Em toda sua história, a Rede Globo foi acusada de sexismo e racismo: uma teledramaturgia com um cast de atores que mais parecia ter saído de algum país nórdico, enquanto os poucos negros ocupavam papéis subalternos; as mulheres eram objetificadas em programas de entretenimento e o machismo sempre figurado como uma prova do verdadeiro amor. Ao mesmo tempo, o seu diretor de Jornalismo dizia que o Brasil nunca foi racista e que isso não passava de uma invenção da esquerda para dividir o País. Mas de repente, a emissora começou a apoiar e dar visibilidade a movimentos identitários e culturais (movimentos de gênero, étnico-raciais, geracionais que postulam a diversidade, alteridade e reivindicação de direitos sociais) como nunca antes. Política de “controle de danos” para tentar descolar a sua imagem do Golpe de 2016 e dar alguma credibilidade ao telejornalismo? Ou há algo além? De natureza estratégica em um ano eleitoral decisivo. “Se a Globo é a favor, somos contra!”, alertava o velho Brizola. E se nesse momento a emissora estiver pondo em prática outra velha máxima: “dividir para conquistar”? A Globo estaria desempenhando o seu derradeiro papel? Ser o para-raio do ódio tanto da esquerda quanto da direita?
“Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que
posição tomar diante de qualquer situação, atentem: se a Rede Globo for a favor
somos contra. Se for contra, somos a favor”
(Leonel Brizola)
(Leonel Brizola)
“Leva-lo a dividir suas tropas, e será mais
fácil dominá-los”
(Sun Tzu)
(Sun Tzu)
Durante
os anos de guerra midiática que culminaram no impeachment de 2016, a Rede Globo
deu visibilidade a pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros,
músicos que fizeram sucesso no passado e foram esquecidos, ex-anônimos que
confundiam militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas
de toda sorte para engrossar o caldo de oposição ao Governo.
Como,
por exemplo, um manifestante pró-impeachment que organizava acampamentos em
frente à Fiesp na Avenida Paulista que vivia de recrutar mulheres para feiras e
acusado de estelionato e de assédio sexual a modelos; ou o procurador do
Ministério Público Federal, de controversa militância religiosa, acusado de
agredir a esposa e mantê-la em cárcere privado – clique aqui.
Esses,
e muitos outros, exemplares do Brasil Profundo costumavam ganhar visibilidade
no dia-a-dia dos telejornais da emissora para atiçar ainda mais a
extrema-direita a embarcar na cavalgada do Golpe.
Enquanto
isso, crescentes atentados racistas e homofóbicos na ruas de São Paulo eram
reportados de forma anódina pelo telejornalismo. Apenas como notícias da pauta
policial. Como fossem eventos análogos a acidentes de carros ou roubos de
celulares a mão armada.
Meros casos
isolados, já que para a linha editorial da Globo, comandada pelo diretor de
Jornalismo Ali Kamel e autor do livro “Não Somos Racistas”, as críticas contra
o racismo não passavam de manobra da esquerda e do lulopetismo para “construir
uma separação entre cores que nunca existiu, de fato, no Brasil”.
Talvez,
o ponto de inflexão tenha sido em 2015 quando a ascensão profissional da
jornalista negra Maria Júlia Coutinho (a “Maju”) na emissora despertou o ódio
de grupos racistas nas redes sociais – clique aqui.
Naquele
momento o roteiro para o impeachment já estava traçado e a massa de manobra nas
ruas já organizada. A Globo teve que, então, tirar o pé do acelerador e iniciar
o trabalho de rescaldo pós-golpe: uma política de “controle de danos” para
tentar tirar das mãos a lama psíquica que teve que remexer por anos para dar o
tranco subliminar nas massas e tornar o golpe político verossímil. E salvar a
credibilidade comercial e jornalística da emissora.
Diante
do sentimento de traição, a direita começou a acusá-la de “petista” quando viu
perplexa a Globo colocar em ação um rolo compressor do politicamente correto na
programação da emissora: a agenda da igualdade racial e de gênero, cidadania,
tolerância etc. tomou conta não só do Jornalismo, mas também dos programas de
entretenimento e teledramaturgia.
