticismo e estranhamento: ao contrário do cinema com suas imagens amplas e bem definidas, a TV propunha um olhar para o mundo através de uma pequena tela, com imagens cheias de interferências e fantasmas. Não é à toa que Hitler renegou a invenção e preferiu concentrar as estratégias de propaganda no Rádio e Cinema. Era um absurdo para ele ter a sua imagem confinada numa pequena tela, ao contrário da grandiosidade da imagem do cinema.

Vencendo todos os prognósticos negativos, a televisão foi implantada de forma acelerada nos países mais ricos como nos EUA, Inglaterra e França. Em uma década, firmou‑se solidamente no cotidiano popular, tomando‑se o mais importante eletrodoméstico no lugar do rádio. Nunca se ouviu falar de algum outro eletrodoméstico que tivesse sua própria salinha com cadeiras cativas! Como explicar tal paradoxo: uma invenção cuja chegada foi cercada de pessimismo e estranhamento e que, em pouco tempo, tomou‑se a mídia mais bem sucedida na história? Muito desse pessimismo ou estranhamento em relação à invenção da televisão talvez possa ser explicado a partir da teorização proposta pelo pesquisador canadense Marshall Mcluhan a cerca das mudanças culturais determinadas pelas inovações midiáticas. McLuhan classifica os meios de comunicações em dois grupos: os "meios frios" e os "meios quentes". Os meios  quentes são aqueles veículos que prolongam "um único de nossos sentidos e em “alta definição"[4] .

O cinema pode ser considerado um meio quente: as condições de recepção são perfeitas (tela grande, todos em silêncio e concentrados na fonte de informação) e a imagem é projetada em alta definição pelo fato de o cinema trabalhar com o "grão da imagem" e o movimento. Do mesmo modo é a fotografia. Elas contêm muita informação, pelo que não exigem um grande esforço por parte do receptor. Já os meios frios, ao contrário, por possuem baixa definição ou fraca eficiência representativa. O rádio, por exemplo, poder ser considerado um meio frio. Suas condições de recepção são dispersivas (ouve‑se rádio guiando o carro, trabalhando ou para preencher o vazio do silêncio quando se está sozinho em casa, ou ainda as músicas ambientes nos elevadores, salas de espera ou bares), trabalha com um único sentido (a audição) faltando à imagem completar a informação. Por outro lado, podemos considerar que o rádio já tenha sido um meio quente: no passado, era colocado como o principal móvel em uma sala de estar, onde todos ouviam atentamente às informações deixando tudo que estava sendo feito para fruir as ondas do rádio. Não havia condições dispersivas de recepção.

Por esta mesma categorização dos veículos, a televisão também pode ser considerada um meio frio: estão presentes as condições dispersivas de recepção. Ao contrário do cinema onde a recepção é atenta, com a TV a relação é dispersiva, tal qual a relação com um eletrodoméstico. Por exemplo, segundo pesquisa Latin Panel realizada em 2004, 55% dos brasileiros jantam vendo TV[5]. Vê‑se TV conversando, lendo o jornal. Constantemente a recepção é interrompida pelo telefone, campainha, barulhos da rua, etc. É comum o hábito de manter a TV ligada mesmo ao receber visitas inesperadas, como se quisesse deixar um som de fundo para as conversas. O interessante é quando a TV está acoplada a equipamentos de reprodução como vídeo ou DVD. Talvez pela associação imaginária com o cinema, estes devem ser desligados assim que há interrupção. A recepção deve ser atenta, tal qual como no cinema.

Mesmo a recepção publicitária (a própria razão de a TV comercial existir) é difícil. Segundo pesquisa da agência de publicidade SSC e Lintas Worldwide “em média, apenas 30% dos telespectadores entrevistados ficaram atentos à TV, entre os que permaneceram na sala durante os intervalos comerciais: 55% dividiram a atenção entre a TV e outras atividades e 14% dedicaram‑se apenas a outras atividades, enquanto 1 % teve uma situação indefinida”[6]Temos aqui, portanto, o paradoxo: Como as mídias de massa mais bem sucedidas do século XX (o rádio e, em particular, a televisão) puderam dar certo se na teoria elas tinham tudo para dar errado devido à natureza "fria" do veículo? Como é possível haver comunicação bem sucedida em mídias de recepção tão dispersivas?

Ainda dentro do quadro conceitual proposto por McLuhan, podemos encontrar uma possível solução a este primeiro paradoxo. Para ele, as mídias frias além de terem condições de recepção dispersivas possuem uma baixa eficiência representativa (ou "baixa definição"). Ao contrário dos meios quentes, passam uma informação com muitas lacunas obrigando uma maior atividade do receptor em preenchê‑las através da imaginação ou da fantasia. Por possuírem baixa definição os meios frios permitem uma maior participação ou envolvimento emocional pois exige que as lacunas de informação sejam preenchidas pela imaginação dos usuários. Por exemplo, o rádio trabalha unicamente com o sentido auditivo. Falta a imagem. Esta lacuna será preenchida com a imaginação do ouvinte ao criar imagens mentais a partir do material auditivo.

