terça-feira, agosto 12, 2025

Amor, trabalho e conhecimento deveriam governar a vida em 'Nossos Tempos'

 

“Amor, trabalho e conhecimento são as fontes de nossa vida. Deveriam também governá-la”, escreveu certa vez o psicanalista e ativista Wilhelm Reich. Há um descompasso entre o psiquismo (resistente a mudanças) e o conhecimento (cheio de rupturas e saltos). O que torna a sociedade frágil diante da cooptação política das chamadas “guerras culturais” reacionárias de extrema direita. A ficção científica mexicana Netflix “Nossos Tempos” (Nuestros Tiempos, 2025) é uma comédia romântica que transcende os limites do gênero, que habilmente mescla física teórica, viagem no tempo, sexismo, desigualdade de gêneros e as incertezas em relação ao futuro. Um casal de físicos apaixonados, na década de 1960, constrói uma máquina do tempo e acidentalmente saltam 59 anos no futuro. Pulando, de uma sociedade mexicana conservadora, patriarcal, marcada pela submissão feminina, para o futuro do empoderamento feminino e da crítica da desigualdade dos gêneros. Involuntariamente, o filme aborda essa questão reichiana.

 

Wilhelm Reich foi um proeminente e controverso médico, psicanalista e cientista social austríaco, cujas teorias buscaram unir as compreensões de Sigmund Freud sobre a psique humana com a análise social e econômica de Karl Marx.

Coerente com sua abordagem freud-marxista da sociedade, Reich criou em 1931 as  Sex-Pol, abreviação de "Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária" (em alemão, Deutscher Reichsverband für proletarische Sexualpolitik). Uma tentativa mais ousada de unir a psicanálise freudiana com a teoria política marxista, transformando a análise teórica em ação política direta.

O objetivo central das Sex-Pol era promover uma "revolução sexual" como parte indispensável da revolução comunista. Para Reich, a luta de classes e a libertação econômica do proletariado eram inseparáveis da libertação de sua energia sexual, que era reprimida pela moralidade burguesa, pela Igreja e pela estrutura familiar autoritária.

Para Reich, também membro ativo dos partidos Comunista e Social-Democrata na Áustria e na Alemanha, a transformação radical da sociedade seria impossível sem a solução de uma contradição: os comunistas eram politicamente avançados, mas moralmente conservadores.

Ele via no movimento comunista a força política mais avançada de seu tempo, a única capaz de promover uma transformação radical da sociedade e superar a exploração capitalista. No entanto, sua vivência e análise o levaram a apontar uma contradição fundamental dentro do movimento: enquanto eram politicamente revolucionários em sua teoria econômica e social, os comunistas eram, em sua maioria, moralmente conservadores, especialmente no que diz respeito à sexualidade, à estrutura familiar e a desigualdade de gênero.

Reich foi hostilizado e expulso do Partido Comunista – para os comunistas, a psicanálise era nada mais do que uma excrescência burguesa, o sintoma da sua decadência. E Reich, um inocente útil para a burguesia.



O que aprendemos com Reich é que na História há uma disparidade entre os avanços do conhecimento científico e a praticamente imobilidade dos valores morais, costumes e o imaginário que os justifica. Entre o conhecimento racional que aspira ao vanguardismo e lentas mudanças do psiquismo coletivo.

Um filme que explora (talvez involuntariamente) essa contradição que minou todo o projeto reichiano de transformação social é a ficção científica mexicana Nossos Tempos (Nuestros Tiempos, 2025 – disponível na plataforma de streaming Netflix), dirigido por Chava Cartas. Uma comédia romântica que transcende os limites do gênero, que habilmente mescla física teórica, viagem no tempo, sexismo, desigualdade de gêneros e as incertezas em relação ao futuro.

Como uma comédia romântica que se mescla com viagens no tempo, Nossos Tempos parece querer demonstrar que somos meros produtos do nosso tempo. E até mesmo a maneira como amamos é moldada pelas circunstâncias de tempo e lugar.

Um casal de físicos apaixonados, na década de 1960, constrói uma máquina do tempo a partir das equações relativísticas de Einstein e com uma pequena ajuda da tecnologia secreta soviética em plena Guerra Fria. Inadvertidamente saltam 59 anos no futuro. Pulando, de uma sociedade mexicana conservadora, patriarcal, marcada pela submissão feminina, para o futuro do empoderamento feminino e da crítica da desigualdade dos gêneros.

Eles estão em 2025, presos no futuro e com uma máquina do tempo quebrada que necessitaria, para voltar a funcionar, de uma tecnologia que se tornou vintage e de um país que nem existe mais – a União Soviética.

Embora estejam no mesmo país e na mesma universidade, tudo está muito diferente. E melhor para as mulheres: a universidade agora conta com uma reitora. Há o Dia Internacional da Mulher com uma Conferência de Física apenas para mulheres pesquisadoras.



O amor entre os dois era apaixonado e sincero em 1966. Mas parece que não está resistindo ao empoderamento feminino na Academia e na Ciência no século XXI – enquanto ela está cada vez mais fascinada com o futuro, ele acaba caindo sob a influência de uma extrema direita masculina ressentida com o feminismo.

Eles são produtos de um outro tempo no qual, apesar do avanço tecnológico de vanguarda, era de uma sociedade moralmente conservadora e reacionária. Enquanto no futuro, encontramos um outro tipo de contradição: uma revolução moral e comportamental, enquanto o avanço científico entrega para a sociedade gadgets tecnológicos que incentivam o solipsismo e a alienação.

