Imagine uma pessoa chegando a um restaurante. Ela pede o cardápio e começa a comer os signos dos pratos (as fotos) ao invés dos referentes (as comidas que são representadas no cardápio). Pois algo parecido ocorre nas mídias eletrônicas e digitais: passamos a tomar ícones, imagens e a própria tela como fosse o próprio real e não mais uma representação, como tínhams consciência nas mídas anteriores. O resultado é que nas novas tecnologias paradoxalmente as mídias atuias retornarão a muitas características das formas presenciais e orais de comunicação. As consequências encontraremos em diversos gêneros televisivos e digitais.
Como afirmamos na
postagem anterior (veja links abaixo), a produção imagética eletrônica e
digital, aparentemente icônica, podemos classificá-las como simbólicas. Se o signo
simbólico caracteriza-se pelo corte semiótico, ou seja, a transferência da
coisa para o signo, a autonomia e o desligamento do mundo significante,
encontramos esta característica nas mídias das novas tecnologias. A relação
contígua com objeto presente tanto na fotografia como no cinema desaparece nas
tecnologias eletrônicas e digitais. O objeto é trans-codificado ou transcrito
para a cadeia algorítmica dos significantes digitais.
Aqui não encontramos nem
a contigüidade e nem a similaridade icônica. Cores, tonalidades, luzes e
sombras são convertidas para CDs e discos rígidos em seqüências de dígitos ou
algoritmos. Temos a relação semiótica arbitrária dos símbolos com os traços
sensíveis do objeto. Abertos estes arquivos numa tela de computador, temos a simulação de uma imagem a partir de uma
matriz numérica.
Mesmo na TV temos
a simulação através do bombardeio de raios catódicos nos pixels do tubo de imagem, originados a partir do sinal hertziano
proveniente do rastreio eletrônico de uma imagem contiguamente criada na câmera
dentro do estúdio. Tanto nas mídias eletrônicas como digitais temos a recriação
ou transcrição do objeto, seja em pixels
ou em algoritmos.
Esta categoria de simulação
é central para compreendermos a natureza crítica das novas tecnologias de
comunicação.
Para a Semiótica
o signo define-se pelo conceito de representação. Vimos que estes vínculos
semióticos de representação podem ser por contigüidade (índices), similaridade
(ícones) e arbitrariedade (símbolos). No campo dos signos simbólicos, a escrita
e o impresso representam os objetos por letras, números, sinais etc. Porém, os
signos simbólicos derivados da mídia eletrônica e digital possuem uma
especificidade que os tornam especiais: a simulação. Eles não se contentam em
representar, mas simulam a presença do
objeto.
Esta sutil
característica trará a crise da representação e a regressão do símbolo ao
índice. Paradoxalmente, pela razão de os símbolos eletrônicos e digitais
simularem a presença do objeto, passarão a ter as características das mídias
orais.
O "gap" entre a mídia e o real
As técnicas de transmissão ao vivo parecem fusionar todas as antigas etapas de captação e transmissão de informações |
O signo sempre
representa algo distante no tempo e no espaço: a foto de alguém que já morreu,
o livro ou o jornal impressos que relatam fatos já ocorridos, a palavra
abstrata /cão/ distante dos cães concretos. O signo não é a própria coisa
representada, assim como o mapa não é o próprio território.
Entre o signo e o
objeto há sempre um “delay”, um
atraso, uma “différance”. O que as mídias
eletrônicas e digitais prometem é a negação desse postulado da semiótica com a
ideologia do “ao vivo”, do “on line”
e do “tempo real”: o mapa torna-se o próprio território.
Vamos considerar
o livro. Na sua produção, todos os elos da cadeia representativa desenrolam-se
no tempo. Da coleta das informações pelo autor, passando pela redação, edição,
difusão, culminando com a recepção dos leitores transcorre um intervalo
temporal, um atraso do signo final em relação aos fatos que deram início à
coleta dos dados.
Vejamos a
fotografia. Embora a fixação fotográfica faça coincidir o acontecimento com a
sua coleta, no entanto a imagem deve ser revelada, impressa e difundida,
levando tempo para chegar até nós. Este atraso não é apenas “técnico”
(“problema” que teria sido superado com as novas tecnologias de difusão
instantânea). Esta cadeia representativa temporal determina as próprias
condições de recepção da mídia simbólica: tempo para assimilação, reflexão
crítica, recepção individual, discurso constatativo etc.
