sábado, dezembro 10, 2022

Do demasiado humano ao AstroGnosticismo no filme 'Nr. 10'

O diretor holandês Alex van Warmerdam é conhecido por esse humilde blogueiro principalmente pelo filme “Borgman” (2013) sobre como uma família burguesa é capaz de se autodestruir pelo demasiado humano que nos habita. Mas, dessa vez, seu espírito desconstrutivista foi mais além: do demasiado humano para uma narrativa AstroGnóstica no filme “Nr. 10” (2021). Uma verdadeira montanha-russa, com guinadas secas no tom, como se quisesse brincar com o espectador: de uma simples comédia de erros, passando para um drama sobre pecados até dar uma guinada AstroGnóstica. “Nr. 10” começa no mundo profano do cotidiano (a rotina de trabalho, traições e mentiras numa companhia teatral) para convergir para o Sagrado: a busca de si mesmo pelas mãos de um estranho homem sussurrante que conduz o protagonista a um excêntrico Monsenhor que parece ter negócios muito além desse mundo.

Uma estranha brincadeira entregue de forma seca, direta e implacável. Já no seu filme anterior Borgman (2013), descrevendo como uma típica família de classe média alta pode ser destruída por dentro através de uma inesperada visita (uma presença alienígena representada pela figura de um sem-teto), o diretor holandês Alex van Warmerdam apresentava suas narrativas sobre desconstruções irônicas da realidade.

Mas nesse seu último longa-metragem, Nr. 10 (2022), o cineasta chega ao seu estado da arte. Mas. Dessa vez, como se quisesse brincar com o espectador, ao desconstruir suas próprias expectativas a partir das pistas colocadas no primeiro ato do filme.

Um ator (Günter - Tom Dwispelaere) está tendo um caso com a co-estrela de sua última peça teatral. O diretor da peça, que é o marido da co-estrela, está desconfiado. A filha do ator está gravando secretamente os ensaios em uma câmera de vídeo. Outro homem está acompanhando cada movimento do ator à distância e, em outro lugar, um padre sarcástico (Monsenhor Wassinski – Dirk Böhling) que assiste a competições atléticas femininas na TV, enquanto recebe relatórios sobre o status do ator.

Tudo leva a crer que estamos diante de alguma comédia de erros, conflitos sobre o demasiado humano, traições, mentiras e o jogo de ciúmes e inveja entre atores nos ensaios de uma peça teatral em que todos parecem querer convencer o diretor e roubar as cenas para si.

Mas em se tratando de Alex van Warmerdam, nada é o que parece. Principalmente quando somos apresentados ao protagonista Günter, o ator da peça com um caso amoroso com a atriz esposa do diretor: ele foi adotado após ser encontrado na floresta quando criança. 

O estranho padre que, além de assistir jogos olímpicos femininos, parece também obcecado em acompanhar à distância a vida de Günter é o plot narrativo dissonante num filme que parece ser apenas uma comédia sobre pecados humanos.

De forma seca e direta, Nr. 10 transita de uma comédia de erros sobre o demasiado humano para a decida através toca do coelho AstroGnóstico – filmes gnósticos sobre personagens que se veem tão estrangeiros entre seus amigos e familiares que passam a se sentir como alienígenas, como alguém que não pertence a esse mundo.



Mas os filmes do cineasta holandês são filmes sobre desconstruções. Se em Borgman o alvo era a família burguesa, dessa vez será a Igreja católica. E a ironia é que essa desconstrução se inicia na simbólica busca de Günter pela sua identidade e origem: quem eu sou? De onde eu vim? Questões existenciais e cósmicas que, afinal, são o pano de fundo de toda a busca religiosa humana. A busca por Deus, o seu Pai. 

A excêntrica figura do padre que adora assistir na TV atletas femininas nas horas vagas e que, também, está estranhamente interessado na vida de Günter será a porta de entrada para um estranho mundo tão cercado de mentiras e traições quanto a trupe de atores. 

Esta é a brincadeira que Alex van Warmerdam faz com o espectador. Se em Borgman o tom é o drama impactante, aqui em Nr. 10 temos guinadas secas e violentas do tom narrativo: da comédia de erros, para o drama sobre o demasiado humano, passando para a hipocrisia religiosa. Para então tudo desaguar num surpreendente realismo fantástico AstroGnóstico.

O Filme

Como dissemos, tudo começa como uma espécie de comédia impassível sobre um caso de adultério entre os atores e seu diretor enquanto eles ensaiam uma nova produção que envolve o gênero teatro do absurdo. Em seguida, a narrativa se transforma, sem esforço, em algo totalmente diferente.



As cenas de abertura são elegantemente projetadas e encenadas. A história, à medida que se desenvolve, é intrigante. Começamos com um indivíduo mais velho, que deixa sua esposa doente na cama enquanto vai para o trabalho, pegando carona com outras três pessoas no que parece ser uma estoica rotina cotidiana.