Os
movimentos identitários e culturais (movimentos de gênero, afro-brasileiro,
indígena, movimentos de jovens e idosos) passaram a merecer o apoio do
jornalismo da Organização Globo, numa escalada até subliminar – não importa
sobre do que se trata a pauta: repórteres nas ruas fazem enquetes procurando
preferencialmente mulheres, negros e jovens (tanto melhor se o entrevistado
reunir essas três características). Enquanto isso, o veterano William Waack era
demitido por ser pego fazendo galhofas racistas diante das câmeras e o
jornalista negro Heraldo Pereira ganhava protagonismo com o programa “Jornal da
Dez” na Globonews no lugar do “Painel” apresentado pelo afastado Waack.
Muito além do “controle de danos”
Fica a
questão: por que depois de décadas de ínfima participação de protagonistas
negros no jornalismo e teledramaturgia, e de relegar causas de gênero a alguns
programas femininos matinais, de repente a Globo tornou-se promotora de
movimentos identitários?
Há
algo mais além da política de “controle de danos” de uma empresa preocupada em
se descolar da imagem de “TV golpista” – que aliás, se confunde com a própria
história da emissora desde o golpe militar de 1964. Será que devemos levar em
conta o alerta do falecido Leonel Brizola - se a Globo for a favor, então somos
contra?
Talvez
a direita seja intelectualmente tão primitiva que não perceba o que está por
trás desse repentino alinhamento da Globo: o chamado “neoliberalismo
progressista” que levou Obama ao poder nos EUA e que anima a atual agenda
cultural da Globalização.
O aparente oximoro dessa expressão esconde um
alinhamento perverso entre correntes dos movimentos sociais (feminismo, LGBT,
antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o setor de negócios baseados em
serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do Silício e Hollywood) e o
capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a financeirização.
Segundo a
professora de Filosofia e Política da New School for Social Research de Nova
York, Nancy Fraser, esse movimento dos “Novos Democratas” ficou bem distante da
tradicional coalizão entre trabalhadores sindicalizados, indústrias, setores afro-americanos
e classe média. Mas agora uma aliança entre empresários, classe média dos
subúrbios e novos movimentos sociais. Todos emprestando um carisma jovem com a
boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento,
multiculturalismo e os direitos das mulheres – Leia FRASER, Nancy. “The End of
Progressive Neoliberalism” IN: Dissent Magazine, 2/1/2017 –
tradução aqui.
Quando a pauta
identitária é assumida, nos EUA, pelos Democratas e todo o setor tecnológico e
de negócios que impulsiona a Globalização e, aqui no Brasil, pela TV Globo,
começamos a desconfiar de uma estratégia ideológica: retirar a pauta do
paradigma “materialista” das esquerdas para ser incorporada à agenda das
reivindicações liberais pelos “direitos humanos”.
O discurso dos “direitos humanos”
Para o pensador
francês Jean Baudrillard o discurso dos direitos humanos é um “valor piedoso,
fraco, inútil e hipócrita” porque “se baseia numa crença iluminista na atração
natural do Bem, numa idealidade das relações humanas” – leia BAUDRILLARD, Jean.
A Transparência do Mal, Campinas, Papirus, 1990, p. 93.
Ademais esse Bem, valor ideal, é sempre concebido de modo protecionista, miserabilista, negativo, reacional. É a minimalização do Mal, profilaxia da violência, segurança. Força condescendente e depressiva da boa vontade, que no mundo só aspira à retidão e se recusa a encarar a curva do Mal, a inteligência do Mal – BAUDRILLARD, Jean, IDEM, p. 94.
O discurso dos
direitos, tão facilmente incorporado pela grande mídia e pela pauta do
politicamente correto, tende a ver o
outro pelo olhar da piedade como vítima do “racismo e intolerância”, como
alguém fragilizado que deve ser protegido pelos “direitos” que se recusam a
encarar “o Mal” – a estrutura econômica da exploração do homem pelo próprio
homem, da reprodução perversa da desigualdade como condição intrínseca para
produção de valor e riqueza para poucos.
Dois exemplos
do destino de discursos críticos materialistas que se converterem em lutas em
defesa dos “direitos”: o ecológico e o feminista.
De movimento contracultural de crítica ao modo de
produção capitalista e ao modelo de civilização Ocidental, o pensamento
ecológico facilmente se transformou em movimento ambientalista corporativo - ONGs ambientalistas como o Greenpeace, por exemplo,
contam com o apoio financeiro de grandes empresas petrolíferas, Fundação
Rockfeller e mercado de energia elétrica – clique aqui.
