segunda-feira, julho 30, 2012

A materialidade das Produções midiáticas (parte 3): as desreferencializações

Imagine uma pessoa chegando a um restaurante. Ela pede o cardápio e começa a comer os signos dos pratos (as fotos) ao invés dos referentes (as comidas que são representadas no cardápio). Pois algo parecido ocorre nas mídias eletrônicas e digitais: passamos a tomar ícones, imagens e a própria tela como fosse o próprio real e não mais uma representação, como tínhams consciência nas mídas anteriores. O resultado é que nas novas tecnologias paradoxalmente as mídias atuias retornarão a muitas características das formas presenciais e orais de comunicação. As consequências encontraremos em diversos gêneros televisivos e digitais.


Como afirmamos na postagem anterior (veja links abaixo), a produção imagética eletrônica e digital, aparentemente icônica, podemos classificá-las como simbólicas. Se o signo simbólico caracteriza-se pelo corte semiótico, ou seja, a transferência da coisa para o signo, a autonomia e o desligamento do mundo significante, encontramos esta característica nas mídias das novas tecnologias. A relação contígua com objeto presente tanto na fotografia como no cinema desaparece nas tecnologias eletrônicas e digitais. O objeto é trans-codificado ou transcrito para a cadeia algorítmica dos significantes digitais. 

Aqui não encontramos nem a contigüidade e nem a similaridade icônica. Cores, tonalidades, luzes e sombras são convertidas para CDs e discos rígidos em seqüências de dígitos ou algoritmos. Temos a relação semiótica arbitrária dos símbolos com os traços sensíveis do objeto. Abertos estes arquivos numa tela de computador, temos a simulação de uma imagem a partir de uma matriz numérica.

Mesmo na TV temos a simulação através do bombardeio de raios catódicos nos pixels do tubo de imagem, originados a partir do sinal hertziano proveniente do rastreio eletrônico de uma imagem contiguamente criada na câmera dentro do estúdio. Tanto nas mídias eletrônicas como digitais temos a recriação ou transcrição do objeto, seja em pixels ou em algoritmos. Esta categoria de simulação é central para compreendermos a natureza crítica das novas tecnologias de comunicação.

Para a Semiótica o signo define-se pelo conceito de representação. Vimos que estes vínculos semióticos de representação podem ser por contigüidade (índices), similaridade (ícones) e arbitrariedade (símbolos). No campo dos signos simbólicos, a escrita e o impresso representam os objetos por letras, números, sinais etc. Porém, os signos simbólicos derivados da mídia eletrônica e digital possuem uma especificidade que os tornam especiais: a simulação. Eles não se contentam em representar, mas simulam a presença do objeto.

Esta sutil característica trará a crise da representação e a regressão do símbolo ao índice. Paradoxalmente, pela razão de os símbolos eletrônicos e digitais simularem a presença do objeto, passarão a ter as características das mídias orais.

O "gap" entre a mídia e o real


As técnicas de transmissão ao vivo parecem
fusionar todas as antigas etapas de captação e
transmissão de informações
O signo sempre representa algo distante no tempo e no espaço: a foto de alguém que já morreu, o livro ou o jornal impressos que relatam fatos já ocorridos, a palavra abstrata /cão/ distante dos cães concretos. O signo não é a própria coisa representada, assim como o mapa não é o próprio território. 

Entre o signo e o objeto há sempre um “delay”, um atraso, uma “différance”. O que as mídias eletrônicas e digitais prometem é a negação desse postulado da semiótica com a ideologia do “ao vivo”, do “on line” e do “tempo real”: o mapa torna-se o próprio território.

Vamos considerar o livro. Na sua produção, todos os elos da cadeia representativa desenrolam-se no tempo. Da coleta das informações pelo autor, passando pela redação, edição, difusão, culminando com a recepção dos leitores transcorre um intervalo temporal, um atraso do signo final em relação aos fatos que deram início à coleta dos dados.

Vejamos a fotografia. Embora a fixação fotográfica faça coincidir o acontecimento com a sua coleta, no entanto a imagem deve ser revelada, impressa e difundida, levando tempo para chegar até nós. Este atraso não é apenas “técnico” (“problema” que teria sido superado com as novas tecnologias de difusão instantânea). Esta cadeia representativa temporal determina as próprias condições de recepção da mídia simbólica: tempo para assimilação, reflexão crítica, recepção individual, discurso constatativo etc.

