terça-feira, novembro 30, 2021

A gnose na tela mental pós-morte no filme "Perdidos na Escuridão"



Muitos falam que no momento da morte a vida passa diante de nossos olhos. Isso pode ser mais do que uma metáfora: e se nos perdermos em nossas próprias memórias através de um mecanismo de negação, confundindo alucinação com realidade, memórias falsas e vívidas? O filme “Perdidos na Escuridão” (Wander Darkly, 2020) aborda esse tema PsicoGnóstico de como a morte pode se tornar uma matrix que nos aprisiona em uma tela mental de cacos de memórias que não conseguimos mais juntá-las. Depois de um acidente de carro, um jovem casal que vivia um relacionamento em crise, tenta reconstituir a verdadeira linha do tempo das suas memórias. Uma viagem através de todos os estágios do luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

Em postagem passada, este humilde blogueiro discutiu o argumento gnóstico, com tons budistas e hinduístas, do filme The Wave (2019 – clique aqui): com a morte saltamos para o desconhecido, o que faria a mente acionar uma espécie de airbag “psicodélico” nesse mergulho – na verdade, do ponto de vista gnóstico, uma tela mental na qual são projetados nossas memórias, sonhos, traumas, pesadelos e desejos em uma alucinação imersiva.

Mas há um problema: o carma, o efeito das nossas ações de quando ainda estávamos vivos, poderia causar desequilíbrios ou uma “bad trip” na qual nos perdemos entre a alucinação e a realidade. A não ser que “ouçamos o Universo” (a gnose), ficaremos perdidos nessa bad trip, presos no ciclo vicioso de mortes e renascimentos (a “Roda do Sansara”) sem condições de partir para um novo plano da existência.

O filme Perdidos na Escuridão (Wander Darkly, 2020), de Tara Miele, retoma esse tema. Porém, combinando com condições associadas a perdas e traumas de nós, os vivos. Mais precisamente, mecanismos de dissociação no qual tentamos nos desligar de circunstâncias traumáticas de perdas antes de podermos processá-las.

Uma viagem da protagonista através de todos os estágios de luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

Perdido na Escuridão é uma quebra-cabeças que desafia o espectador. Principalmente quando percebemos que a protagonista é uma narradora não confiável, já que toda a narrativa é pelo ponto de vista de alguém que aparentemente está entre a vida e a morte, imersa naquela tela mental de memórias ou em um aprisionador estado de luto por si mesma ou pelo seu marido, após um fatal acidente de carro.  

Cercada pelo seus pais e com um bebê recém-nascido, sabemos que sua credibilidade estás seriamente comprometida, seja pela sanidade mental, os medicamentos, consultas com psiquiatras, ou pelo simples fato de não sabermos se ela está viva ou morta. 



Logo o espectador percebe que Perdidos na Escuridão tão um leve sabor de Ghost – Do Outro Lado da Vida (1990) ou de A Passagem (Stay, 2005). Mas é precisamente pelo passeio cármico através das memórias (ou do “airbag mental”) que o filme mais poderosamente se conecta com Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças(2004), de Michel Gondry.  

A necessidade de os protagonistas encontrarem um nível meta das memórias, procurando separar o que é real e alucinação, razão e racionalização, falsas memórias e memórias vívidas.

Além de tudo isso, há o aspecto geracional: um típico casal da geração Y, caracterizada pela ansiedade, imediatismo, instabilidade emocional e falta de foco – compraram uma casa e tiverem um bebê mas não aceitam ter um relacionamento estável.




Angustiados, se perguntam: qual o nosso objetivo? Como é característico dessa geração (e do próprio pós-modernismo), as energias para o futuro somente podem ser buscadas no passado. Em memórias que estão embaralhadas e embaçadas.

O Filme

O filme começa de forma extremamente banal e comum. Adrienne ( Sienna Miller ) e Matteo ( Diego Luna ) têm um bebê recém-nascido. Estão exaustos. E também, não estão se conectando. 

Adrienne lembra a Matteo que aquele dia é da "noite de encontro" para saírem a sós, deixando o bebê com a sogra. Ele tinha esquecido. Ela está irritada com ele por isso. Eles se encontram com amigos para beber. Adrienne fala com um colega de trabalho e ela está insinuante demais para o gosto de Matteo. Ele fica com ciúmes. E ela fica de mau humor. 

