Supostamente, no diálogo “O Banquete”, o filósofo Platão teria criado o Mito da Alma Gêmea: fomos separados em gêneros distintos por conta de Zeus temer o poder humano. Então, passamos a vida inteira atrás da contraparte perdida. Uma poética abordagem da questão do gênero, com o seu valor filosófico. Mas que a Geração Z (os nativos digitais) transformou num conto de horror corporal. É o filme “Juntos” (Together, 2025) que reflete a visão do amor dessa geração, não mais uma “busca de completude”, mas uma “jornada” na qual cada um tem que dar ao outro o espaço para a autorrealização. O amor vira uma questão de logística. Que às vezes pode se tornar “tóxica”. E virar uma claustrofóbica história de terror. Um casal, com sérias fissuras no relacionamento, decide se mudar para o interior para um novo recomeço. Mas um incidente sobrenatural altera drasticamente seu relacionamento, suas existências e, principalmente, suas formas físicas.
O filósofo existencialista francês, Jean-Paul Sartre, escrevia que
“o inferno são os outros”. Ele queria se referir à ideia de que o
convívio com outras pessoas, com seus julgamentos e expectativas, pode gerar
sofrimento e aprisionamento. O inferno como um estado mental e emocional
causado pelas relações interpessoais.
Mas esta observação do existencialista estava lá no já distante
século XX. Ainda os “outros” eram “infernais” porque pretendiam julgar e impor uma
visão de mundo que poderíamos chamar de “senso comum”, o conhecido “bom senso”.
Queriam impor uma conformidade, uma padronização, resultando na claustrofobia
autoritária.
Aqui no século XXI o outro continua um inferno e as relações
interpessoais podem se tornar claustrofóbicas. Mas por motivos bem diferentes.
Por exemplo, na questão do amor, cuja Geração Z (os chamados
nativos digitais) está redefinindo afetos e relacionamentos. Buscam conexões
mais autênticas e fluidas, adaptadas à sua realidade e prioridades. Eles
valorizam a realização pessoal e profissional, o que muitas vezes leva a
relacionamentos menos tradicionais e mais casuais, como "situationships".
O amor passa a ser definido como uma jornada compartilhada, em vez
de um "ideal" de completude.
O medo das relações claustrofóbicas continua. Mas não pelo medo de
julgamentos. Mas por uma questão simplesmente logística: não atrapalhar a
própria realização.
Dentro desse imaginário do amor para essa geração, é sintomático
que um filme como Juntos (Together, 2025) transforme um
relacionamento de um casal em um conto de terror corporal. Na filmografia
recente, histórias de casais rendem contos assustadores e tóxicos: tudo pode se
desenrolar em meio aos rituais de um culto assassino (Midsommar: O Mal Não
Espera a Noite, 2019). Em busca do amor verdadeiro? Então você se torna
oficialmente parte do mercado de encontros (Fresh, 2022). Acha que
conseguiu algo real com aquele homem dos sonhos depois de apenas algumas
semanas? Só não se esqueça de garantir que ele não seja um daqueles caras que
buscam casuais sem compromisso (Ah, Oi!, 2025).
![]() |
Juntos é uma alegoria penetrante de
codependência com muitas cenas de terror corporal propositais e um senso de
humor perverso em que o cineasta estreante Michael Shanks capta o que torna o
amor tão completamente assustador (e, portanto, tão perfeitamente adequado para
o terror) em um nível profundo. A principal pergunta na mente deste filme é
mais ou menos assim: e se você estiver firmemente estabelecido no
relacionamento que sempre quis, mas de alguma forma estiver se distanciando e
se sentindo sozinho?
A resposta talvez fosse: procurar uma forma de conciliação, de
voltar a acender a chama da paixão ou procurar conhecer melhor o parceiro. Mas
em Juntos essa resposta resulta numa história aterrorizante em que a
sensação claustrofóbica se tornará literal, corporal?
O argumento de Juntos parte do mito da alma gêmea que, de
certa forma, foi criada por Platão no livro, "O Banquete", com o conceito do “homem
de quatro braços”. Neste mito, os seres humanos originais eram
criaturas com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, representando uma
forma completa e poderosa. Zeus, temendo seu poder, dividiu-os, dando
origem à busca pela outra metade, ou alma gêmea, para restaurar a totalidade.
Nesse diálogo de Platão, Aristófanes conta um mito sobre a origem
do amor e da busca por almas gêmeas. Ele descreve seres humanos primitivos
como criaturas completas, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, que
tinham grande força e poder.
Zeus, temendo o poder desses seres, decidiu dividi-los ao meio,
criando os humanos como os conhecemos hoje. Essa divisão deixou os humanos
incompletos, levando-os a buscar sua outra metade, sua alma gêmea, na tentativa
de restaurar a plenitude original.
O mito explica a busca pelo amor como uma busca pela outra metade
que nos completa, pela alma gêmea com quem sentimos uma profunda afinidade.
O curioso é vem em Juntos, é como esse mito da busca da
alma gêmea se transforma um filme de terror corporal macabro que
parece uma metáfora óbvia para codependência.
Todos nós conhecemos casais como Tim e Millie, o casal central do
filme. Nunca um "eu", sempre um "nós". Nunca uma resposta
imediata, sempre um "Eu provavelmente deveria falar com ele/ela
primeiro". Nunca sozinhos, sempre juntos. Muito bem sintonizado com o
espírito do tempo da Geração Z, esse tipo de casal pode facilmente se tornar um
conto de terror sufocante.