Nas mídias simbólicas eletrônicas e digitais esta “différance” é destruída (pelo menos da consciência do receptor):
“As técnicas modernas de transmissão ao vivo permitem fusionar todas essas etapas. Quando Neil Armstrong dá o primeiro passo na Lua, milhões de telespectadores no mundo inteiro, no mesmo segundo, retêm sua respiração. E para a final de uma copa de mundo de futebol, é mais de um bilhão de homens que vivem o acontecimento em tempo real. A ‘comunicação’ substituiu a re-presentação pela co-presença, a ‘différance’ simbólica pelo envolvimento da massificação indicial, a interpretação pela vivência afetiva, a significação pela sensação”[1]
Novamente o enunciado volta a colar-se com a enunciação, o emissor funde-se com o discurso, características da mídia indicial. A presença é simulada, tal como na comunicação oral é como se o receptor fizesse parte de uma platéia que assiste ao evento aqui e agora, presencial. No plano do discurso temos o enfraquecimento da natureza representativa do signo: e o surgimento do hiposigno. Como ocorre a simulação de uma presença, a significação é substituída pela sensação: não há espaço para reflexão ou memória, o fato é absorvido como choque, sensacionalismo, perda de capacidade crítica. A informação passa a ser essencialmente efêmera, proveniente de fluxos em tempo real.

Um exemplo: televisão e credibilidade


O critério de "verdade" substituído pelo
de "credibilidade"
Um bom exemplo disso é a substituição do critério de verdade pelo da credibilidade no jornalismo televisivo. A “presença” do apresentador do telejornal confere à notícia credibilidade: não nos preocupamos em saber se a informação é verdadeira ou falsa, mas as características indiciais do emissor (expressões fisionômicas, gestual, biografia) conferem credibilidade. Temos aqui a massificação indicial das mídias orais, paradoxalmente num meio eletrônico. A recepção da informação não é crítica ou reflexiva. Embora isolado, o receptor sente como se estivesse dentro de uma massa indicial de receptores, na presença do emissor. Como vimos na mídia oral, o calor da presença inibe uma recepção crítica.

A ideologia do “ao vivo” e do “tempo real” funde mas não destrói a cadeia de representações que vai da coleta à difusão e recepção. Todas as etapas da representação continuam lá, porém, escamoteadas pela simulação tecnológica da presença. O diretor de imagem seleciona os takes que serão transmitidos, a câmera recorta ideologicamente o que o operador quer mostrar da realidade. A natureza sígnica do fato ainda subsiste, mas é escondida da consciência do receptor.

Desreferencializações


A crise da representação criada pelas mídias simbólicas digitais produz uma verdadeira desreferencialização ao confundir o signo com a própria realidade, o mapa com o próprio território.

Assim como chegássemos a um restaurante e comêssemos os signos das refeições (o cardápio) ao invés das próprias refeições (o objeto representado pelo signo), da mesma forma tomássemos a o signo da realidade (a imagem da TV) como a própria realidade. Como efeito da simultaneidade ou presença, esquecemos o caráter de representação. Esta simulação da presença torpedeia o espírito crítico pelo calor e urgência do fluxo de imagens “ao vivo”. 

Participamos emotivamente de uma comunidade indicial de sensações, afetos, paixões. Afinal, tudo parece estar acontecendo na minha frente. É como se a tela da TV fosse uma janela aberta para o mundo.

Embora o percurso que passa pelo acontecimento, coleta, o relato e recepção tenha sido comprimido pela velocidade da tecnologia eletrônica e digital, ele permanece. O calor emocional dos signos indiciais do “ao vivo” faz esquecermos disso, atrofiando faz esquecermos disso, atrofiando o pensamento crogia eletrelato e recepço pensamento crítico. Começamos a perceber uma inversão: o efeito da realidade passa a substituir a própria realidade, o signo substitui o próprio objeto. Ou seja, a mídia faz existir aquilo que diz. 

Um setor inteiro das informações começa a derivar do discurso constativo para o performático onde a mídia passa a ser co-produtora dos acontecimentos. Em outro trabalho nos referimos a este fenômeno como produção de “pseudoeventos[2], termo criado pelo historiador norte-americano Daniel Boorstin[3] referindo-se a fatos que diretamente ou indiretamente a mídia co-produziu. Um fato só existe quando a imprensa fala nele. Portanto, cada vez mais fatos são criados com a intenção de atrair o olhar da mídia e conseguir o status de “realidade”. Que valor teria um acontecimento de não fosse transmitido pela mídia? A informação na velocidade da luz faz coincidir o mapa com o território, a mensagem com o seu veículo.

Este contágio entre signo e objeto, mapa e território fica evidente em fatos dramáticos como o atentado terrorista ao World Trade Center em 2001. “Em cada affaire, a mídia co-produziu o acontecimento; é a razão pela qual a verdadeira arte do terrorismo moderno é atrair o olhar da mídia e retê-la como refém o mais longo tempo possível”[4] Podemos considerar o atentado de 2001 um fato real tal qual definíamos a realidade na cultura tipográfica ou no discurso constatativo das mídias simbólicas escritas e impressas? Nesta cultura simbólica constatativa, a mídia apenas é testemunha ocular de um fato que, de qualquer maneira, é exterior a ela. Agora, nas redes das informações na velocidade do elétron, essa noção de realidade desaparece. 

