O Deus do Velho Testamento (o “messias elétrico”) faz um duelo surreal
com o Deus do Novo Testamento; um sádico psiquiatra alemão faz experiências com
“ratos esquizofrênicos”; uma família de aristocratas trama a internação de um
conde esquizofrênico para conseguirem ficar com o seu título e fortuna. Com a recente morte aos 81 anos do grande ator inglês Peter O’Toole, não poderíamos deixar de
reverenciar o filme mais estranho da sua carreira: “A Classe Dominante” (The
Ruling Class, 1972). Uma comédia de humor negro repleta de ultraje moral e
religioso que após ser restaurada e relançada em DVD, teve recuperados os 20
minutos cortados no lançamento comercial da época. Um filme profético ao
mostrar que mesmo após todos os movimentos libertários da época, a aristocracia
não morreu: persiste através de uma classe dominante que opta por um deus
vingativo e intolerante.
Peter O’Toole para sempre será
lembrado pelo filme Lawrence das Arábias. Mas temos também que pagar tributo
ao mais estranho filme da sua carreira: A
Classe Dominante (The Ruling Class,
1972) que desde o seu lançamento passou a ser seguido por um grupo restrito de
fãs como um filme cult. Ainda mais que a versão para o lançamento nos EUA teve
uma redução de 20 minutos para tornar o filme mais rentável, poupando ao
público daquele país de algumas cenas bizarras e de extremo humor negro que
chega, algumas vezes, as raias da violência e ultraje religioso. Pois o filme
foi restaurado no relançamento em DVD pela The Criterion Collection em 2001 e retornou às
suas quase duas horas e meia da duração original.
Embora o filme seja um mix de
sátira, farsa, musical, drama shakespeariano e muito humor negro, a narrativa é
uma descida sombria na loucura, caos e simbolismos religiosos nas tramas
envolvendo cobiça e poder no seio de uma elite aristocrática apodrecida, mas
que tenta manter sua fleugma e pompa: um conde esquizofrênico, um bispo
anglicano sem fé, um sádico psiquiatra alemão, um mordomo comunista que vive em
um constante estado de embriaguez, e toda uma galeria de personagens inesquecíveis.
O filme conta a história de Jack
(Peter O’Toole) o 14o Conde de Gurney. Ele herda o título
depois do ao mesmo tempo engraçado e chocante prólogo do filme, em que o seu
patriótico pai, após voltar para casa vindo de uma reunião na St. George
Society, enforca-se acidentalmente em um ritual fetichista sexual privado em
seu quarto. Jack chega tarde demais para o funeral, mas a sua aparição causa
espanto e estardalhaço: Jack chega confiante para buscar seu título porque ele
é nada mais do que Jesus Cristo e o próprio Deus. Pelo menos é isso que Jack
acredita e anuncia para todos, vestindo roupas excêntricas (ora de monge, ora
de dândi) e colocando uma enorme cruz na parede do saguão da mansão. Jack sobe
na cruz e ali “descansa” todas as noites, simulando para os olhares atônitos de
todos a imagem do Cristo crucificado.
O desempenho de O’Toole no papel
é propositalmente teatral e exagerado, porém com o toque inglês: um ator
americano certamente tentaria performar Jesus com os maneirismos emprestados
dos pregadores da TV. Mas O’Toole interpreta um Jesus com muito improviso,
narcisismo e boas maneiras – ele foi indicado ao Oscar de melhor ator naquele
ano por esse filme, porém Marlon Brando levou a estatueta com O Poderoso Chefão.
A família está chocada com o
esquizofrênico Jack e arma uma artimanha para afastá-lo do título e da fortuna:
fazê-lo casar, ter um filho e, depois, mandar Jack para um hospício, enquanto a
família se tornaria o tutor do novo 14o Conde, colocando a
mão nas propriedades e dinheiro. Mas, o que principalmente incomoda a família é
que Jack quer levar as ideias de Jesus às últimas consequências: para ele, todos
devem viver somente do amor e esquecer as propriedades e títulos porque todos
os homens são iguais... A família passa a considerá-lo uma ameaça bolchevique
no meio da aristocracia inglesa.
O deus gnóstico de Jack
E por que Jack acha que é Deus? Ele
descreve sua impagável epifania: “Porque toda vez em que rezava para Ele, eu
percebia que estava falando comigo mesmo. Logo, eu sou Deus!” Jack fala isso
fazendo referências ao papa do LSD, o psiquiatra Thimoty Leary e recomendando a
todos que se amem e façam sexo. Esse é o núcleo profundamente gnóstico e
libertário no Jesus/Deus imaginado por Jack: Deus está dentro de nós mesmos.