![]() |
O Filme
O casal (e produtores) da vida real Dave Franco e Alison
Brie trazem uma dose impressionante de autenticidade e tensão vividas para
Tim e Millie, um casal que se encontra numa encruzilhada após anos de união.
A menos que descubram como se unir da maneira mais verdadeira
possível, correm o risco de se separarem. Começam com uma mudança de endereço.
Ela conseguiu um novo emprego difícil de conseguir como professora no interior,
e ele é aquele músico de trinta e poucos anos que ainda espera por sua grande
chance enquanto sua parceira apoia seus sonhos. Então, eles estão deixando tudo
para trás na metrópole (amigos e familiares) por uma vida no interior, mas
simples. Na esperança de que eles se encontrem pessoalmente e como casal.
A tensão já está alta entre os dois, como observamos na fasta de despedida
com os amigos em que Millie finge pedir Tim em casamento abrindo uma caixinha
de aliança imaginária, e ele demora para dizer o “Sim”, como se estivesse
relutante.
Eles vão morar numa casa idílica (incrível, com um salário de
professora!), mas que começa com uma descoberta assustadora que parece nos
querer preparar para o porvir: uma ratazana morta e malcheirosa aninhada num
dos lustres do teto.
Para aumentar os maus augúrios, ficamos sabendo de um casal
anterior que desapareceu na floresta ao redor da casa.
Embora o filme possa parecer seguir um caminho familiar,
indiscutivelmente sexista (uma mulher chata e pegajosa que se controla versus
um homem-criança preguiçoso que simplesmente não consegue se controlar), o
roteiro logo muda a dinâmica.
![]() |
Enquanto caminham desbravando a floresta ao redor, a dupla tropeça
e caem em uma estrutura escondida e subterrânea: uma espécie de igreja em ruínas
de algum tipo de seita new age. Com estranhos sinos dependurados por todos os
lados, com a esotérica figura da espiral gravada neles.
O acidente os deixa presos no subsolo frio e úmido durante a noite
e a sede força Tim a beber de a água num estranho poço que nos faz lembrar
aquela estrutura alienígena do filme Alien. Isso muda algo durante a
noite, porque o casal acorda com as pernas ligeiramente grudadas (Tim sugere algum
tipo de mofo) e, depois que se soltam e voltam para casa. Depois disso, o
comportamento de Tim se torna estranho.
Para começar, Tim experimenta episódios frequentes que parecem
convulsões autodestrutivas. Ruim para suas articulações e ossos, mas
aparentemente bom para sua vida sexual — basta esperar por um dos encontros
mais emocionantes em cabines de banheiro que o cinema nos proporcionou até
agora. E não para por aí. Agora há uma atração entre os dois, algo que parte a
alma, é pegajoso, pegajoso e destroça membros. De repente, Tim passou a ter uma
vontade incontrolável de estar ao lado de Millie, chegando até a esquecer o
espaço que queria conquistar para si mesmo, como músico e compositor. Mas o que
está acontecendo?
O leitor vai descobrir na hora certa (de um jeito que Shanks planejou cuidadosamente) e prontamente apertar os cintos para as performances físicas mais impressionantes do ano, com muitas referências elegantes ao horror cronenbergiano, bem como ao filme The Thing, de John Carpenter.
De fato, o que Tim e Millie conseguem aqui, dobrando, torcendo,
esticando e unindo seus corpos, com a ajuda de alguns efeitos práticos e
visuais verdadeiramente impressionantes, é uma visão diabolicamente divertida
de se ver.
Dado seu horror corporal que estica a carne e tritura os ossos,
haverá comparações inevitáveis com o filme premiado com o Oscar, A Substância.
Porém, Juntos utiliza esse tipo de horror de maneira mais inteligente e concisa.
É claro que haverá uma relação entre todo o horror corporal, no
qual carne e ossos de Tim e Millie são atraídos para se fundirem, e as ruínas
de uma seita new age e aqueles estranhos sinos com desenhos de espirais.
Certamente, uma seita que pretendia reviver na literalidade o mito das origens
da espécie humana descrita em “O Banquete” de Platão.
A simbologia da espiral – Alerta de Spoilers à frente
No simbolismo oculto a espiral representa a auto evolução, a alma
ascendente, da matéria ao mundo espiritual. Além disso, a espiral partilha
de uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela
enquadra-se perfeitamente no tema da identidade. Por ser uma forma logarítmica,
isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se
no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através das mudanças.
Mas em Juntos, a espiral assume aparentemente uma natureza
punitiva, como uma maldição aterrorizante.
Porém, a última sequência, quando os pais de Millie chegam para
uma visita no almoço do domingo, faz o filme terminar de uma forma ambígua –
como se o jovem casal tivesse finalmente aceito os pressupostos daquela seita esotérica
e, quem atende a porta, é uma versão amalgamada e andrógina de Tim e Millie. Ou
seja, a mudança está completa em uma nova versão que resultou da fusão – o símbolo
oculto da espiral: a ascensão e permanência.
Ficha Técnica |
Título: Together |
Diretor: Michael
Shanks |
Roteiro: Michael Shanks |
Elenco: Dave Franco, Alison Brie,
Damon Herriman |
Produção: 30West, Tango
Entertainment |
Distribuição: Neon |
Ano: 2025 |
País: EUA |