O predomínio da função fática
nas mídias digitais
Os terroristas planejaram o ataque de tal maneira a prever, metodicamente, o comportamento da mídia (o intervalo estudado entre os dois choques aéreos nas torres, como se prevesse o tempo levado para que os técnicos das redes de TV montassem os links ao vivo). Sem a presença das mídias eletrônicas não haveria atentado. O atentado em si foi uma maneira de seqüestrar os olhares das mídias e dos espectadores que, extasiados, assistem a um espetáculo que, do nosso ponto de vista, em nada tem de “acidente” ou “realidade”: a cadeia formada pela mídia e comunidade de espectadores co-produz o fato. Um evento criado artificialmente para o contágio viral de emoções e choques nas redes eletrônicas e digitais.

O Fático e a comunicação vazia


Outro aspecto da desreferencialização é a progressiva confusão entre o conteúdo e a relação, ou seja, a fusão entre o enunciado e a enunciação experimentado pelos usuários das tecnologias simbólicas digitais. O aspecto fático da comunicação passa a ser mais importante que o referencial, a manutenção do vínculo é mais importante do que o conteúdo na comunicação

Vimos que as mídias simbólicas eletrônicas e digitais abandonam o discurso constatativo (centrado no referencial) para focar, em primeiro lugar, na função expressiva ao colar novamente o enunciado à enunciação e retornar o discurso performático na comunicação oral. Ao mesmo tempo, a função fática também se sobrepõe à referencialidade do discurso.

A função fática da linguagem é uma função puramente de contato, de teste técnico do canal para verificação. É a função mais pobre da linguagem pois nada é comunicado, apenas é testada a integridade do canal. Por exemplo, ao atender ao telefone falamos “alô”. Simples teste de canal para verificar de está desobstruído e o interlocutor consegue ouvir a resposta.

É uma função relacional. Perguntas que quebram a linearidade da comunicação como "não é mesmo?", "você está entendendo?", "cê tá ligado?", "ouviram?". Por isso a comunicação oral, mais do que transmitir um conteúdo referencial, é a busca da manutenção do vínculo. É o esforço em prolongar a comunicação ou o contato, tornando muitas vezes a comunicação vazia, meros balbucios ou diálogos vazios. As mídias digitais simbólicas retornam esta característica oral através de salas de bate-papos, ICQ, Messenger e demais formas de diálogos on line ou em tempo real dentro de comunidades ou grupos.

O que chama a atenção na maioria destas comunidades de interesse efêmeras é o quase absoluto vazio dos diálogos. Os internautas parecem apenas querer saber se há alguém conectado, se há alguém do outro lado. A partir daí os diálogos ficam reticentes, como se quisessem prolongar um papo onde não há o que dizer. Baudrillard nos fala de um “êxtase da comunicação”: as novas tecnologias são fascinantes por si mesmas, independente do potencial de comunicação. Estar plugado, conectado é uma condição sine qua non para existir. Fazer parte de um grupo, apenas para estar nele, fazer parte de algo maior (a Internet, o Globo, o Planeta) como forma de combater sensações de melancolia, solidão ou angústia, notáveis no período da adolescência.

Se não, vejamos o fenômeno de adolescentes viciados por Internet ou celulares. O fato de a conexão cair e ficar off line por algumas horas ou dias leva a uma verdadeira síndrome de abstinência. Uma interessante experiência proposta pelo suplemento Folha Teen do jornal Folha de São Paulo onde três jovens foram colocados à prova: ficaram três dias sem conexão com Internet ou celulares. Como concluiu a reportagem: “O sentimento comum que esses adolescentes apresentaram como conseqüência de largar o celular e o computador foi a solidão. ‘Eu nem fico conversando com as pessoas o dia inteiro pelo MSN, mas fico tranqüila porque sei que elas estão lá e eu posso falar com elas quando quiser. Sem isso, me senti sozinha’, disse Andréa”[5]. É a presença da função fática: estar “plugado”, on line, é um fim em si mesmo, condição de existência, de ser. Nada a ser comunicado, a não ser a própria relação.

Isso talvez explique a profusão de sites na Internet baseados em imagens capturadas por Web Cams. O jovem que coloca uma web cam no seu quarto para manter a sua rotina on line (mostrar ao mundo almoçando, namorando, vendo TV) é como fosse uma forma de dar um significado fático à sua rotina que, sem isso, não teria o menor sentido, fazendo o jovem cair na sensação de angústia e vazio.