O futuro (o nosso presente) parece radicalizar ainda mais aquela contradição percebida por Reich: a Razão e o Conhecimento parecem nunca conseguir comandar a vida humana.

O Filme

A história gira em torno de um casal de físicos apaixonados – Nora (Lucero) e Héctor (Benny Ibarra). Em 1966, ambos trabalham no Departamento de Física da UNAM (Universidade Autônoma do México), na Cidade do México.

Seu principal projeto é uma máquina de viagem no tempo. Porém em segredo. A Universidade está investindo muito dinheiro num projeto que poderá render repercussão internacional: a revisão da relatividade de Einstein. Só que Nora e Héctor escondem nos porões do Departamento a aplicação prática da pesquisa teórica: a máquina da viagem no tempo.



Embora ambos sejam professores na Universidade, a esposa tem permissão para fazer isso mais como um favor do que qualquer outra coisa, e tem dificuldade em fazer com que seus superiores a ouçam — eles preferem abertamente lidar com o marido. Quando o chefe vem jantar, é ela quem prepara uma refeição caseira e atende a porta enquanto o marido relaxa com um cigarro e um jornal.

Muito embora Nora seja a principal responsável pelos avanços da pesquisa, com seus insights e soluções imprevisíveis para colocar a máquina do tempo em funcionamento. Que depende da produção de “táquions” (partículas hipotéticas que, em teoria, se movem mais rápido que a luz) pela propulsão da máquina. Mas tudo depende de o Departamento conseguir importar uma pequena válvula eletrônica produzida unicamente na União Soviética.

Apesar da desigualdade de gêneros, mesmo num ambiente acadêmico que lida com ciência de vanguarda, Nora releva tudo. Afinal, o seu amor por Héctor, romântico e cavalheiro, é muito maior.

Como o leitor pode provavelmente imaginar, eles conseguem fazer sua máquina do tempo funcionar uma noite e são lançados, acidentalmente, quase 59 anos no futuro.

 A primeira parada fora da máquina do tempo é em uma loja de conveniência. Eles presumem que a caixa da loja seja surda porque está usando fones de ouvido e não ouve aos seus chamados. Ao mesmo tempo, a caixa presume que o olhar fixo deles significa que estão tentando escolher preservativos com sabor em uma vitrine atrás dela. "Como eu poderia pedir preservativos com duas mulheres presentes?", responde o marido.

Mas o fascínio deles pelo smartphone moderno e como ele funciona também é muito maior. Descobrem que a Cidade do México agora conta com uma rede de metrô. E que todos os passageiros parecem hipnotizados, olhando fixamente para suas pequenas caixinhas que carregam nas mãos. Simplesmente, não conseguem entender tal comportamento.



Para a sorte deles, a líder da atual UNAM é uma ex-aluna que já foi fã de Nora (a única mulher professora no Departamento de Física) no passado, e ela os ajuda a se estabelecer e continuar seu trabalho na máquina do tempo.

Logo as portas da Universidade de 2025 se abrem para Nora, num mundo de empoderamento feminino. Mas não para Héctor que, para sua surpresa, vê os papéis se invertendo: é ele que passa a ser considerado o assistente de Nora.

Mais tarde, quando a esposa é indicada para proferir uma palestra especial em um evento do Dia Internacional da Mulher, a perda de status se mostra demais para o marido. Em um dos momentos mais constrangedores, ele aparece no evento, sobe ao pódio quando o nome dela é chamado. Ele recita um discurso extremamente constrangedor que teria provocado acenos calorosos e sorrisos em "sua época". Em 2025, porém, ele parece não notar os olhares e as mudanças desconfortáveis da plateia.

Logo após essa experiência, ele decide que quer retornar a 1966. Ele quer que sua esposa volte com ele, mas — você adivinhou — ela gosta de poder realmente fazer seu trabalho e ser respeitada por isso.

Mas não sem antes Héctor corresponder ao assédio de professores de extrema direita ressentidos com o crescimento do feminismo. E desgastar ainda mais a vida conjugal.

Nossos Tempos involuntariamente explora as contradições entre o Conhecimento e o psiquismo. Ambos parecem trabalhar em tempo diferentes: enquanto o primeiro é acumulativo com rupturas e saltos, ao contrário, o psiquismo é resistente a mudança, cercando-se de mecanismos de defesa egóicos que tanto Freud analisou.

O casal Nora e Héctor são o simbolismo disso: cientistas de vanguarda, porém resistentes a rupturas de valores e costumes.

“Amor, trabalho e conhecimento são as fontes de nossa vida. Deveriam também governá-la”, escreveu certa vez Wilhelm Reich.

É o desconhecimento desse simples fato que nos torna vulneráveis a manipulações políticas de guerra híbrida, como a criação de cismogêneses em torno da chamada “guerra cultural”. Como brevemente o filme Nossos Tempos sugere, quando o macho ressentido Héctor se torna presa fácil do machismo recalcitrante de extrema direita.


 

 

Ficha Técnica


Título:  Nossos Tempos

Diretor: Chava Cartas

Roteiro: Juan Carlos Garzón, Angélica Gudiño

Elenco: Lucero, Benny Ibarra, Renata Vaca

Produção: Draco Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: México

 

 

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