sexta-feira, agosto 01, 2025

Quando o mito da busca da alma gêmea vira horror corporal em 'Juntos'



Supostamente, no diálogo “O Banquete”, o filósofo Platão teria criado o Mito da Alma Gêmea: fomos separados em gêneros distintos por conta de Zeus temer o poder humano. Então, passamos a vida inteira atrás da contraparte perdida. Uma poética abordagem da questão do gênero, com o seu valor filosófico. Mas que a Geração Z (os nativos digitais) transformou num conto de horror corporal. É o filme “Juntos” (Together, 2025) que reflete a visão do amor dessa geração, não mais uma “busca de completude”, mas uma “jornada” na qual cada um tem que dar ao outro o espaço para a autorrealização. O amor vira uma questão de logística. Que às vezes pode se tornar “tóxica”. E virar uma claustrofóbica história de terror. Um casal, com sérias fissuras no relacionamento, decide se mudar para o interior para um novo recomeço. Mas um incidente sobrenatural altera drasticamente seu relacionamento, suas existências e, principalmente, suas formas físicas.

O filósofo existencialista francês, Jean-Paul Sartre, escrevia que “o inferno são os outros”.  Ele queria se referir à ideia de que o convívio com outras pessoas, com seus julgamentos e expectativas, pode gerar sofrimento e aprisionamento. O inferno como um estado mental e emocional causado pelas relações interpessoais. 

Mas esta observação do existencialista estava lá no já distante século XX. Ainda os “outros” eram “infernais” porque pretendiam julgar e impor uma visão de mundo que poderíamos chamar de “senso comum”, o conhecido “bom senso”. Queriam impor uma conformidade, uma padronização, resultando na claustrofobia autoritária.

Aqui no século XXI o outro continua um inferno e as relações interpessoais podem se tornar claustrofóbicas. Mas por motivos bem diferentes.

Por exemplo, na questão do amor, cuja Geração Z (os chamados nativos digitais) está redefinindo afetos e relacionamentos. Buscam conexões mais autênticas e fluidas, adaptadas à sua realidade e prioridades. Eles valorizam a realização pessoal e profissional, o que muitas vezes leva a relacionamentos menos tradicionais e mais casuais, como "situationships"

O amor passa a ser definido como uma jornada compartilhada, em vez de um "ideal" de completude. 

O medo das relações claustrofóbicas continua. Mas não pelo medo de julgamentos. Mas por uma questão simplesmente logística: não atrapalhar a própria realização.

Dentro desse imaginário do amor para essa geração, é sintomático que um filme como Juntos (Together, 2025) transforme um relacionamento de um casal em um conto de terror corporal. Na filmografia recente, histórias de casais rendem contos assustadores e tóxicos: tudo pode se desenrolar em meio aos rituais de um culto assassino (Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, 2019). Em busca do amor verdadeiro? Então você se torna oficialmente parte do mercado de encontros (Fresh, 2022). Acha que conseguiu algo real com aquele homem dos sonhos depois de apenas algumas semanas? Só não se esqueça de garantir que ele não seja um daqueles caras que buscam casuais sem compromisso (Ah, Oi!, 2025).



Juntos é uma alegoria penetrante de codependência com muitas cenas de terror corporal propositais e um senso de humor perverso em que o cineasta estreante Michael Shanks capta o que torna o amor tão completamente assustador (e, portanto, tão perfeitamente adequado para o terror) em um nível profundo. A principal pergunta na mente deste filme é mais ou menos assim: e se você estiver firmemente estabelecido no relacionamento que sempre quis, mas de alguma forma estiver se distanciando e se sentindo sozinho?

A resposta talvez fosse: procurar uma forma de conciliação, de voltar a acender a chama da paixão ou procurar conhecer melhor o parceiro. Mas em Juntos essa resposta resulta numa história aterrorizante em que a sensação claustrofóbica se tornará literal, corporal?

O argumento de Juntos parte do mito da alma gêmea que, de certa forma, foi criada por Platão no livro, "O Banquete", com o conceito do “homem de quatro braços”.  Neste mito, os seres humanos originais eram criaturas com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, representando uma forma completa e poderosa. Zeus, temendo seu poder, dividiu-os, dando origem à busca pela outra metade, ou alma gêmea, para restaurar a totalidade. 

Nesse diálogo de Platão, Aristófanes conta um mito sobre a origem do amor e da busca por almas gêmeas. Ele descreve seres humanos primitivos como criaturas completas, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, que tinham grande força e poder.

Zeus, temendo o poder desses seres, decidiu dividi-los ao meio, criando os humanos como os conhecemos hoje. Essa divisão deixou os humanos incompletos, levando-os a buscar sua outra metade, sua alma gêmea, na tentativa de restaurar a plenitude original.

O mito explica a busca pelo amor como uma busca pela outra metade que nos completa, pela alma gêmea com quem sentimos uma profunda afinidade.

O curioso é vem em Juntos, é como esse mito da busca da alma gêmea se transforma um filme de terror corporal macabro que parece uma metáfora óbvia para codependência.

