quinta-feira, dezembro 29, 2022

A utopia eletromagnética de toda uma geração no filme 'Les Magnétiques'


Os últimos momentos gloriosos de um mundo que vai acabar. Não! Não é um filme catástrofe. É o francês “Les Magnétiques” (2021), ambientado no início dos anos 1980 numa pequena cidade na Bretanha em pleno momento da explosão pós-punk e da energia DIY (“faça você mesmo”) – um grupo de jovens que comandam uma rádio pirata cujas antenas prometem a todos abrirem-se para o mundo e para um futuro revolucionário. Mas, o peso da realidade cotidiana e do serviço militar mostrarão que há inimigos muito maiores a serem enfrentados: a música transformada em propaganda política na Guerra Fria e a sua mercantilização corporativa. “Les Magnétiques” é um filme francês, mas acaba caindo no velho clichê hollywoodiano da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”

Um mundo à beira da extinção. Os protagonistas não sabem, mas estão vivendo os últimos momentos gloriosos de um mundo que brevemente acabará. Não estamos falando de um filme catástrofe ou algum sci-fi sobre planetas em extinção. É o filme francês Les Magnétiques (2021), ambientado no início dos anos 1980. Um momento de explosão da criatividade pós-punk na paisagem cultural – a energia do DIY (“faça você mesmo”) se infiltrava em tudo, desde o rock, publicações chamadas “fanzines” (publicações à base de fotocópias confeccionadas pelos próprios fãs) e até na política.

Na política, o espírito “faça você mesmo” estava por trás da explosão das rádios piratas ou das rádios livres na Europa para fugir do controle do Estado e dos monopólios midiáticos que ocupavam o espectro eletromagnético. Era comum, por exemplo, duas ou três pessoas colocarem equipamentos numa cozinha para começarem a transmitir. Rádios que se associavam a trabalhadores, imigrantes, e informavam tudo o que acontecia nos seus bairros. Transmitiam principalmente à noite, pela concorrência menor e para fugir da repressão policial. O que logo mobilizou juristas e intelectuais.

Por exemplo, o pensador francês Felix Guattari via nessa onda uma “revolução molecular” que estaria explodindo por toda parte e que se opunha à subjetividade da economia política capitalista – leia GUATTARI, Felix, Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo, Brasiliense, 1981.

É esse mundo que pulsava nas ondas eletromagnéticas, mas que se aproximava do fim, do qual os protagonistas de Les Magnétiques mal suspeitavam, inebriados que estavam ouvindo e transmitindo Iggy Pop, Joy Division, Gang of Four e muito rock new wave de obscuras bandas francesas.



Numa pequena cidade no interior da França acompanhamos uma dupla de irmãos: um gênio técnico (Philippe Bichon – Thimotée Robart) capaz de improvisar dispositivos artesanais de fita-cassete produzindo loop sonoros e mixagens em vinhetas de vanguarda que emulavam o que hoje DJs fazem com as mesas controladoras digitais. E o seu irmão mais velho (Jérôme Bichon - Joseph Olivennes), que empresta seu carisma e a voz à rádio.

O momento histórico da França é de euforia: o socialista Françoise Mitterand ganhava as eleições do direitista Giscard d’Estaing. Era o primeiro presidente de esquerda da Quinta República. Porém, tudo observado sob o niilismo pós-punk: “Entre dois palhaços, sempre escolhi o socialista”, fala a certa altura Jérôme, no meio da explosão de alegria de todos os seus amigos. 

Porém, Les Magnétiques é um réquiem para uma época em que a utopia hippie já tinha sido enterrada pelos punks. Mas aquela geração acreditava que a revolução não viria por uma utopia política, mas através da espontaneidade DIY niilista, individualista a amoral.

O filme é um réquiem, mas não só para aquela época. Há algo de atemporal em Les Magnétiques: a trilha musical continua atual e sem tempo – “Passengers”, de Iggy Pop ou “Decades”, do Joy Division de Ian Curtis. Até a Guerra Fria (elemento central na estória, como veremos à frente) parece estar de volta, com a guerra na Ucrânia e a tensão EUA X Rússia/China.

Há algo também atemporal, pelo menos no aspecto da narrativa cinematográfica. Uma maneira de contar uma estória por aquilo que denominamos como “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – um clichê de origens hollywoodianas, mas que até mesmo um filme francês reproduz.



Há diversas maneiras de descrever uma história sobre sonhos que acabaram ou de promessas ou esperanças que não foram cumpridas – de forma heroica, lírica, épica, reflexiva, existencial etc. Porém, Les Magnétiques é pobre em termos narrativos. Iconicamente é rico, pela reconstituição do espírito de uma época. Mas rende-se ao clichê do desejo/punição: quem tem muitos sonhos será punido através do peso da realidade. Inexoravelmente, o filme termina de forma melancólica, com os protagonistas rendendo-se ao cinzento cotidiano. Antecipando ao realismo capitalista claustrofóbico neoliberal que dominaria as próximas décadas.