Nas mídias
simbólicas eletrônicas e digitais esta “différance”
é destruída (pelo menos da consciência do receptor):
“As técnicas modernas de transmissão ao vivo permitem fusionar todas essas etapas. Quando Neil Armstrong dá o primeiro passo na Lua, milhões de telespectadores no mundo inteiro, no mesmo segundo, retêm sua respiração. E para a final de uma copa de mundo de futebol, é mais de um bilhão de homens que vivem o acontecimento em tempo real. A ‘comunicação’ substituiu a re-presentação pela co-presença, a ‘différance’ simbólica pelo envolvimento da massificação indicial, a interpretação pela vivência afetiva, a significação pela sensação”[1]
Novamente o
enunciado volta a colar-se com a enunciação, o emissor funde-se com o discurso,
características da mídia indicial. A presença é simulada, tal como na
comunicação oral é como se o receptor fizesse parte de uma platéia que assiste
ao evento aqui e agora, presencial. No plano do discurso temos o
enfraquecimento da natureza representativa do signo: e o surgimento do hiposigno. Como ocorre a simulação de
uma presença, a significação é substituída pela sensação: não há espaço para
reflexão ou memória, o fato é absorvido como choque, sensacionalismo, perda de
capacidade crítica. A informação passa a ser essencialmente efêmera,
proveniente de fluxos em tempo real.
Um exemplo: televisão e credibilidade
O critério de "verdade" substituído pelo de "credibilidade" |
Um bom exemplo
disso é a substituição do critério de verdade pelo da credibilidade no
jornalismo televisivo. A “presença” do apresentador do telejornal confere à
notícia credibilidade: não nos preocupamos em saber se a informação é
verdadeira ou falsa, mas as características indiciais do emissor (expressões
fisionômicas, gestual, biografia) conferem credibilidade. Temos aqui a
massificação indicial das mídias orais, paradoxalmente num meio eletrônico. A
recepção da informação não é crítica ou reflexiva. Embora isolado, o receptor
sente como se estivesse dentro de uma massa indicial de receptores, na presença
do emissor. Como vimos na mídia oral, o calor da presença inibe uma recepção
crítica.
A ideologia do
“ao vivo” e do “tempo real” funde mas não destrói a cadeia de representações
que vai da coleta à difusão e recepção. Todas as etapas da representação
continuam lá, porém, escamoteadas pela simulação tecnológica da presença. O
diretor de imagem seleciona os takes
que serão transmitidos, a câmera recorta ideologicamente o que o operador quer
mostrar da realidade. A natureza sígnica do fato ainda subsiste, mas é
escondida da consciência do receptor.
Desreferencializações
A crise da representação criada pelas
mídias simbólicas digitais produz uma verdadeira desreferencialização ao confundir o signo com a própria realidade,
o mapa com o próprio território.
Assim como chegássemos a um
restaurante e comêssemos os signos das refeições (o cardápio) ao invés das
próprias refeições (o objeto representado pelo signo), da mesma forma
tomássemos a o signo da realidade (a imagem da TV) como a própria realidade.
Como efeito da simultaneidade ou presença, esquecemos o caráter de
representação. Esta simulação da presença torpedeia o espírito crítico pelo
calor e urgência do fluxo de imagens “ao vivo”.
Participamos emotivamente de
uma comunidade indicial de sensações, afetos, paixões. Afinal, tudo parece
estar acontecendo na minha frente. É como se a tela da TV fosse uma janela aberta
para o mundo.
Embora o percurso que passa pelo
acontecimento, coleta, o relato e recepção tenha sido comprimido pela
velocidade da tecnologia eletrônica e digital, ele permanece. O calor emocional
dos signos indiciais do “ao vivo” faz esquecermos disso, atrofiando o pensamento crítico. Começamos a
perceber uma inversão: o efeito da realidade passa a substituir a própria
realidade, o signo substitui o próprio objeto. Ou seja, a mídia faz existir
aquilo que diz.
Um setor inteiro das informações começa a derivar do discurso
constativo para o performático onde a mídia passa a ser co-produtora dos
acontecimentos. Em outro trabalho nos referimos a este fenômeno como produção
de “pseudoeventos”[2],
termo criado pelo historiador norte-americano Daniel Boorstin[3]
referindo-se a fatos que diretamente ou indiretamente a mídia co-produziu. Um
fato só existe quando a imprensa fala nele. Portanto, cada vez mais fatos são
criados com a intenção de atrair o olhar da mídia e conseguir o status de
“realidade”. Que valor teria um acontecimento de não fosse transmitido pela
mídia? A informação na velocidade da luz faz coincidir o mapa com o território,
a mensagem com o seu veículo.