O casal discute o relacionamento na volta de carro para casa: afinal, o que eles querem? Tiverem um bebê, compraram uma casa, mas parecem simplesmente não funcionar. É difícil dizer o que está mantendo-os juntos. Se for apenas o bebê, então definitivamente haverá problemas pela frente. Tudo muda para o casal quando Matteo se vira para olhar para Adrienne, enquanto ele dirige, se inclina e não vê um outro carro vindo em colisão frontal.

O restante da narrativa é o oposto de banal - a absoluta normalidade da sequência de abertura serve para sublinhar os temas universais do pós-morte que serão abordados após o acidente. 




Depois que o flash de luz ofuscante preenche o para-brisa, Adrienne acorda no hospital. Ou melhor, ela acorda e se vê de pé ao lado da cama, olhando para seu corpo ferido e ensanguentado. Fragmentos de vozes vêm até ela, como se estivessem em um sonho. Ela ouve-se declarada morta. Ela vê seus pais chorando na sala de espera quando recebem a notícia. Adrienne persegue sua própria maca por corredores escuros. Para ela, houve um erro horrível. Afinal, acabou de ter um bebê. Não pode estar morta. Olha, horrorizada, quando vê sua mãe cuidando do filho que teve com Matteo. O que aconteceu com Matteo? Por que Matteo não está cuidando da criança? Será Matteo abandonou o relacionamento? 

Matteo finalmente aparece. Porém, pela inconfiabilidade da narradora Adrienne, aparece num estado qualquer de realidade alternativa em que ela se encontra e a encoraja a se acalmar, a se lembrar de sua história que passaram juntos, como um casal.

A partir desse ponto, as conexões do filme como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças tornam-se cada vez mais evidentes. O problema é que as memórias não são confiáveis. Em muitos momentos Adrienne e Matteo relembram detalhes diferentes. Como no filme de Gondry, o casal procura reencenar muitos acontecimentos, procurando estabelecer um ponto metalinguístico no qual possam se distanciar e encontrar um consenso.




abordagem das memórias é pungente. Reflete como o cérebro e as memórias funcionam: o tempo entra em colapso, não há permanência do objeto, as memórias tomam conta dos sentidos, locais entram em colapso. Adrienne se move de uma memória para a próxima, literalmente em deslocamentos metonímicos, passando por uma porta em sua casa e se encontrando em outro local. 

Mundos e tempos diferentes invadem o momento atual: em um ponto, Adrienne está na garagem de carpintaria de Matteo, pensando em sua viagem para visitar sua família no México. Ela olha para o chão de cimento e vê as ondas do mar batendo em seus pés. Isso tudo é feito com efeitos práticos, e quase nenhum efeito de computação gráfica. 

Semelhante ao filme de Michel Gondry, que confere a uma narrativa irreal uma sensação paradoxal de realidade tátil.

Perdidos na Escuridão confirma a tendência dos filmes gnósticos no século XXI. Se no final do século passado tínhamos o predomínio do filme CosmoGnóstico (protagonistas prisioneiros em mundos virtuais construídos tecnologicamente por demiurgos computacionais, corporativos ou alienígenas como em Matrix, Cidade das Sombrasou Show de Truman), a partir de Vanilla Sky (2001) acompanhamos a hegemonia PsioGnóstica: protagonistas aprisionados em mundos interiores, sejam memórias, telas mentais ou no purgatório entre a vida e a morte. 

Mais além, Perdidos na Escuridão segue a tendência da gnose pós-morte de filmes como Rota da Morte (2003), O Terceiro Olho (2004), Bardo Blues (2007), After Death (2017), Every Time I Die (2019), entre outros numa lista crescente. 

No filme, a possibilidade da gnose (a dissolução da ilusão cármica da tela mental) está na metalinguagem das memórias: juntos, Adrienne e Matteo buscam um consenso que supere as falsas memórias. E, principalmente, o individualismo e o imediatismo tão marcantes na geração dos protagonistas, que tornam não valer a pena manter qualquer relacionamento.


 

Ficha Técnica 

Título: Perdidos na Escuridão

Diretor: Tara Miele

Roteiro: Tara Miele

Elenco: Sienna Miller, Diego Luna, Beth Grant

Produção: 51 Entertainment, ShivHans Pictures

Distribuição:  Lionsgate

Ano: 2020

País: EUA

 

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