Ao longo da descida na loucura e
caos, percebemos que o problema não é a insanidade de Jack – na verdade, todos
ao redor daquela família aristocrática não batem bem! O problema é qual Deus
ele imagina que é: o Deus do Novo Testamento trazido por Jesus, capaz de amar,
perdoar e ter compaixão. Ao contrário, o Deus adorado por todos ao redor (a
começar pelo apoplético e inseguro bispo que participa da conspiração urdida
pela família) é o do Velho Testamento: o Jeová, duro, intolerante e vingativo.
Por isso o tratamento de choque
imaginado pelo um sádico psiquiatra alemão, Dr. Herder – ele faz experiências
com “ratos esquizofrênicos” no laboratório para que os seus comportamentos
sejam comandados por botões de uma estranha máquina – é fazer um encontro de
Jack com o “messias elétrico” (um paciente do psiquiatra que também pensa que é
Deus, mas o Deus certo para eles – o do Velho Testamento). O duelo surreal é um
dos pontos altos do filme, onde “Jeová” chama Jack/Jesus de “mexeriqueiro sentimental”
e, através de choques disparados de suas mãos galvanizadas pela máquina do
psiquiatra, derrota Jack ao fazê-lo perceber que o amor não comanda mais o
mundo.
A “cura” de Jack
Depois dessa sequência o filme
entra na segunda parte, cada vez mais sombria e violenta: Jack é “curado” e
torna-se cada vez mais xenofóbico, homofóbico, patriótico e intolerante, além
de acreditar que todo o problema da
Inglaterra reside na falta de punições exemplares para que o medo se sobreponha
ao amor.
O filme A Classe Dominante é estranho e até difícil para os espectadores
por dois motivos: primeiro, que ele parece fora do seu tempo – quem se importa
com os símbolos da velha Inglaterra (aristocracia, Igreja Anglicana, caça à
raposa, Câmara dos Lordes) depois dos loucos anos da década de 1960 de rock e
amor livre?
Parece que com isso o filme quer
apresentar a seguinte mensagem: não pensem que a ruína da aristocracia trouxe a
renovação. Rei morto, rei posto: a brutalidade da classe dominante persiste
através de princípios morais e religiosos que mantém a hierarquia da sociedade.
E segundo, o filme é
desavergonhadamente teatral. Depois de décadas de atores em interpretações
realistas como na Nouvelle Vague francesa ou a Actor’s Studio de Marlon Brando
e James Dean nos EUA, A Classe Dominante
é um retorno à tradição da década de 40 do cinema de estúdio inglês, trazendo
de volta alegoria, fantasia e fantasmagoria – é marcante a cena em que a Câmera
dos Lordes é mostrada como uma câmera de horrores, cheia de zumbis e esqueletos
enrolados em teias de aranha, enquanto o “curado” Jack assume o seu lugar como
Lorde ao discursar sobre a necessidade da mão pesada da classe dominante para
manter a coesão pelo medo e o terror.
Constantemente sequências de
pesado humor negro repentinamente são quebradas por sequências musicais, numa constante
autorreferência irônica. É o que muitos críticos chamam de gênero camp, certamente ecos do grupo de humor
inglês Monty Python, exibido na TV inglesa naquela época.
O fascinante é que o filme
também reflete as novas visões sobre a perversão e a loucura que estava sendo
debatidas naquele momento. Na França, a obra de Marquês de Sade estava sendo
culturalmente reabilitada, enquanto na Grã-Bretanha, sob a influência de um
movimento de psiquiatria “existencial”, a loucura estava cada vez mais sendo
percebida como uma construção social. Os relatos do movimento da chamada Antipsiquiatria
inglesa do final da década de 1960 de David Cooper e R. D. Laing de que a
esquizofrenia era essencialmente uma indução familiar – uma resposta lógica do
indivíduo a pressões irracionais – foram argumentos contra os defensores das
terapias de eletrochoque e a fármaco dependência. Esse é o pano de fundo da “loucura”
e “cura” de Jack e o confronto surreal com o “messias elétrico”.
Ficha Técnica
- Título: A Classe Dominante
- Diretor: Peter Medak
- Elenco: Peter O’Toole, Alastair Sim, Arthur Lowe, Carolyn Seymour, Coral Browne
- Produção: Keep Films
- Distribuição: The Criterion Collection
- Ano: 1972
- País: Reino Unido
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