Este
contágio entre signo e objeto, mapa e território fica evidente em fatos
dramáticos como o atentado terrorista ao World Trade Center em 2001. “Em cada affaire,
a mídia co-produziu o acontecimento; é a razão pela qual a verdadeira arte do
terrorismo moderno é atrair o olhar da mídia e retê-la como refém o mais longo
tempo possível”[4]
Podemos considerar o atentado de 2001 um fato real tal qual definíamos a
realidade na cultura tipográfica ou no discurso constatativo das mídias
simbólicas escritas e impressas? Nesta cultura simbólica constatativa, a mídia
apenas é testemunha ocular de um fato que, de qualquer maneira, é exterior a
ela. Agora, nas redes das informações na velocidade do elétron, essa noção de
realidade desaparece.
O predomínio da função fática nas mídias digitais |
O Fático e a comunicação vazia
Outro aspecto da
desreferencialização é a progressiva confusão entre o conteúdo e a relação, ou
seja, a fusão entre o enunciado e a enunciação experimentado pelos usuários das
tecnologias simbólicas digitais. O aspecto fático da comunicação passa a ser
mais importante que o referencial, a manutenção do vínculo é mais importante do
que o conteúdo na comunicação
Vimos que as
mídias simbólicas eletrônicas e digitais abandonam o discurso constatativo
(centrado no referencial) para focar, em primeiro lugar, na função expressiva
ao colar novamente o enunciado à enunciação e retornar o discurso performático
na comunicação oral. Ao mesmo tempo, a função fática também se sobrepõe à
referencialidade do discurso.
A função fática
da linguagem é uma função puramente de contato, de teste técnico do canal para
verificação. É a função mais pobre da linguagem pois nada é comunicado, apenas
é testada a integridade do canal. Por exemplo, ao atender ao telefone falamos
“alô”. Simples teste de canal para verificar de está desobstruído e o
interlocutor consegue ouvir a resposta.
É uma função
relacional. Perguntas que quebram a linearidade da comunicação como "não é mesmo?", "você está
entendendo?", "cê tá ligado?", "ouviram?". Por isso a
comunicação oral, mais do que transmitir um conteúdo referencial, é a busca da
manutenção do vínculo. É o esforço em prolongar a comunicação ou o contato, tornando
muitas vezes a comunicação vazia, meros balbucios ou diálogos vazios. As mídias
digitais simbólicas retornam esta característica oral através de salas de
bate-papos, ICQ, Messenger e demais formas de diálogos on line ou em tempo real
dentro de comunidades ou grupos.
O que chama a atenção na maioria destas comunidades de
interesse efêmeras é o quase absoluto vazio dos diálogos. Os internautas
parecem apenas querer saber se há alguém conectado, se há alguém do outro lado.
A partir daí os diálogos ficam reticentes, como se quisessem prolongar um papo
onde não há o que dizer. Baudrillard nos fala de um “êxtase da comunicação”: as
novas tecnologias são fascinantes por si mesmas, independente do potencial de
comunicação. Estar plugado, conectado é uma condição sine qua non para existir. Fazer parte de um grupo, apenas para
estar nele, fazer parte de algo maior (a Internet, o Globo, o Planeta) como
forma de combater sensações de melancolia, solidão ou angústia, notáveis no
período da adolescência.
Se não, vejamos o fenômeno de adolescentes viciados
por Internet ou celulares. O fato de a conexão cair e ficar off line por algumas horas ou dias leva
a uma verdadeira síndrome de abstinência. Uma interessante experiência proposta
pelo suplemento Folha Teen do jornal Folha de São Paulo onde três jovens
foram colocados à prova: ficaram três dias sem conexão com Internet ou
celulares. Como concluiu a reportagem: “O sentimento comum que esses adolescentes apresentaram como
conseqüência de largar o celular e o computador foi a solidão. ‘Eu nem fico
conversando com as pessoas o dia inteiro pelo MSN, mas fico tranqüila porque
sei que elas estão lá e eu posso falar com elas quando quiser. Sem isso, me
senti sozinha’, disse Andréa”[5].
É a presença da função fática: estar “plugado”, on line, é um fim em si mesmo, condição de existência, de ser. Nada
a ser comunicado, a não ser a própria relação.
Isso talvez
explique a profusão de sites na Internet baseados em imagens capturadas por Web Cams. O jovem que coloca uma web cam no seu quarto para manter a sua
rotina on line (mostrar ao mundo
almoçando, namorando, vendo TV) é como fosse uma forma de dar um significado
fático à sua rotina que, sem isso, não teria o menor sentido, fazendo o jovem
cair na sensação de angústia e vazio.
O potencial de
transmissão de conteúdos das mídias simbólicas digitais e eletrônicas parece
que superou a capacidade de os usuários produzirem seus próprios conteúdos. Sem
mais o que dizer ou transmitir, resta ritualizar a própria relação no infinito
teste fático.