Todos os quatro são atores em uma produção teatral. O ator mais velho sempre esquece suas falas, porque sua esposa doente o mantém acordado à noite. O diretor, Karl (Hans Kesting) fica furioso com isso.

Dois dos atores (Günter e Isabel – Anniek Pheifer) estão tendo um caso que procuram manter em segredo, a ponto de, quando a filha de Günter, Lizzy (Frieda Barnhard), vem jantar com o namorado, ele insistir para que a amante fique escondida no quarto. Durante o jantar, a filha revela que um exame médico recente mostra que um de seus pulmões é maior que o outro, quase inexistente. Seu pai parece estar nem um pouco interessado numa informação que será o gancho do roteiro para as guinadas do segundo ato.

Os atores e o diretor continuam ensaiando, mais coisas estranhas acontecem e, então, os acontecimentos tomam uma reviravolta diabólica quando o caso é descoberto. Pouco tempo depois, eventos ainda mais misteriosos e surpreendentes ocorrem, ainda contados da mesma maneira impassível.

Tudo isso contado pelo roteirista e diretor van Warmerdam em um ritmo em “queima lenta”, permitindo ao espectador deliciar-se com as atuações. Poderia ser perfeitamente suficiente se o filme acabasse ali mesmo. Mas van Warmerdam tem algo mais em mente, que ele vem montando ao longo da primeira parte do filme, e que acaba convergindo para o grande tema do cineasta: as desconstruções morais e institucionais.



AstroGnosticismo – Alerta de Spoilers à frente

Como sabemos, Günter foi encontrado em uma floresta alemã quando era um menino de quatro anos, crescendo posteriormente em uma família adotiva. Para depois ter um encontro aleatório com um estranho homem que sussurra algo ao seu ouvido para então começar a se perguntar sobre suas origens.

Nr. 10 começa no mundo profano do cotidiano (a rotina de trabalho, traições e mentiras numa companhia teatral) para convergir para o Sagrado: a busca de si mesmo pelas mãos do estranho homem sussurrante que o conduz àquele excêntrico padre alemão que parece ter negócios para além desse mundo.

É a guinada mais impressionante do roteiro de van Warmerdam: quando conhecemos que na verdade Günter é um protagonista AstroGnóstico – algum tipo de cobaia de um experimento alienígena com crianças Ets deixadas na Terra para serem observadas como evoluiriam na sociedade humana.

Mas, se aliens tiverem qualquer plano nesse planeta, terão que negociar com aquela instituição especializada em relações cósmicas: a Igreja Católica.

É lugar comum nas discussões ufológicas sobre o porquê do acobertamento da existência de discos-voadores e alienígenas nesse planeta. As hipóteses vão do conluio de governos pelo interesse bélico na tecnologia alienígena, ao pânico de instituições como o Vaticano ao descobrir a existência de civilizações extraterrestres que acreditam em outros deuses ou, pior, quem nem creem na necessidade de acreditar em um deus.



Mas van Warmerdam tem um outro olhar, mais implacável. Ele parece acompanhar o insight do escritor gnóstico pop Philip K. Dick no seu livro “The Man in The High Castle”: o que faria a potência alemã nazista, vitoriosa na Segunda Guerra Mundial em um mundo alternativo, se descobrisse a existência de mundos quânticos paralelos? Certamente iria querer também colonizá-los, para que o Terceiro Reich fosse vitorioso em todos os quadrantes cósmicos.

É o que também pensa aquele excêntrico Monsenhor interessado na vida de Günter, a criança “número 10” do experimento alien, mas também interessado em manter um acordo interplanetário: vocês querem fazer experimentos aqui na Terra? Ok! Mas em troca, queremos disseminar o catolicismo no seu planeta: exportar hóstias, garrafas de vinho, batinas, crucifixos e muita, mas muita arte sacra. Massificar a imagética católica num outro mundo ateu.

Tão ateu que o ponto alto das linhas de diálogo do filme é a surpresa de Günter ao ver um sacerdote católico negro, assistente do Monsenhor Wassinski: “Eu não entendo... vocês têm blues, vocês têm jazz. Certamente você não precisa de Jesus!”.

A crença em Deus é totalmente relativística. Esse seria o principal impacto se porventura descobrirmos a existência de outras civilizações. E, para van Warmerdam, a resposta da Igreja seria a mesma como há dois mil anos: tentar colonizar as mentes das civilizações alienígenas.  



 

Ficha Técnica

 

Título: Nr. 10

 

Diretor: Alex van Warmerdam

Roteiro: Alex van Warmerdam

Elenco:  Tom Dewispelaere, Frieda Barnhard, Hans Kesting, Anniek Pheifer, Dirk Böhling

Produção: Graniet Film BV, Czar Cinema 

Distribuição: Drafthouse Films

Ano: 2021

País: Alemanha, Holanda, Inglaterra

 

 

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