Com a televisão ocorre um processo um pouco diferente, mas que conduz à mesma necessidade de preenchimento de lacunas. Como as condições de recepção do veículo são dispersivas, a linguagem televisiva tem que procurar minimizar esta situação procurando manter o máximo possível a atenção flutuando dos telespectadores. Por isso a linguagem televisiva se caracteriza pelas tomadas em primeiros planos (close‑up e plano médio), cortes rápidos e ritmo acelerado para sustentar a atenção por mais tempo evitando o tão temido efeito zapping (ficar à deriva trocando de canais com o controle remoto). Falta, portanto, à imagem televisiva os planos mais abertos que contextualizaria os personagens e as seqüências. Vemos os personagens enquadrados em pequenos planos, dificilmente vemos atores por inteiro, ao contrário do cinema ou teatro. Aqui entra a imaginação do telespectador para preencher o que falta. É comum acharmos que tal ator é mais alto ou mais forte na telinha e termos um choque ao vê‑lo na realidade, à sua frente. Há uma discrepância entre a atividade da fantasia que preencheu os buracos de informação e a realidade.

A linguagem dos telejornais sensacionalistas, por exemplo, ilustra a própria natureza “fria” da mídia televisão. Ao contrário de um telejornal sério onde as informações são mais completas (“alta definição") deixando poucas lacunas ou espaços para a atividade da fantasia do telespectador, nos programas sensacionalistas os fatos são mais sugeridos do que explicados permitindo a atividade da fantasia: a imaginação do telespectador tende a exagerar a amplitude, importância ou conseqüência dos fatos. Tudo passa a ficar mais eletrizante e fantástico.

Isso fica mais claro na relação da criança com a televisão. Na sua ingenuidade diante do novo veículo, ao verem rostos em close‑up muitas crianças crêem que o resto do corpo do ator está distribuído pelos outros canais. Na falta de conhecimento sobre a sintaxe da linguagem televisiva, a imaginação e a fantasia preenchem a lacuna de informação. Isso pode parecer um exemplo bizarro mas esclarece muito o funcionamento de receptores adultos de televisão.

O paradoxo poderia ser explicado a partir deste princípio das mídias: a identificação do receptor com um veículo de comunicação varia na relação inversa da sua eficiência representativa. Ou seja, quanto mais frio for o veículo maior a participação do imaginário (envolvimento emocional e prazer) e, no oposto, quanto mais quente tendencialmente temos um menor envolvimento emocional. 

O cinema começou como uma mídia fria e
passou a "aquecer" com o seu
desenvolvimento tecnológico
Isso pode ser demonstrado quando a televisão, sendo uma mídia fria, veicula conteúdos "quentes". É o caso das TVs educativas. O conteúdo altamente informativo, cultural e educacional deixa pouco espaço para a fantasia dos receptores. Por isto, são emissoras com baixo índice de audiência, ao contrário das TVs comerciais, mais em consonância com a frieza do veículo ao produzir conteúdos repletos de lacunas de informação (sugestões, reticências, "climas", linguagem carregada de primeiros planos, fragmentação etc).

Na sua história o cinema começou como uma mídia fria e passou a “aquecer” com o seu desenvolvimento tecnológico. No início, com as imagens pretas e brancas com pouco realismo e condições de recepção dispersivas, o cinema tinha as características de uma mídia fria e alta popularidade. O público era constituído principalmente pelas camadas proletárias dos cinturões industriais e imigrantes. As projeções ocorriam em casas de variedades (conhecidas como music‑halls na Inglaterra, café‑concerts na França e vaudevilles ou smoking concerts nos Estados Unidos) onde se podia comer, beber e dançar ao mesmo tempo em que eram projetadas imagens cinematográficas, ou seja, condições dispersivas de recepção combinadas com imagens em baixa definição. Com o avanço tecnológico que trouxe imagens realistas e a elitização (a partir dos anos 30 as classes médias passaram a ser o público prioritário para a indústria cinematográfica) o cinema toma‑se um meio quente. Além disso, as condições de recepções melhoram com as salas escuras de projeção exclusivas para o cinema. Isso não quer dizer que o cinema não envolva emocionalmente o público. Apenas que a natureza da emoção é alterada: no cinema há uma maior passividade da atividade imaginária no momento em que o receptor recebe o material fílmico "pronto" onde os sentidos corporais envolvidos são trabalhados em alta definição, ao contrário da televisão em que o produto é exibido em baixa definição (como, por exemplo, a imagem composta por apenas 525 linhas, muito inferior à definição cinematográfica) exigindo a mobilização da fantasia.

