quarta-feira, dezembro 07, 2022

Para entender o terror gnóstico de 'Skinamarink'



Os mais assustadores filmes de terror são aqueles cujas imagens e narrativas deixam lacunas para que nossa imaginação tente preenchê-las. E a nossa imaginação pode ser mais assustadora do que o próprio filme. “Skinamarink” (2022) nos mostra duas crianças que acordam no meio da noite e descobrem que os pais desapareceram, assim como todas as portas e janelas. Filmada em filme analógico, o resultado são imagens escuras e muito granuladas: o que faz o espectador imaginar as coisas mais diabólicas que possam emergir dos grãos da imagem. Há um plot gnóstico por trás do drama daquelas crianças: realidade, fantasia, o onírico e o lúdico se misturam numa casa que repentinamente perdeu portas e janelas. Abuso infantil, morte e monstros da nossa infância são a superfície de um drama gnóstico que tem a ver com a nossa condição existencial da solidão: nascemos sós e morremos sós.

Nascemos e morremos sozinhos. Nascemos em choque, com medo e completamente indefesos: nascemos nus, carecas, sem dentes ou presas, pequenos, lentos, descoordenados, quase cegos, sem conseguir sustentar a própria cabeça ou permanecer eretos.

Da mesma forma morremos: retroagimos fisicamente quase às condições nas quais surgimos nesse mundo. Igualmente com medo e indefesos porque não sabemos o que virá depois. Se é que existe o “depois”.

E se pensarmos numa criança confrontando a morte, encontraremos essas duas condições existenciais distantes no tempo no passar de uma vida, agora concentrados num único momento: a vulnerabilidade física e a decorrente dependência dos pais e o terror diante do desconhecido e assustador que representa a morte – ou então a criança é tão inocente que não é capaz de representar essa situação como “a morte”, com o todo o peso existencial de um adulto. 

Essa é a premissa arrepiante do filme Skinamarink (2022), filmado na casa da infância do diretor Kyle Edward Ball. Sobre duas pequenas crianças prisioneiras em uma casa que aparentemente é uma espécie de purgatório ou algum lugar deslocando no tempo-espaço. É a casa das crianças, aparentemente estão sozinhos e os pais parecem ter saído. Na casa está uma coleção de brinquedos, um aparelho de TV, fitas VHS. Mas, ao mesmo tempo, nada é familiar: as portas e janelas estão desaparecendo. A atmosfera se torna cada vez mais claustrofóbica e parece haver alguma presença maligna que os assedia.

Filmado em filme analógico, com uma imagem com grandes contrastes claro /escuro, com uma grande variedade de predefinições e sobreposições de filmes, o objetivo é transmitir uma sensação nostálgica dos anos 1990 – como nos informam as primeiras imagens que abre o filme, tudo acontece em 1995.



Muitos definem Skinamarink com uma filme exprimentalmente  lynchiano, assim como Erasearhead(1977), o filme de estreia de David Lynch – Skinamarink é um filme ambiguamente esotérico, impenetrável e que exige muito trabalho para o espectador.

Com um design de som constante e opressivo, nunca vemos totalmente as crianças, porque as câmeras estão sempre inclinadas e mostrando corredores e portas do ponto de vista do assoalho, emulando o ponto de vista de uma criança. 

Nunca vemos totalmente as crianças, cuja câmera em ponto de vista parece sempre perder o que está acontecendo. A imagem granulada e escura obriga sempre o espectador a procurar algo na tela – o enegrecido intensamente granulado nos prega peças nos olhos: sempre achamos que está emergindo alguma forma ou Gestalt da escuridão. Mas nada! 

O complemento são os brinquedos Lego largados no carpete, um grande televisor de tubo de imagem e algumas imagens e áudios de músicas de animações infantis dos anos 1930 (que parecem pontuar ou sugerir o que está acontecendo no momento). Brinquedos empurrados telecineticamente, batidas e estrondos altos, um silvo onipresente e uma voz demoníaca que pede que as crianças façam coisas, que faz soar como um pedido, mas na verdade são exigências sob penalidades assustadores.



O filme poderá frustrar muitas pessoas, já que as imagens recusam a entregar ao espectador explicações sobre o que está acontecendo. As imagens escuras, granuladas e errantes criam uma narrativa de lacunas, obrigando a imaginação do espectador encobri-las.

 É um terror paradoxal, criado muito mais pela nossa imaginação que tenta unir os pontos das imagens propositalmente granuladas. Um terror ainda ampliado pela nossa empatia com as crianças, pelo desaparecimento dos pais e a aflição pela inerente situação de vulnerabilidade infantil.

Definitivamente, Skinamarink é um filme para cinéfilos aventureiros.

O Filme

Skinamarink é um filme de arestas. Cantos. Tetos. Corredores acarpetados e luzes noturnas que não ficam ligadas. 

Sabemos que há Kevin (Lucas Paul) e Kaylee (Dali Rose Tetreault), duas crianças muito pequenas que assistem desenhos animados na TV e brincam com Legos e blocos de montar. Mas nunca vemos totalmente as crianças, porque a câmera está sempre inclinada. Temos breves vislumbres, geralmente por trás, ou planos focados em seus pés enquanto eles tamborilam pelos corredores acarpetados. Skinamarink é um filme em que a câmera quer olhar para todos os lados, menos em seus personagens, e vive na escuridão de uma casa que perdeu suas portas e janelas.



