“France” (2021, disponível na HBO Max), do cineasta francês Bruno Dumont, foi recebido com um coral de vaias no Festival de Cannes no ano passado. Parece que a plateia formada principalmente pela imprensa especializada não recebeu muito bem a sátira de um cineasta sobre fama e celebridade no jornalismo – jornalistas não costumam receber muito bem críticas de alguém que não pertença ao próprio campo jornalístico. O filme acompanha uma jornalista-celebridade chamada France de Meurs e o fenômeno tautista em que jornalistas deixam de ser testemunhas da história para se transformarem em protagonistas da própria notícia. Regularmente abordada nas ruas para selfies e autógrafos, France parece confortável no interior de uma bolha tautista social/profissional protetora. Até o sentimento de alienação e depressão assombrá-la depois de atropelar um motoboy e começar a colocar em xeque sua profissão. Mas como encontrar a realidade para além do estúdio e da ilha de edição?
A mídia, mais especificamente os jornalistas, são notáveis em seu espírito de corporativismo e autoindulgência. São avessos a qualquer crítica, principalmente quando esta venha de fora do campo profissional da imprensa. Veja por exemplo a violenta reação nos anos 1990 (principalmente na imprensa brasileira) ao pequeno ensaio crítico sobre o campo jornalístico do sociólogo francês Pierre Bourdieu intitulado “Sobre a Televisão” – Zahar, 1997.
O exemplo flagrante mais recente foi o coro de vaias no Festival de Cannes, no ano passado, após a exibição da visão satírica da fama e da celebridade no telejornalismo mostrada pelo filme France (2021), do diretor Bruno Dumont – a plateia formada principalmente pela imprensa especializada não gostou nada do intrometido olhar de um cineasta para o mundo tautista do jornalismo.
France segue a vida de uma jornalista-celebridade chamada France de Meurs (Léa Seydoux), âncora de um talk show e telejornal noturno líder na TV francesa. Além disso, ela faz incursões em zonas de guerra no norte da África e embarca no drama dos botes cheios de refugiados que tentam chegar na costa europeia – tudo sob uma linguagem populista-sensacionalista, em que France não é uma simples correspondente: ela é a protagonista da notícia (fenômeno de enunciação pós-moderna em que os fatos parecem acontecer apenas para que o jornalista possa apresentar) em matérias com massiva edição e direção, sempre finalizando com um close-up em France.
No primeiro ato do filme, acompanhamos uma verdadeira aula didática de como o telejornalismo edita e processa a realidade, aproximando-se cada vez mais da linguagem ficcional cinematográfica: France chega a uma zona de conflagração para entrevistar guerrilheiros que combatem jihadistas. Praticamente ela se transforma em diretora de cena, dirigindo câmera, boom operator e os próprios entrevistados: ela está mais interessada em captar imagens e menos em entrevistar – as perguntas são curtas, vagas. Seu interesse está mais na ilha de edição do que no conteúdo da entrevista. O resultado, exibido no telejornal, é emocionante, sempre fechando no rosto de France no final.
O diretor Bruno Dumont quer pedagogicamente comparar o antes e o pós-edição – linguagem audiovisual é, antes de mais nada, corte, seleção e montagem – o fato é apenas um pretexto para o protagonismo do jornalista ser exercido.
Mas France quer mais do que desconstruir os bastidores da produção telejornalística. Dumont também quer narrar a lenta desconstrução interior de France, principalmente após uma entrevista no estúdio: um político acusa France de ser “útil”, mas é apenas bonita.
Regularmente abordada nas ruas para selfies e autógrafos, France parece confortável no interior de uma bolha tautista (tautologia + autismo midiático) e social/profissional protetora. Como ocorre no fenômeno do tautismo (cobre o conceito clique aqui), aquilo que acontece no mundo exterior à bolha é traduzido a partir da autodescrição que o sistema fechado faz de si mesmo.
Por isso, o filme vai descrever como dois episódios reais vão invadir a sua bolha (dois homens que, aparentemente, não são atraídos pela sua fama), desestabilizando sua bolha protetora. Colocando em xeque a sua autoimagem como jornalista.
O problema é que France precisa da mídia como um peixe precisa da água – conforme o quadro conceitual do jornalista e pesquisador Mark Duze, ela vive na “media life”: não vivemos mais com as mídias (como era na cultura das celebridades do século XX), mas vivemos nas mídias – nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase codificando os nossos genes.
O drama (ou a ironia) é que para ela a solução para o mal-estar da má consciência só pode estar dentro da própria bolha midiática que gera sua dor íntima da alienação.
O Filme
A primeira cena do filme começa com uma participação aparentemente autêntica do presidente Emmanuel Macron (alguns truques de montagem podem ter sido envolvidos, mas se for o caso foi muito bem-feito).