O Filme

 Acompanhamos os irmãos Philippe e Jérôme Bichon vivendo numa provinciana cidade da Bretanha, numa relação espinhosa com o pai. O arrogante Jérôme e seu irmão caçula taciturno e mais nerd (gênio das mixagens em fita-cassete) são uma espécie de Caim e Abel. É uma jornada tortuosa de amadurecimento de um jovem tímido, criativo no caminho para encontrar sua própria voz.

O núcleo do filme é a relação de três vias entre os dois irmãos – Philippe com sua beleza introvertida, e Jerome com sua arrogância e confiança – além sensual cabeleireira Marianne (Marie Colomb), com um caso amoroso superficial com Jérôme, enquanto o tímido Philippe tenta expressar seu amor por ela. 



Em meio à Guerra Fria, vemos os jovens comemorando a vitória do socialista Mitterrand – vemos imagens granuladas coloridas das TVs da época anunciando o resultado das eleições. Mas para o jovem Philippe as coisas se complicarão: terá que abandonar a rádio pirata chamada Varsóvia (óbvia referência à música “Warsaw”, do Joy Division) e o seu flerte por Marianne para prestar o serviço militar. Ele até tenta escapar do serviço militar simulando um “P4” (gíria militar francesa para designar uma dispensa por saúde mental). Mas o ardil é logo descoberto pelo médico.

Philippe é enviado para uma base francesa na Alemanha Ocidental, próxima do Muro de Berlim. A partir daí, passamos a sentir o zeitgeist da Guerra Fria. Ele logo descobrirá uma pequena emissora de rádio militar onde conhecerá Edouard (Antoine Pelletier). Logo saberá que seu novo amigo tem importantes contatos nos canais de propaganda militar, levando-o ao Serviço de Radiodifusão das Forças Britânicas na Alemanha - Philippe conhecerá como a música pop ocidental rapidamente se confunde com propaganda política. Na Guerra Fria, a disseminação da cultura pop britânica e americana eram verdadeiras armas ideológicas contra o bloco comunista. 



Há dois males presságios que começam a assombrar a estória: primeiro, a morte de Bob Marley quase simultânea à vitória eleitoral de Mitterrand; e segundo, o plano de Edouard de usar o dinheiro de sua família, após o serviço militar, para abrir em Paris uma empresa de multimídia - um aceno nada sutil para a mercantilização da cultura e o futuro digital das artes que viria nas próximas décadas. Acabando com o fascínio da espontaneidade analógica DIY, celebrada no primeiro ato do filme.

É a preparação do terreno narrativo para um final melancólico ou, no mínimo, ambíguo. O peso da realidade cotidiana claustrofóbica que sufocará os sonhos jovens já começa com a profissão de Marianne – cabeleireira. Não há nada mais emblemático que expressa o provincianismo da pequena cidade da Bretanha do que essa atividade. Contrastada pela heroica rádio Varsóvia, com antenas abertas para o mundo e para um futuro utópico.



O final é um exemplar fílmico do clichê do retorno à ordem. Sem querer fazer spoilers, cada um dos protagonistas se renderá ao peso da realidade. Para alguns, como punição pelo orgulho e arrogância – sobre o conceito de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” clique aqui

A presença do serviço militar, a Guerra Fria e a música convertida em propaganda política anticomunista (e mais tarde subjugada pela mercantilização corporativa) constituem o eixo ou o atrator que não permitirá aos protagonistas escaparem com a força do entusiasmo e criatividade DIY.  

Apesar da narrativa clichê, Les Magnétiques tem momentos de grande inventividade em sua paisagem sonora, principalmente em uma cena brilhante em que o tímido Philippe comanda a mesa de som e pick-ups da rádio do exército britânico em Berlim e improvisa uma mensagem codificada de amor para Marianne gravada em fita-cassete, por meio de uma mixagem de áudio experimental, loops e efeitos especiais ao vivo.

E para os mais velhos, como esse humilde blogueiro, a nostalgia em torno da cultura das fita-cassetes: gravar fitas de músicas selecionadas para presentear alguém apaixonado, gravando, ao final, sua própria declaração amorosa – muitas vezes, cifrada.


 

   

Ficha Técnica

 

Título: Les Magninétiques

 

Diretor: Vincent Mäel Cardona

Roteiro: Vincent Mäel Cardona, Chloé Larouchi, Maël Le Garrec

Elenco:  Thimotée Robart, Marie Colomb, Joseph Olivennes, Antoine Pelletier

Produção: Easy Tiger, Srab Films, Elemag Pictures

Distribuição: Paname Distribution

Ano: 2021

País: França

 

 

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