E, por fim,
temos o fenômeno da destemporalização com a emergência de uma nova
configuração temporal: a vivência fragmentária do tempo, o tempo pontual.
Vimos acima
que as mídias simbólicas escritas e impressas inauguram o regime de tempo
linear. O livro é o paradigma temporal: começo, meio e fim, passado, presente e
futuro, a sucessão de página como o desenrolar linear do tempo. Tal concepção
temporal nos dá a concepção de “obra” como um conjunto ou uma narrativa
orgânica de signos onde, em um processo de semiose, desenvolve-se uma cadeia de
significantes. Os capítulos de um livro não são departamentos estanques, assim
como os movimentos em uma suíte de música clássica ou os capítulos de uma
novela: todos nos conduzem a um todo conclusivo. Como uma cadeia de
significantes que forma um todo orgânico, forma-se uma obra regida por um
conceito total.
As mídias digitais quebram este paradigma com a inovação do hipertexto.
O hipertexto põe em xeque: seqüências
fixadas, começo e fim definidos, uma estória de certa magnitude definida e a
concepção de unidade e todo associada a todos esses conceitos. Na narrativa
hipertextual, o autor oferece múltiplas possibilidades através das quais os
próprios leitores constroem sucessões temporais e escolhem personagens,
realizando saltos através de hiperlinks,
com base em informações referenciais. A noção de tempo passa a ser vivida de forma
fragmentária, pontual. Através dos hiperlinks é como se navegássemos num
gigantesco texto sem fim, acelerando a velocidade de leitura, pegando atalhos
multidimensionais por vários textos, topograficamente concebidos como um
sobrepondo-se ao outro.
Do leitor
que pacientemente busca uma conclusão final, temos agora o leitor ansioso e
impaciente que salta de um hiperlink para outro, vivenciando pontualmente as
informações. Podemos considerar que as mídias eletrônicas anteciparam este
fenômeno da crise das narrativas com o “efeito zapping” produzido pelo
controle remoto da TV. O telespectador ansioso que salta de um canal para outro
não está mais à procura do programa ideal para se divertir. A diversão é a
própria troca de canais, vivenciar fragmentariamente os picos de emoção das
programações de todos os canais.
A
conseqüência cultural desse movimento e a crise geral da noção de obra e
narrativa. A passagem do vinil para o CD e, mais tarde, para o MP3 ilustra bem
isso. A compressão das informações digitais representada pelo MP3 significou a
própria compressão do tempo, reduzindo a experiência musical a vivências
fragmentadas.
Tanto o disco
de vinil quanto o CD estão ainda dentro do paradigma tipográfico de obra. Um
álbum não é apenas uma reunião aleatória de músicas (mesmo as coletâneas pop
ainda respeitam a ordem cronológica das criações musicais do artista). É uma
obra cujo conceito está representado na capa do álbum. As seqüências de títulos
musicais seriam como que uma narrativa que desenvolve o tema proposto pela capa
da obra.
Com a compressão das informações
digitais trazidas pelo MP3 criam-se condições para a ruptura do antigo paradigma:
a recepção musical passa a ser pontual, fragmentária. Um CD virgem ou um Ipod comporta centenas de músicas,
muitas vezes da discografia inteira de uma banda. As músicas começam a ser
estocadas como dados aleatórios e sem ordem cronológica ou conceitual, sem
começo, meio ou fim, ou seja, sem narrativa. Sem o processo de semiose presente
no paradigma da obra, os signos fecham em si mesmos. Temos verdadeiros
fragmentos indiciais.
Estoques quase infinitos de músicas
disponíveis em programas de trocas de arquivos MP3 como o Kazaa, por exemplo, incrementam o quadro geral da crise da noção
artística de obra.
A própria produção e criação musicais
passam a ser influenciadas decisivamente. As novas bandas vêm abandonando cada
vez mais a noção de álbum para lançar músicas isoladas na Internet, disponíveis
para download.
[1]
BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Comunicação e da Informação, p.
160.
[2]
Veja o capítulo “Teoria Geral do Valor Agregado” In: FERREIRA, Wilson Roberto
Vieira, O Caos Semiótico, São Paulo, Terra Editora, 1997.
[3] BOORSTIN, Daniel, The Image: a guide
to pseudo-events in America ,
Vintage Books USA, 1992.
[4]
BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Comunicação e da Informação”, p.
161.
[5]
LEMOS, Lima, “3 dias fora do ar”, In: Folha
Teen, Folha de São Paulo, 23/05/2005.
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