Esta relação inversa entre identificação e "temperatura" das mídias talvez explique o sucesso popular de mídias que tecnicamente (pela dispersividade natural do veículo) teriam tudo para ter uma vida curta,

2. Paradoxo Fascinação versus Clichê


Por que os meios de comunicação de massas fascinam se o seu conteúdo caracteriza‑se pela absurda repetição de clichês? Por que há fascinação onde sempre há mais do mesmo? E mais: por que as tentativas de mudanças à repetição dominante acabam sendo recusadas pelo público?

Ao longo do século XX os meios de comunicação acabaram se organizando como uma Indústria Cultural graças aos altos investimentos e concentração tecnológica. Para pesquisadores críticos como Theodor Adorno (Escola de Frankfurt), a conseqüência foi o domínio de uma linguagem dominada pelos clichês: esquemas prontos que podem ser utilizados indiscriminadamente só tendo como única condição a aplicação ao fim que se destinam. Lugares comuns, fórmulas consagradas, ou seja, todo um estoque de verdadeiras estruturas ou formas pré‑fabricadas que foram sendo moldadas ao longo do tempo através da lógica da tentativa‑erro e pesquisas junto ao público consumidor.

Como afirmou o próprio Adorno, esta linguagem estereotipada da Indústria cultural nada tem a ver com algo imediatamente político ideológico (embora suas conseqüências assim o sejam) mas é uma conseqüência de processos de racionalização de técnicas tipicamente industriais. Tal qual se produz parafusos ou automóveis nas linhas de montagem industriais, as produções culturais também serão subordinadas à mesma lógica. Falar em produção industrial quer dizer falar em produção de massa, produção ditada pelo imperativo do ritmo, rapidez e produção em série para que os custos se diluam ao longo do tempo. O imperativo do ritmo veloz de produção significa que a produção deve ser estandartizada, ou seja, os produtos precisam ser elaborados a partir de standards, estruturas pré‑fabricadas ou fôrmas através dos quais os componentes são montados rapidamente. Como apontou Adorno, isso cria na Indústria Cultural o conflito entre a criatividade artística (o "novo" criado pela genialidade artística individual) e a necessidade da produção padronizada.

Por exemplo, peguemos o exemplo das telenovelas. É uma forma narrativa produzida em escala industrial com fortes determinações econômicas e empresariais. É um produto onde foi levado ao máximo o conflito entre a necessidade de padronização mercadológica e a diferenciação e criatividade dos escritores, entre a fórmula e o artesanato criativo. Isso pode ser comprovado por esta declaração do escritor Dias Gomes:
"Escrever novela é quase uma maratona. Não existe a possibilidade de ficar esperando um momento de inspiração para um autor de novelas, pois ele precisa escrever mais de um capítulo por dia. Se o autor continua a ter que escrever sete capítulos por semana e esses capítulos continuarem a ser gravados a toque de caixa, todo o esforço de um bom texto esbarrará nessa limitação. Isso não diminuirá a nossa capacidade de criação mas diminui a qualidade dessa criação"[7]
A telenovela é engenhosamente concebida em termos de rentabilidade. Assim como na linha de montagem industrial o aumento da produtividade faz cair o preço da unidade, também na TV o barateamento dos custos vem com a diluição da narrativa em intermináveis capítulos (uma telenovela, em média, tem sua narrativa alongada por seis meses). Por ser uma verdadeira maratona narrativa a telenovela adquire características de uma "obra aberta". Ela vai ao ar com, em média, 20 capítulos escritos para, daí em diante, a narrativa ser elaborada a partir de ajustes determinados pelas pesquisas qualitativas ou quantitativas junto ao público ao longo do tempo. Podem ser tanto as pesquisas quantitativas que determinam se a telenovela está dentro dos "trilhos" de audiência (metas de audiência para cada faixa de capítulos: de 40 a 50 pontos, de 43 a 53 por onde correm os primeiros capítulos, acrescidos em mais 5 pontos após o capítulo 8
120) como os mecanismos qualitativos de group discussions[8] isso no caso da TV Globo com uma grande infra‑estrutura para a teledramaturgia.

Nesse contexto de trabalho num grande ritmo tanto intensivo como extensivo o clichê ou a padronização se impõe como uma necessidade do ritmo produtivo para a economia de tempo:

"Os novelistas são unânimes em dizer que existe uma 'fórmula' para se escrever uma novela. Receita eterna que, desde as novelas radiofônicas, tematizam o amor, ódio, ciúmes. A narrativa da telenovela possui um passado onde diversas soluções dramáticas foram tentadas com êxito: suspense, filhos separados dos pais, desencontros amorosos, infidelidades, traições, etc. Chavões mais velhos têm que vir embalados com uma roupagem, uma ambientação de realidade brasileira"[9]

As aspirações por criação artística nesse contexto industrial e empresarial entram. em choque com este tipo de linguagem previamente padronizada como atesta o ator Othon Bastos: "a direção já tem uma visão estereotipada, uma visão feita de uma tradição de novela. Se você muda alguma coisa, usa outro tipo de coisa, acham um absurdo, uma loucura. Então, você está sempre em conflito ou com o autor, ou com você mesmo ou com a direção"[10].

