Férias escolares com chuva e frio. Em metrópoles como São
Paulo uma das poucas opções nessas situações são os shoppings e seus cinemas
multiplex. Pelas associações (chuva, água e frio) veio a ideia de levar os filhos para assistir “A Era do Gelo 4”.
Dessa vez o trio central de amigos (o mamute Manny, o tigre
dente-de-sabre Diego e o bicho preguiça Sid) vai enfrentar uma gigantesca
catástrofe geológica: a separação dos continentes provocada pelo esquilinho
Scrat na sua busca incansável pela noz. A estreita faixa de terra e gelo em que
vivem está sendo empurrada para o oceano por um gigantesco paredão de rochas. A
única chance de sobrevivência é escapar por uma ponte de rochas e terra
vislumbrada no horizonte. É o início da fuga de todos os animais liderados pela
família de mamutes protagonistas. Para complicar, Amora, filha de Manny e
Ellie, está na adolescência e naquela fase de busca da própria independência e
desafiando a autoridade dos pais.
Amora sente-se atraída por um jovem mamute que pertence a um
grupo de “rebeldes” que sempre estão em lugares perigosos para viverem
experiências de diversão radicais pouco recomendadas pelos pais. Situação
suficiente para criar diálogos conflituosos como “eu queria que você não fosse
meu pai!” que precederá a uma grande avalanche que separará a família: Manny,
Diego e Sid cairão no oceano sobre um imenso bloco de gelo cuja corrente
oceânica os levará para longe de Amora e Ellie.
Amora se sentirá culpada pelo desaparecimento do pai depois
de ter dito palavras tão duras, enquanto Manny e seus amigos empreenderão uma
épica luta enfrentando piratas e outras ameaças para poder retornar à família
ameaçada pela catástrofe.
Culpa, renúncia e sacrifício são as palavras-chave dessa
continuação da franquia “Era do Gelo”. Comparado com os temas dos episódios
anteriores da série (o valor da amizade, respeito às diferenças, a coragem e a
ajuda ao próximo), os temas dessa continuação parecem ser mais duros, sérios,
como se tivesse uma mensagem para todos: se preparem para os tempos duros que
virão e mantenham a família e amigos juntos e disciplinados!
O grupo dos adolescentes rebeldes: não dê ouvidos para o desejo |
Se partirmos do pressuposto do historiador Marc Ferro de que
todo filme, especialmente o de ficção, é um documento por trazer para o campo
simbólico o imaginário social do momento, podemos formular uma hipótese: será
que esta narrativa mais dura que refaz o mito da volta para casa de Ulisses não
estaria sintonizada com os tempos atuais de crise econômica e desemprego nos
EUA e Europa pós-crise financeira global? Será que as lições do valor moral da
renuncia, sacrifício e obediência que “A Era do Gelo 4” oferece para as
crianças e aos seus pais e acompanhantes no cinema não seriam uma preparação
subliminar para a necessidade da união e otimismo diante dos tempos difíceis
que virão?
A astúcia do mamute
A animação “A Era do Gelo 4” tem uma evidente função
civilizatória: para as crianças, fazê-la saírem do mundo da Natureza e dos
mitos do imaginário infantil; e para os adultos acompanhantes relembrar disso.
A certa altura da estória, no meio da fuga dos animais do gigantesco paredão
que ameaça jogar a todos no oceano, um animal pergunta para uma dupla de gambás
brincalhões e completamente alheios à catástrofe próxima: “vocês não têm medo,
quer dizer, medo da morte iminente”, pergunta em tom como fosse uma questão
filosófica. “Vou contar um segredo para você”, responde um deles com uma cara
idiota, “nós somos burros!” A morte para os animais não é uma questão
metafísica ou moral (para onde eu vou?), mas uma questão de instinto de sobrevivência.
Os animais pertencem à Natureza onde não existem demandas morais como a
renúncia e o sacrifício.
Mas esses valores devem ser ensinados para as crianças por
meio da jornada do mamute Manny. Ele representa o herói Ulisses da epopeia de
Homero.
Para Adorno e Horkheimer no livro A Dialética do Esclarecimento a astúcia de Ulisses é a
proto-história da civilização racional, cuja ápice vivemos atualmente no
chamado Capitalismo Tardio. Ulisses consegue retornar a Ítaca após usar sua
astúcia para escapar do perigo dos mitos durante sua jornada pelo Mar
Mediterrâneo: os perigos de Cila e Caríbdes, cegar o olho único de Polifemo,
conservar sua forma humana apesar das seduções de Circe, resistir à tentação da
amnésia e do paraíso artificial dos Lotófagos (a animação faz uma breve alusão
quando Sid come uma flor de lótus e cai em sono profundo) e resistiu ao canto das
sereias.