Todos nós conhecemos casais como Tim e Millie, o casal central do filme. Nunca um "eu", sempre um "nós". Nunca uma resposta imediata, sempre um "Eu provavelmente deveria falar com ele/ela primeiro". Nunca sozinhos, sempre juntos. Muito bem sintonizado com o espírito do tempo da Geração Z, esse tipo de casal pode facilmente se tornar um conto de terror sufocante.


O Filme

O casal (e produtores) da vida real Dave Franco e Alison Brie trazem uma dose impressionante de autenticidade e tensão vividas para Tim e Millie, um casal que se encontra numa encruzilhada após anos de união.

A menos que descubram como se unir da maneira mais verdadeira possível, correm o risco de se separarem. Começam com uma mudança de endereço. Ela conseguiu um novo emprego difícil de conseguir como professora no interior, e ele é aquele músico de trinta e poucos anos que ainda espera por sua grande chance enquanto sua parceira apoia seus sonhos. Então, eles estão deixando tudo para trás na metrópole (amigos e familiares) por uma vida no interior, mas simples. Na esperança de que eles se encontrem pessoalmente e como casal.

A tensão já está alta entre os dois, como observamos na fasta de despedida com os amigos em que Millie finge pedir Tim em casamento abrindo uma caixinha de aliança imaginária, e ele demora para dizer o “Sim”, como se estivesse relutante.

Eles vão morar numa casa idílica (incrível, com um salário de professora!), mas que começa com uma descoberta assustadora que parece nos querer preparar para o porvir: uma ratazana morta e malcheirosa aninhada num dos lustres do teto.

Para aumentar os maus augúrios, ficamos sabendo de um casal anterior que desapareceu na floresta ao redor da casa.

Embora o filme possa parecer seguir um caminho familiar, indiscutivelmente sexista (uma mulher chata e pegajosa que se controla versus um homem-criança preguiçoso que simplesmente não consegue se controlar), o roteiro logo muda a dinâmica.



Enquanto caminham desbravando a floresta ao redor, a dupla tropeça e caem em uma estrutura escondida e subterrânea: uma espécie de igreja em ruínas de algum tipo de seita new age. Com estranhos sinos dependurados por todos os lados, com a esotérica figura da espiral gravada neles.

O acidente os deixa presos no subsolo frio e úmido durante a noite e a sede força Tim a beber de a água num estranho poço que nos faz lembrar aquela estrutura alienígena do filme Alien. Isso muda algo durante a noite, porque o casal acorda com as pernas ligeiramente grudadas (Tim sugere algum tipo de mofo) e, depois que se soltam e voltam para casa. Depois disso, o comportamento de Tim se torna estranho.

Para começar, Tim experimenta episódios frequentes que parecem convulsões autodestrutivas. Ruim para suas articulações e ossos, mas aparentemente bom para sua vida sexual — basta esperar por um dos encontros mais emocionantes em cabines de banheiro que o cinema nos proporcionou até agora. E não para por aí. Agora há uma atração entre os dois, algo que parte a alma, é pegajoso, pegajoso e destroça membros. De repente, Tim passou a ter uma vontade incontrolável de estar ao lado de Millie, chegando até a esquecer o espaço que queria conquistar para si mesmo, como músico e compositor. Mas o que está acontecendo?

O leitor vai descobrir na hora certa (de um jeito que Shanks planejou cuidadosamente) e prontamente apertar os cintos para as performances físicas mais impressionantes do ano, com muitas referências elegantes ao horror cronenbergiano, bem como ao filme The Thing, de John Carpenter.




De fato, o que Tim e Millie conseguem aqui, dobrando, torcendo, esticando e unindo seus corpos, com a ajuda de alguns efeitos práticos e visuais verdadeiramente impressionantes, é uma visão diabolicamente divertida de se ver.

Dado seu horror corporal que estica a carne e tritura os ossos, haverá comparações inevitáveis com o filme premiado com o Oscar, A Substância. Porém, Juntos utiliza esse tipo de horror de maneira mais inteligente e concisa.

É claro que haverá uma relação entre todo o horror corporal, no qual carne e ossos de Tim e Millie são atraídos para se fundirem, e as ruínas de uma seita new age e aqueles estranhos sinos com desenhos de espirais. Certamente, uma seita que pretendia reviver na literalidade o mito das origens da espécie humana descrita em “O Banquete” de Platão.

A simbologia da espiral – Alerta de Spoilers à frente

No simbolismo oculto a espiral representa a auto evolução, a alma ascendente, da matéria ao mundo espiritual. Além disso, a espiral partilha de uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade. Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através das mudanças.

Mas em Juntos, a espiral assume aparentemente uma natureza punitiva, como uma maldição aterrorizante.

Porém, a última sequência, quando os pais de Millie chegam para uma visita no almoço do domingo, faz o filme terminar de uma forma ambígua – como se o jovem casal tivesse finalmente aceito os pressupostos daquela seita esotérica e, quem atende a porta, é uma versão amalgamada e andrógina de Tim e Millie. Ou seja, a mudança está completa em uma nova versão que resultou da fusão – o símbolo oculto da espiral: a ascensão e permanência.


 

Ficha Técnica


Título:  Together

Diretor: Michael Shanks

Roteiro: Michael Shanks

Elenco: Dave Franco, Alison Brie, Damon Herriman

Produção: 30West, Tango Entertainment

Distribuição: Neon

Ano: 2025

País: EUA

 

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