Portanto temos aqui o segundo paradoxo: tomando o exemplo da telenovela, como a comunicação de massa consegue arrancar a fascinação através de uma linguagem carregada de clichês? Emoção e previsibilidade coexistindo num único produto? O mais fanático telespectador é capaz de admitir que as novelas são todas iguais, porém ele é capaz de chorar ou se emocionar nos últimos capítulos.

Um caso exemplar deste paradoxo que envolve o comportamento de uma audiência perante as imagens cinematográfica pode se verificado quando da exibição do filme Titanic. A narrativa era altamente previsível, tanto historicamente (o público já sabia do final trágico dos acontecimentos datados) quanto artisticamente (romance, amor impossível etc). Porém o comportamento da audiência em uma seqüência chamou a atenção: o capitão do navio queria bater o recorde de percurso entre Southtampton e Nova York, ordenando que a embarcação viajasse a todo vapor não obstante o perigo dos imensos icebergs no Atlântico Norte. "Este navio nem Deus afunda", afirmava confiante o capitão. A certa altura, um marinheiro na torre de observação avista um imenso iceberg à frente e grita desesperado para a ponte de comando. Prontamente, o timoneiro tenta desviar e reverte os motores. Nesta seqüência a câmera mostra a proa do navio vagarosamente desviando do iceberg, passando raspando. Todos no cinema sabiam que aquela seqüência iria disparar a demais seqüências de desespero até o desfecho trágico. Porém, a reação emocional do público foi paradoxal. Muitos se seguravam na poltrona torcendo para que a proa do navio se desviasse do iceberg (alguns até inclinavam a cabeça). Parecia que estavam assistindo ao vivo e não sabiam do desfecho.

Ou então o caso do comportamento do público na última seqüência do filme Tubarão. Ao final da caça do imenso tubarão branco em alto mar, só restou o chefe de polícia interpretado por Roy Scheider. Com uma espingarda na mão e o barco afundando ele tenta mirar na boca do tubarão onde está encaixado um tubo de ar comprimido. Com um tiro certeiro o animal iria pelos ares! Tensão no cinema. Todos sabiam que ali o mocinho triunfaria e o filme teria um previsível happy end hollywoodiano. Ele acerta o tiro no alvo e o tubarão explode pelos ares. Em muitas sessões a platéia se levantava e aplaudia como se estivesse envolvida num acontecimento ao vivo. Como explicar tais paradoxos num produto altamente industrializado e, portanto, padronizado, repetitivo, previsível, em síntese, clichê?

Como a comunicação de massa arranca a fascinação de dentro do clichê? Que tipo de compensação psicológico os indivíduos têm nessa linguagem padronizada? Podemos buscar a explicação desse paradoxo em duas correntes distintas de pesquisa em comunicação: a primeira, com origem nos estudos clássicos de Theodor Adorno fundamentada na tradição do enfoque social da psicanálise e, a segunda, nos efeitos psicológicos da própria percepção das imagens.

Adorno falava que a Indústria Cultural atendia a "demandas pré‑estipuladas" de "padrões aliviadores de tensão"[11]. Para ele, a mídia de massa atendia a um imperativo psicológico dos indivíduos fugirem da monotonia do trabalho mecanizado assalariado e alienante. Fuga da rotina e esforço são elementos incompatíveis. Por isso, a linguagem previsível dos clichês, induz ao relaxamento quando o indivíduo reconhece aquilo que lhe é familiar, poupando‑lhe do esforço de pensar. Por outro lado, algo de estimulante e novo deve ser oferecido para permitir ao público uma escapadela da rotina do dia‑a‑dia. A Indústria Cultural precisa despertar a atenção com produtos sempre novos e estimulantes que escapem da monotonia mas, por outro lado, a padronização imposta pelo ritmo industrial condena esta fuga. Em particular na área da produção musical, Adorno aponta para esse duplo movimento contraditório: a fascinação pela novidade de um lado e o tédio da mesmice do outro. A solução é a elaboração de produtos musicais estruturalmente simples, ligeiros, que não demande uma recepção atenta e, por isso, não fique clara a mesmice. Padrões simples ou "pré‑digeridos" atendem a psicologia familiar das massas do reconhecimento musical fácil, onde os clichês podem ser repetidos sob uma aparente roupagem da novidade.