O potencial de transmissão de conteúdos das mídias simbólicas digitais e eletrônicas parece que superou a capacidade de os usuários produzirem seus próprios conteúdos. Sem mais o que dizer ou transmitir, resta ritualizar a própria relação no infinito teste fático.
E, por fim, temos o fenômeno da destemporalização com a emergência de uma nova configuração temporal: a vivência fragmentária do tempo, o tempo pontual.

Vimos acima que as mídias simbólicas escritas e impressas inauguram o regime de tempo linear. O livro é o paradigma temporal: começo, meio e fim, passado, presente e futuro, a sucessão de página como o desenrolar linear do tempo. Tal concepção temporal nos dá a concepção de “obra” como um conjunto ou uma narrativa orgânica de signos onde, em um processo de semiose, desenvolve-se uma cadeia de significantes. Os capítulos de um livro não são departamentos estanques, assim como os movimentos em uma suíte de música clássica ou os capítulos de uma novela: todos nos conduzem a um todo conclusivo. Como uma cadeia de significantes que forma um todo orgânico, forma-se uma obra regida por um conceito total.

As mídias digitais quebram este paradigma com a inovação do hipertexto. O hipertexto põe em xeque: seqüências fixadas, começo e fim definidos, uma estória de certa magnitude definida e a concepção de unidade e todo associada a todos esses conceitos. Na narrativa hipertextual, o autor oferece múltiplas possibilidades através das quais os próprios leitores constroem sucessões temporais e escolhem personagens, realizando saltos através de hiperlinks, com base em informações referenciais.  A noção de tempo passa a ser vivida de forma fragmentária, pontual. Através dos hiperlinks é como se navegássemos num gigantesco texto sem fim, acelerando a velocidade de leitura, pegando atalhos multidimensionais por vários textos, topograficamente concebidos como um sobrepondo-se ao outro.

Do leitor que pacientemente busca uma conclusão final, temos agora o leitor ansioso e impaciente que salta de um hiperlink para outro, vivenciando pontualmente as informações. Podemos considerar que as mídias eletrônicas anteciparam este fenômeno da crise das narrativas com o “efeito zapping” produzido pelo controle remoto da TV. O telespectador ansioso que salta de um canal para outro não está mais à procura do programa ideal para se divertir. A diversão é a própria troca de canais, vivenciar fragmentariamente os picos de emoção das programações de todos os canais.

A conseqüência cultural desse movimento e a crise geral da noção de obra e narrativa. A passagem do vinil para o CD e, mais tarde, para o MP3 ilustra bem isso. A compressão das informações digitais representada pelo MP3 significou a própria compressão do tempo, reduzindo a experiência musical a vivências fragmentadas.

Tanto o disco de vinil quanto o CD estão ainda dentro do paradigma tipográfico de obra. Um álbum não é apenas uma reunião aleatória de músicas (mesmo as coletâneas pop ainda respeitam a ordem cronológica das criações musicais do artista). É uma obra cujo conceito está representado na capa do álbum. As seqüências de títulos musicais seriam como que uma narrativa que desenvolve o tema proposto pela capa da obra.

Com a compressão das informações digitais trazidas pelo MP3 criam-se condições para a ruptura do antigo paradigma: a recepção musical passa a ser pontual, fragmentária. Um CD virgem ou um Ipod comporta centenas de músicas, muitas vezes da discografia inteira de uma banda. As músicas começam a ser estocadas como dados aleatórios e sem ordem cronológica ou conceitual, sem começo, meio ou fim, ou seja, sem narrativa. Sem o processo de semiose presente no paradigma da obra, os signos fecham em si mesmos. Temos verdadeiros fragmentos indiciais.

Estoques quase infinitos de músicas disponíveis em programas de trocas de arquivos MP3 como o Kazaa, por exemplo, incrementam o quadro geral da crise da noção artística de obra.

A própria produção e criação musicais passam a ser influenciadas decisivamente. As novas bandas vêm abandonando cada vez mais a noção de álbum para lançar músicas isoladas na Internet, disponíveis para download.

 NOTAS


[1] BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Comunicação e da Informação, p. 160.
[2] Veja o capítulo “Teoria Geral do Valor Agregado” In: FERREIRA, Wilson Roberto Vieira, O Caos Semiótico, São Paulo, Terra Editora, 1997.
[3] BOORSTIN, Daniel, The Image: a guide to pseudo-events in America, Vintage Books USA, 1992.
[4] BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Comunicação e da Informação”, p. 161.
[5] LEMOS, Lima, “3 dias fora do ar”, In: Folha Teen, Folha de São Paulo, 23/05/2005.

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