Descrever o enredo seria um exercício de futilidade, além de dizer que algo aconteceu e agora Kaylee e Kevin estão presos dentro de uma casa sem portas, janelas ou noção do tempo. Seus pais se foram, embora ocasionalmente ouçamos suas vozes e suas palavras sejam colocadas na tela em legendas ásperas e indiferentes. A certa altura, Kaylee pergunta ao irmão por que a mãe deles está chorando, um choro silencioso que nós, o público, não conseguimos ouvir. É um refrão comum, onde os personagens falam, mas não conseguimos ouvir ou saber o que foi dito, a ênfase é preenchida com algumas legendas. Eles também são usados ​​em momentos em que não queremos ouvir o que está sendo dito. Linhas cruéis de diálogo que ameaçam ou sugerem violência implícita.

Implícito é uma palavra apropriada para Skinamarink , já que a maior parte do que acontece é mais insinuado do que mostrado. Kyle Edward Ball e seu diretor de fotografia usam técnicas de found footage, com uma câmera estacionária que se inclina na escuridão e sugere mais do que conta. Ele girará para capturar o momento depois que uma luz noturna caiu do soquete ou o momento depois que algo derrubou os Legos. A própria câmera parece um antigo gravador VHS, capturando a imagem com granulação escura, muitas vezes completamente preta. Como no found footage, as câmeras estáticas fazem com que o espectador procure algo na tela. Nada. 




Elas estão em um purgatório? – Alerta de spoilers à frente

A conversa telefônica no início de Skinamarink é uma pista de que o que está acontecendo não é real no sentido mais estrito. Kevin caiu da escada, mas provavelmente não está bem. A pobre criança quase certamente está gravemente ferida, e tudo o que acontece a partir desse ponto é o pesadelo imaginário de uma mente danificada. Um dos curtas anteriores de Ball, Heck, no qual este filme foi baseado, trata do mesmo assunto, embora de uma maneira ligeiramente diferente. Tudo, desde a sensação de estar preso até o número de dias exibido na parte inferior da tela no final do filme, é uma indicação de que o menino está em coma há mais de um ano.

Embora não vejamos a mãe deles, nós a ouvimos conversando com Kevin, dizendo-lhe para fechar os olhos e dormir. Esta poderia ser sua maneira de se despedir de Kevin quando ele entrou em coma ou morreu. Sua mente infantil interpretou como se ela o visitasse em casa e o deixasse sozinho e com medo. Todo o sangue visto no início do filme e durante sua repetida cena de morte pode ser sua memória real de ver todo o sangue de seu acidente.




Em certo aspecto, Eskinamarink lembra uma versão infantil e mais assustadora do filme A Passagem (Stay, 2005), no qual o protagonista está preso em uma espécie de purgatório entre a vida e morte após um fatal acidente de carro. Imerso na tela mental de ilusões, acredita que tudo é real e torna-se prisioneiro de seus pesadelos e ansiedades trazidas do mundo em que era vivo.

Desde a franquia A Hora do Pesadelo (1984), o cinema recente tem mostrado um appeal especial sobre esse tema do universo dos sonhos: de monstros que podem representar perigos reais como A Hora do pesadelo, Sonho Mortal (1988) ou A Morte nos Sonhos (1984) até uma aproximação mais esotérica dos sonhos lúcidos como Vanilla Sky (2001), A Origem (2010), Ink (2009) ou Waking Life (2001). 

Todos esses filmes mais recentes lidam com uma questão principal do problema dos sonhos: assim como na vida dita real, também no mundo onírico ou nos momentos finais em vida. somos prisioneiros das ilusões – a chamada “tela mental”. Através da qual se estruturaria esse purgatório entre a vida e a morte: uma cilada ontológica que não nos deixaria seguir em frente (a gnose), fazendo-nos prisioneiros desse mundo. À espera de processos automáticos de reencarnação – “Roda do Samsara”, para o Hinduísmo, o Budismo e o Vedantismo.  

Eskinamarink é uma visão experimental, mas tão experimental, que parece querer colocar o espectador na situação de Keylee e Kevin: totalmente perdidos, mas com agravantes: são pequenas crianças (uma delas parece ter quatro anos) m que agrava ainda mais a confusão entre realidade, fantasia, o onírico e o lúdico.

Como nos informa o próprio título do filme, retirada da trilha musical de um show infantil dos anos 1980 chamado “The Elephant Show”. É uma cantiga baseada em trocadilhos que não significa nada. Quando visto através das lentes da morte ou do abuso, no entanto, as sombras que é melhor deixar escondidas emergem. Realçando a confusão mental das próprias crianças prisioneiras naquele limbo.

Skinamarinky dinky dink 
Skinamarink a doo, eu te amo
Skinamarinky dinky dink 
Skinamarink a doo, eu te amo

Eu te amo de manhã 
e à tarde, 
te amo à noite 
e sob a lua!

Então, Skinamarinky dinky dink 
Skinamarink a doo, 
eu te amo e você e você e você e 
você e você e VOCÊ!

 

 

Ficha Técnica

 

Título: Skinamarink

 

Diretor: Kyle Edward Ball

Roteiro: Kyle Edward Ball

Elenco:  Jaime Hill, Lucas Paul, Ross Paul, Dali Rose Tetreault

Produção: ERO Picture Company

Distribuição: IFC Midnight, Mutiny Picture

Ano: 2022

País: Canadá

 

 

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