O pesquisador alemão Dieter Prokop aprofunda ainda mais estas observações de Adorno. Partindo a idéia de que a indústria cultural tem um movimento pendular entre tédio e fascinação (entre a necessidade industrial do padrão e a necessidade dos receptores pela novidade), Prokop fala de uma necessidade de "harmonia" por parte da psicologia dos espectadores, uma situação onde fascinação e tédio não são mais excludentes ou problemáticos mas onde o tédio já está dentro da fascinação:
"O tédio que surge aqui não é somente o 'estar entediado', como ocorre quando se é obrigado a participar de algo que não deseja. É um tédio dentro da fascinação ‑ e na moderação. (...) Por outro lado os telespectadores não querem se entediar. Anseia‑se por uma harmonia difusa, que é, por assim dizer, arranjada carinhosamente para o receptor. Deseja‑se encostar na poltrona e ser alimentado com imagens e sons. Neste clima fica‑se disposto a se identificar com as coisas mais estúpidas só para satisfazer a essa necessidade. O sujeito fica fixado no ver, ouvir e ler sem que lhe possam ser permitidos excessos voyeurísticos, desfrutes. A 'quebra' logo precisa ser novamente neutralizada. Ela não pode incomodar a rotina. Uma necessidade por harmonia pode ser satisfeita pelos meios de comunicação"[12]
Como já afirmava Adorno, o telespectador que fugir da rotina do trabalho mecânico ao chegar em casa e ligar a televisão, busca algo estimulante, novo e enriquecedor. Mas, contraditoriamente, aquilo que é excessivamente novo pode trazer desordem, inquietação, pode exigir do receptor posicionamento, participação. Quebras de ritmo trazidos por elementos estéticos ou de conteúdos inovadores devem ser neutralizados pelo clichê. Prokop, portanto, ressalta a necessidade psicológica por harmonia através de imagens e sons, harmonia que induz ao relaxamento e novas energias para enfrentar a rotina do trabalho mecanizado do dia seguinte.
O fascinante é a tensão
entre momentos de fantasia
liberada e o
retorno à ordem

Marcondes Filho concretiza ainda mais estas observações de Prokop. Para ele, o fascinante na TV é a tensão entre momentos de fantasia liberada e o restabelecimento do esquema de ordem (o momento do tédio). Os produtores de TV têm como objetivo básico fascinar e fixar os interesses do público, mas de uma forma ritualizada evitando que tais necessidades sejam experimentadas em vivências reais. Sonhos, desejos, loucuras proibidas, etc são desenvolvidos nos produtos de massa conseguindo a fascinação, mas vão até um certo ponto. Se passassem desse limite começariam a incomodar o público, quebrariam a necessidade psicológica por harmonia. Marcondes Filho localiza uma das origens desta ritualização do desejo no público em antigos filmes musicais como Dançando na Chuva, principalmente na famosa seqüência onde Gene Kelly canta e dança na chuva simbolizando a alegria que rompe temporariamente com as normas sociais:

"Gene Kelly, aliás, termina de dançar, quase se desculpando, no momento exato em que aparece um guarda de rua: diante da lei, da ordem, da moral, é preciso retomar ao mundo. O ponto‑limite é aquele que faz as ações convergirem para um esquema ritualizado, isto é, fantasias emocionais do receptor (ou do espectador do cinema), que foram excitadas, terminam num esquema convencional, outras vezes no lenga-lenga viciado das canções populares: o esquema reconstrói a ordem e devolve o receptor, neutralizado, ao seu mundo"[13]

Este clichê de "quebra‑da‑ordem‑e‑retomo‑à‑ordem" é a confirmação do desejo secreto do público de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo tempo liquidar com idéias provocativas que possam incomodar a necessidade por harmonia. Um exemplo mais atual pode ser visto no filme road‑movie Thelma e Louise (1991) com Susan Sarandon e Geena Davis onde duas mulheres submetidas à repressão masculina, (uma num emprego alienante de garçonete e a outra submetida à ordem doméstica machista) rompem com tudo e fogem num carro conversível. Esta fixação do desejo do público por liberdade através de imagens simbólicas (o carro conversível, cabelos soltos ao vento num carro veloz etc) é desenvolvido até um certo ponto para, no final, os sonhos sejam abatidos num destino trágico. Pode parecer estranho, mas felicidade demais incomoda o público. As pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do clichê. Mas por que? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a TV, não seja tão traumática. Se Thelma e Louise não conseguiram ser livres, tampouco eu poderei. Antes que o sonho invada a consciência do público, tirando‑lhe a paz, o clichê abate e neutraliza.

Uma outra linha de explicação do paradoxo fascinação versus clichê está na discussão da percepção das imagens a partir da montagem cinematográfica. Tanto no cinema como na televisão ou no vídeo a montagem é o fator estruturante, aquilo que pode interferir na representação conseguida pela imagem conferindo sentidos que não possuía antes. Toda produção fílmica tem uma natureza ficcional, ou seja, o filme como produto final é o resultado de uma montagem arbitrária de enquadramentos que resulta numa narrativa.