Para os autores, a astúcia de Ulisses estava em se entregar
em um primeiro momento aos encantos e seduções da Natureza, dos mitos e dos
demônios para, depois, enganá-las. Da mesma forma como o herói moderno (o homem
comum) o faz ao reprimir seus impulsos e desejos no seu dia-a-dia em nome da
racionalidade das metas sociais, políticas ou corporativas.
Embora saiba da existência das sereias que se escondem nas
pedras para, através do seu canto, afundar os navios, Ulisses mantém o rumo da
sua embarcação para se permitir ouvir os cantos proibidos. Porém,
astutamente mantém os remadores com seus ouvidos tampados com cera enquanto deixa-se
ser amarrado ao mastro principal. Permite-se ser seduzido, mas logra mais uma
vez os mitos sedutores.
Na animação temos uma sequência análoga quando o trio de
protagonistas em seu bloco de gelo transformado em embarcação que vaga pela
correnteza encontra estranhas criaturas capazes de criar alucinações com o que
cada um deles mais deseja. Determinado, Manny compreende a ilusão e tampa o
próprio ouvido e salva os amigos.
Uma dura lição
Parece que a animação “A Era do Gelo 4” pretende dar uma
dura lição para as crianças: a astúcia e a firmeza de propósitos depende da
renúncia aos desejos e a rígida disciplina à ordem e valores. Com exceção do
protagonista homérico Manny, todos aqueles que quebram a ordem ou são
desobedientes por dar ouvidos aos “cantos das sereias” são punidos: Amora após
desobedecer às ordens paternas vê seu pai sendo levado para o oceano pelo
desabamento de rochas; o pirata e tripulação são punidos ao cair na ilusão
criada pelos estranhos seres marítimos; Amora quase morre em uma misteriosamente
bonita caverna ao ser atraída pelo seu jovem amado e desobedecer às ordens da
mãe Ellie na fuga; e, finalmente, o pobre esquilinho Scrat que chega à
Atlântida dos esquilos que lhe recomendam “transcender” do seu “mesquinho”
desejo por nozes – Scrat, claro, não obedece e é duramente punido pelo destino
na sequência final por abraçar o seu doce desejo.
É a fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”
onde sonhos ou desejos dos personagens que possam confrontar a ordem devem ser
punidos. É um esquema de elaborar as fantasias e desejos nos filmes para
adultos. Principalmente desde os filmes musicais, temos o esquema da liberação
de elementos transgressivos ou desestabilizadores da ordem moral ou política
até certo ponto da narrativa, para, ao final ou na próxima sequência, retornar
à ordem convencional.
“A Era do Gelo 4” quer ensinar a seguinte lição para as
crianças: desde sempre o caminho da civilização é o da obediência e do
trabalho, sobre o qual a satisfação brilha como mera aparência. Quem quiser
vencer as provações não deve dar ouvidos aos chamados sedutores.
Assim como na Grande Depressão econômica dos EUA da década
de 1930 onde os filmes de Frank Capra tiveram o papel de “arregimentar a tropa”,
isto é, injetar sua mensagens de otimismo com protagonistas persistentes e
idealistas, “A Era do Gelo 4” trás novamente essa mensagem em meio a um novo
quadro de crise econômica norte-americana. Porém, sem a leveza e romantismo de
Fank Capra. A animação infantil é surpreendentemente dura e impiedosa, assim
como a mãe que pune seu filho por ter colocado a mão onde não devia.
Portanto, a alusão à “Odisséia” de Homero na animação é
muito mais do que mera coincidência ou recurso retórico: assim como Homero ajudar
a modelar a cultura grega ao se apoderar dos mitos e submetê-los à astúcia racional
de Ulisses, da mesma forma “A Era do Gelo 4” organiza os medos e mitos do
imaginário infantil para submetê-los à necessidade civilizatória da repressão.
O heroico e determinado mamute Manny e o fracassado
esquilinho Scrat são os dois modelos de comportamento oferecidos à crianças
para comparação: o primeiro, o sucesso da civilização baseado na renúncia e
sacrifício; o segundo, sempre punido por se deixar levar pelo desejo e prazer.
Ficha Técnica
- Título: A Era do Gelo 4 (Ice Age: Continental Drift)
- Direção: Steve Martino e Mike Thurmeier
- Roteiro: Michael Berg e Jason Fuchs
- Elenco (vozes): Ray Romano, Denis Leary e John Leguizamo
- Produção: Blue Sky Studios
- Distribuição: 20th Century Fox
- Ano: 2012
- País: EUA
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