É uma grande coletiva de imprensa e France é a maior celebridade jornalística, recebendo a deferência de Macron para ser a primeira a fazer pergunta. Uma pergunta provocativa sobre as insurreições em Paris e a cutucada: “você é descuidado ou impotente?”. Enquanto Macron responde, France e sua impagável produtora Lou (Blanche Gardin) trocam gestos imodestos e vulgares, rindo como fossem crianças na escola passando bilhete uma para outra sem medo de serem punidas – pouco ouvem a resposta de Macron. Estão mais interessadas nas imagens captadas para serem editadas mais tarde.
No trabalho, France foge de entrevistados mais agressivos com a mesma facilidade e velocidade com que dirige e desenvolve segmentos de entrevistas no local para que possam ser cortados e empacotados para seu programa de TV. Em casa, France adora seu pequeno filho Jo (Gaëtan Amiel) e evita seu marido, um sisudo romancista, Fredric (Benjamim Biolay). Esses dois mundos, igualmente sem amor, inevitavelmente colidem em uma série de episódios que apenas revelam o quão delirante é France por ter pensado que é uma pessoa tão especial quanto conhecedora da mídia.
É quando France começa a passar por uma série de crises pessoais e profissionais. A primeira delas - a menos dramática, mas também, para ela, a mais importante - ocorre no meio de um engarrafamento parisiense, quando seu carro bate na scooter de um entregador. Ele é derrubado e desloca a rótula. Mas também algo se solta dentro dela. Desesperada para expiar a culpa (o rapaz é filho de pais imigrantes desempregados), ela dá dinheiro à família do homem (que eles nunca pediram) e compra uma scooter nova para ele assim que se recuperar dos ferimentos e voltar ao trabalho.
Mas não é o suficiente. Entre o entregador atropelado e o drama dos refugiados que ela cobre, France entra num quadro depressivo e decide fazer tratamento psiquiátrico num spa nos Alpes.
Porém, France é um típico espécime da media life: o spa é frequentado apenas por celebridades (até a ex-chanceler alemã Angela Merkel está lá). Mas ela sente-se atraída por um homem deprimido (Emanuele Arioli) que, aparentemente não assiste TV e não sabe quem ela é.
Na segunda parte do filme, os incidentes dramáticos se acumulam, enquanto a França enfrenta crises no trabalho, traição romântica, escândalo de tabloide e tragédia devastadora.
Um mundo saturado pela mídia – Alerta de Spoilers à frente
France vive num ecossistema midiático fechado e claustrofóbico. Isso porque, apesar do mal-estar psíquico de uma vida inautêntica, as soluções que procura são apenas tautistas: tautológicas e contaminadas pelo autismo midiático.
Talvez os seus dois únicos contatos com a realidade externa sejam o rapaz atropelado e sua família que se ressente da ausência simbólica de France. Por um lado, o dinheiro pago à família do entregador tentou inutilmente curar o estado de alienação. E a tragédia da morte do marido e filho num acidente de carro, involuntariamente ajuda a cortar o último contato com o mundo real, fechando a bolha da media life.
Ironicamente, a injeção de realidade numa bolha media life só pode acontecer mediante um acidente técnico através de uma metalinguagem involuntária: enquanto é exibido um vídeo sobre refugiados com a estrela do telejornal, France e a produtora Lou fazem brincadeiras e comentários nada elogiosos sobre uma tragédia humana. Sem saberem, o áudio ficou aberto e foi ouvido pelos telespectadores. O que leva dezenas de telespectadores a protestarem na frente da emissora e o cancelamento de France de Meurs nas redes sociais.
Toda vez que France quase vê um lado potencialmente desagradável de si mesma, entra em ação a produtora Lou para desviar sua consciência e mantê-la no seu mundo solipsista dizendo que ela é um “ícone” e ícones são “feitos de lama”.
Claro que o filme France é uma narrativa ficcional que pinta em tons bem carregados o campo jornalístico. Mas, também o filme revela uma irônica inversão entre ficção e realidade entre cinema e jornalismo. Em muitos momentos France assume um tom documental, principalmente nas didáticas cenas mostrando as técnicas de enunciação da dupla câmera/repórter. Paradoxalmente, o telejornalismo faz o inverso: tenta emular o máximo possível a linguagem ficcional do cinema, para a realidade parecer mais “real”. É o hiper-realismo.
Enquanto os jornalistas solipsistas estão cada vez mais prisioneiros em um campo profissional tautista.
Ficha Técnica |
Título: France |
Diretor: Bruno Dumont |
Roteiro: Bruno Dumont |
Elenco: Léa Sydoux, Blanche Gardin, Benjamin Biolay, Gäetan Amiel |
Produção: 3B Productions, Red Baloon Films, Tea Time Film |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 2021 |
País: França, Alemanha, Itália |