A partir do pós‑guerra, o grande desafio da indústria cinematográfica norte‑americana foi imprimir uma ilusão realista ao filme de tal forma que o espectador, por alguns instantes, esquecesse que estava vendo um produto ficcional e imergisse nas imagens. A indústria cinematográfica não estava satisfeita com a relação psicológica criada até então entre o produto cinema e os espectadores. A relação era marcada ainda pelo distanciamento pelo caráter explícito do corte, da edição e da montagem. No final, os espectadores ainda sentiam que estavam testemunhando um filme, uma peça de ficção, A sonorização e a cor foram os primeiros passos cujo apogeu foi alcançado com a ilusão tridimensional do cinemascope e dos filmes 3‑D. Porém, o avanço decisivo ficou a cargo da criação do chamado "realismo cinematográfico". Este recurso consistia em esconder da consciência do espectador a própria natureza da produção fílmica: a edição, montagem e cortes começam a passar desapercebida da consciência do espectador, dando uma forte sensação realista ao criar a ilusão de continuidade das imagens similar ao olho humano.

Um primeiro exemplo da técnica de montagem realista pode ser encontrada na chamada “Lei dos 180 graus”. Suponhamos que num set de filmagem ou num estúdio de TV estejam três câmeras, todas focadas no objeto da filmagem. Segundo esta regra, as câmeras devem ser fixadas a uma distância entre elas de tal maneira que os campos de alcance (180 graus) de cada uma se interseccionem ou se encostem mas jamais podem se descolar (veja o diagrama abaixo).

Essa técnica garante uma transição suave entre os takes (transições em 45 graus) tomando‑a discreta para o espectador e criando a ilusão de continuidade. Ao contrário, se a distância entre as câmeras aumentar e os campos de 180 graus se descolarem teremos uma situação chamada de "quebra de eixo": ocorre um salto na transição dos takes (acima de 45 graus) tomando perceptível ao espectador a troca de câmera e criando uma situação de metalinguagem. O corte explícito nas imagens provoca um distanciamento e pouco envolvimento emocional com a imagem.

O cinema e o vídeo trabalham com três tipos de olhares: o olhar do espectador para o filme, o olhar da câmera e o olhar dos personagens. O efeito conseguido pelo realismo cinematográfico é o de conseguir fundir esses três olhares no próprio olhar do espectador, produzindo um efeito realista de imersão nas imagens e, por conseguinte, um forte envolvimento passional, Isso difere dos chamados filmes "não‑comerciais" (ou "de arte") em que estas regras são intencionalmente quebradas para provocar um efeito oposto: o distanciamento crítico do espectador com o conteúdo do filme, ou seja, estabelecer uma relação racional, contemplativa e não emocional.

Essa técnica talvez explique o porquê do envolvimento passional. (e a fascinação) mesmo nas imagens e seqüências mais clichês ou previsíveis: tudo parece estar sendo visto pela primeira vez, parece que o espectador está lá, vendo ao vivo!

Este encobrimento do caráter ficcional do cinema e do vídeo muitas vezes adquire um caráter ideológico com conseqüências políticas. Fatos e imagens montados e arbitrariamente editados podem passar, para um espectador leigo sobre os processos técnicos da elaboração fílmica, como imagens contínuas e realistas: "tudo se passou da maneira como estou vendo!" Um bom exemplo deste perigo da edição ideológica é a famosa edição tendenciosa feita pelo Jornal Nacional da TV Globo, quando da eleição presidencial de 1989, do último debate entre os candidatos Lula e Collor. O debate foi editado escolhendo arbitrariamente os melhores momentos de Collor e os piores de Lula, mantendo réplicas e tréplicas de Collor e retirando as respostas às perguntas formuladas por Collor. Para o telespectador leigo sobre os recursos técnicos da edição e montagem (a maioria dos brasileiros), as imagens mostravam uma vitória avassaladora de Collor. Os cortes passaram despercebidos para a consciência dos telespectadores diante da ilusão da continuidade das imagens. Muitos analistas políticos afirmaram, à época, sobre este fato decisivo no resultado das eleições presidenciais, realizadas 48 horas após o resumo do debate exibido pela TV Globo.

3. Paradoxo Indivíduo versus Massa


O conceito "Comunicação de Massa" traz em si uma contradição: como é possível comunicar para a massa se esta não existe? Explicando melhor, como é possível comunicar‑se com uma entidade que, a rigor, não passa de uma abstração estatística? A massa não existe enquanto entidade concreta, com rosto, particular. Os produtos culturais são produzidos sob a égide da idéia de "massa": uma entidade amorfa, associada freqüentemente a multidões sem rosto, indistinta. No entanto, a fruição ou a temática dos produtos massivos assume um tom de singularização, de bate‑papo que se dá na intimidade doméstica recheada de banalidades do cotidiano pessoal (sintomático em expressões que povoam a TV como "minhas colegas de trabalho", "A Casa é sua", "passar a tarde com você", “bem, amigos...”, “Alô, você...”, etc).
Como é possível os produtos midiáticos assumirem esta linguagem aparentemente individualizante se eles, na verdade, não comunicam para alguém em particular mas para a massa? Como é possível se comunicar para uma massa sem rosto, por outro lado, como indivíduos conseguem se identificar com produtos que não são produzidos para ninguém em particular?

No século XX, o Marketíng tomou‑se a grande ferramenta para solucionar este paradoxo que envolve as relações entre o mercado e os meios de comunicação de massa. Com todo o seu aparato de métodos de pesquisa emprestados das Ciências Sociais (economia, antropologia, sociologia etc), vai procurar encontrar o ponto médio, o valor modal (do conceito "moda" em estatística: ponto médio de uma classe de freqüência de eventos) das disposições, comportamentos, desejos e atitudes de um público alvo. A este valor modal (onde, apesar das diferenças individuais, todos são iguais em média) vamos dar o nome de fantasia‑clichê: "conteúdos psíquicos que representam características mais gerais do grupo‑alvo (componentes de significação como poder, sexualidade recalcada, destrutividade etc), por meio de palavras, imagens, gestos, poses etc, mais ou menos testados anteriormente."[14]

Este conteúdo psíquico médio na verdade pode ser considerado uma autêntica colagem de características, o mínimo denominador comum das fantasias individuais composto por um conjunto de fragmentos de imagens, conceitos, idéias que vão formar o paradigma através do qual os produtos culturais vão se orientar na produção.

Um primeiro exemplo dessa aplicação prática da teoria da fântasia‑clichê é o Jornal Nacional da TV Globo. Primeiro telejornal. de rede da televisão brasileira (foi ao ar pela primeira vez em 1969) é o típico produto de massa, ou seja, voltado para milhares de telespectadores e potencialmente atingindo todas as classes sociais. Por isso o produto noticioso do telejornal tem que ser produzido de uma tal maneira que consiga atingir o ponto médio de milhões de brasileiros. As notícias são redigidas a partir de um paradigma composto por 900 palavras (resultado de pesquisas que determinaram o conjunto de palavras que compõem o vocabulário comum aos brasileiros da camada A até D). Os textos das notícias são preparados para um telespectador modal, um ideal‑típico, que não existe na vida real. Porém, cada telespectador poderá reconhecer‑se nos fragmentos de palavras que costuram as frases das notícias. Por outro lado, notícias que exigem um número excessivo de palavras para além do repertório modal não são pautadas no Jornal Nacional: são deslocadas, para os telejornais mais segmentados, com menor característica "de massa" por focar públicos de faixas sócio‑econômicas mais altas como o Jornal da Globo que vai ao ar entre 23H00 e meia‑noite.

É claro que o repertório de um indivíduo concreto possui mais de 900 palavras, porém o Jornal Nacional comunica notícias para um telespectador abstrato, médio, modal. Isto é, reduz por baixo o vernáculo brasileiro para atingir a todas as classes sociais. O custo do alce massificante de uma informação é o empobrecimento da própria informação e, mais do que isso, uma espécie de "censura técnica": notícias mais complexas são excluídas para serem pautadas nos telejornais exibidos em horários fora de alcance para a maioria dos brasileiros (tarde da noite). Sob uma aparência democratizante, os meios de comunicação de massa acabam executando uma censura velada: enquanto os telejornais de massa são para um telespectador abstrato (ou seja, que só existe na estatística), os telejornais mais segmentados, por se direcionarem para um público menor (a elite), conseguem uma concreção maior.

Um outro exemplo, desta vez com um produto bem diferente por envolver aspectos psíquicos, é o caso das revistas eróticas masculinas. Estas revistas trabalham com uma matéria‑prima muito pessoal e singular: o desejo e a excitação sexual masculina. Cada homem tem maneiras muito pessoais de se sentir atraído eroticamente. As revistas eróticas exploram uma esfera íntima onde tudo é muito pessoal e intransferível. Mas como estas revistas são capazes de massificar modelos de excitação sexual a partir de um material psíquico tão íntimo e individualizado? Como é possível, com este tipo de produto muito especial, encontrar o ponto modal onde, apesar das singularidades, todos se encontram e se igualam?

Filme "Tolerância": a
construção da mulher
de massas
Podemos dizer que as revistas eróticas masculinas constroem uma mulher abstrata a partir do ponto médio do "tesão" masculino. É uma mulher que não existe concretamente, embora as fotografias partam de uma modelo real que posou em longas sessões de fotografias. O material fotográfico que chega ao conselho editorial da revista é o resultado de dias de árduo trabalho. O fotógrafo autor do ensaio até se orienta por critérios muito mais artísticos do que comerciais. Porém, quando o material fotográfico chega ao conselho editorial, as fotos escolhidas serão aquelas com maior apelo "de massa": sempre as mesmas caras, bocas, poses, jeito de jogar o cabelo etc, que correspondem aos valores clichês modais do mercado. A edição das fotos, não só com a utilização de programas de retocagem em fotos digitais que interferem na própria imagem, mas também no próprio momento da produção no estúdio (enquadramento, cortes, poses e a própria direção artística do fotógrafo) resulta na construção de uma verdadeira mulher fragmentada: pernas, bocas, olhos, bundas, etc são como que "coladas" resultando numa verdadeira abstração.

Um exemplo didático e, ao mesmo tempo engraçado, do universo das fotos sensuais pode ser visto numa passagem do filme brasileiro Tolerância. Desesperado, um fotógrafo publicitário pede ajuda a um designer gráfico para salvar o trabalho. Após uma árdua semana, o fotógrafo repara que a modelo engordou e que a bunda está "caída" nas fotos. Sem tempo e filme para refazer o trabalho, pede ajuda ao designer. Numa seqüência bem didática, o personagem abre a fotografia em questão no programa de computação gráfica photoshop e, ao mesmo tempo, no canto da tela do computador, surge um verdadeiro "clip‑art" de bundas: uma coleção de bundas em close de modelos que participaram de diversas campanhas publicitárias. O designer seleciona a que melhor encaixa no corpo da modelo e "arrasta" com o mouse até o ponto desejado. A foto resultante é uma mulher fruto de um verdadeiro trabalho de colagens de fragmentos modais das fantasias do psiquismo do mercado.

O fotógrafo Tripolli protagonizou um fato polêmico na Playboy em 2002 num ensaio com a atriz Débora Secco que o motivou a deixar a revista. "Hoje a Playboy está equiparada à Sexy. Fiz um ensaio com a Débora Secco e me disseram que existe uma pesquisa mostrando que, em todo ensaio, deve ter três fotos de mulher de perna aberta. Fazer foto pra burro eu não faço."[15]

Ariane Carneiro, editora de fotografia da Playboy, fala que em 30 anos de existência a revista aprendeu a fazer aquilo que o "leitor quer". E o quê o leitor quer? "Já sabemos que precisa ter um certo número de fotos de pêlo, de fotos de peito e de fotos de bunda. Para você ter uma idéia, num ensaio de 20 páginas, você tem de ter umas oito fotos de pêlo,oito de bumbum e o resto de peito."[16]

Esta declaração demonstra não só o caráter clichê da mídia de massa (repetição, forte esquematização e ausência de espontaneidade) como também a natureza abstrata do leitor da revista: as fotos não são para ninguém em particular mas para um leitor abstrato que se identificará com uma mulher resultante de pedaços dos traços médios das fantasias masculinas aferidas pelas pesquisas de mercado.

NOTAS


[1] SONTAG, Susan, Sobre Fotografia, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 102.

[2] http://~.adventistas.com/downioads/Cuidado tv vicia.doc
[3] httpJ/www.eca.usp.br/alaic/Congresol 1999/14gt/Adríana%2OAzevedo%2OPaesO/c20de%2OBarros c/'o20.rtt.
[4] MCLUHAN, Marshall. "Os meios de comunicação como extensões do homem". Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Editora Cultrix. p. 38.
[5] Latin Panel ouviu 25 mil pessoas, representando 82% da população brasileira e 86% do potencial de consumo. Veja em http://www.antonioviana.com.br/laaExibMate.asp?CodiMate=14840&ClMate=8.
[6] TILBURG, João Luis, "Televisão e o Mundo do Trabalho" In: http://www.tv‑pesquisa.com.puc-­rio.br/Estrutura3.htm  (acessado em 15/0 112005).

[7] COLOMBO, Manoela, "A narrativa da telenovela pode ser considerada literatura?", lá: Jornal das Letras número 73, setembro 2004 pág. 4.
[8]realizadas até a primeira terça parte da novela, por volta dos capítulos 20, 40 e 60. São realizados tendo como amostra um grupo de nove a dez mulheres, donas‑de‑casa entre 25 a 45 anos, as quais, na presença de um moderador, se reúnem para discutir a novela que está no ar. Os encontros são feitos simultaneamente em São Paulo e no Rio de Janeiro”, ORTIZ, Renato, Telenovela: história e produção, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 127.
[9] IDEM, pág. 131.
[10] Entrevista com Othon Bastos, PUC-FINEP, 1986.
[11] ADORNO, Theodor, "A Indústria Cultural, In: COHN, Gabriel, Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo: Editora Nacional, 1971, p.291.
[12] PROKOP, Dieter, "Fascinação e Tédio na Comunicação; produtos de monopólio e consciência” In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.) Dieter Prokop, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, p. 154­-155.
[13] MARCONDES FILHO, Ciro, Televisão: a vida pelo vídeo, São Paulo: Ática, 1988, p.39‑40.
[14] PROKOP, Dieter, “Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e consciência”, In: MARCONDES FILHO, Ciro (org), Dieter Prokop, Coleção Grandes Cientistas Sociais, número 53, São Paulo, Ática, 1986, p.158.

[15] "Reação ao Vulgar” In: CartaCapital 16 de março de 2005.
[16] IDEM

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