Da
estrutura perversa da sociedade de consumo cuja produção de riqueza de
exploração humana gera desperdício e destruição, tornou-se a luta pelo “direito
ao meio ambiente” que execra empresários gananciosos e contempla empresas “do
Bem”. Como se a luta pelo direito ao ar e à agua naturalmente atrairia almas
bem intencionadas (principalmente do meio corporativo), mantendo o “Mal” (o
mecanismo econômico perverso e impessoal) fora de qualquer ação política.
Enquanto isso
nos seus 200 anos de lutas das mulheres, o feminismo deixou de ser uma luta
contra o sistema do capitalismo (cujos fenômenos como a prostituição, objetificação
da mulher, desigualdade, violência e o determinismo machista eram extensões da
ordem do patriarcado e da manutenção da propriedade privada) para se
transformar na reivindicação pelo direito à igualdade dos gêneros.
Em artigo no Jornal GGN, Vitor Fernandes
descreve que ficou “cada vez mais comum os discursos começarem apresentando a
identidade do falante. Ex: ‘eu, mulher, negra, periférica, lésbica..., Eu,
homem, LGBT. Ou Eu. Mulher, negra’”.
Nessa
perspectiva, podemos começar a entender porque a Globo vem ativamente apoiando
o discurso identitário politicamente correto dos chamados novos movimentos
sociais. Para o viés jornalístico da emissora a vareadora Marielle Franco
(PSOL/RJ) foi morta não porque investigava a intervenção militar no Rio e a
violência policial em áreas pobres, mas porque era mulher, negra e lésbica.
Dividir para conquistar
O foco na pauta
identitária da reivindicação por direitos resulta em quatro consequências: (a)
falsa consciência; (b) fragmentação; (c) despolitização; (d) crescimento da
extrema-direita.
(a) como falsa
consciência o discurso do direito, como um véu, esconde a “curva do mal” a que
se refere Baudrillard: uma sociedade, ao mesmo tempo produtora da consciência
dos seus próprios direitos, e que simultaneamente fundamentada na desigualdade
porque somente consegue produzir riqueza através da luta de classes. Os conflitos políticos e econômicos são
desviados para a esfera cultural das relações humanas idealizadas.
Racismo,
intolerância e preconceito são sempre vistos por um olhar abstrato entre a
compaixão e uma indignação movida muito mais pelo ressentimento do que pela
consciência política.
(b) A questão
de classe é fragmentada (ou pulverizada) em uma série de grupos
reivindicatórios conduzindo o clamor das ruas para a institucionalidade
parlamentar. Com isso, o sistema triunfante retira a pressão da panela dos
conflitos de classe para diluir no discurso abstrato da “cidadania”, do “respeito”,
da “tolerância”, da “dignidade” e toda uma constelação de palavras que se
tornam abstratas na medida em que se afastam do conflito fundamental da
sociedade.
Por exemplo, com
a ascensão das redes sociais surgiram os inúmeros coletivos ligados a pautas LGBTs,
feministas e negras. Promoveram uma batalha linguística, caminhando separado
das questões de classe.
(c) Muitos
movimentos identitários se dizem apartidários. Fruto do discurso profilático e
abstrato dos direitos. Como ilustra o depoimento de Vitor Fernandes em seu
artigo:
Em outra situação um coletivo Ana Montenegro, um coletivo feminista-marxista, tentou levar para a marcha das vadias (um importante ato do movimento feminista) no Rio de janeiro, uma faixa, com claro teor marxista dizendo: “gênero nos une, classe nos divide” (ou algo do tipo) e foi impedida pela liderança do movimento (FERNANDES, Vitor, Jornal GGN, ).
Por isso, ideologicamente movimentos identitários caem
como uma luva para a atual estratégia despolitizadora da Globo às vésperas das
eleições – reforçar a aversão à Política como parte da estratégia do “dividir
para conquistar”: neutralizar a crítica materialista da sociedade na qual se
fundamentou historicamente a esquerda. Ou transformá-la em uma coisa chamada
“marxismo cultural”.
(d) O ardil em apoiar os movimentos identitários pela
grande mídia visa principalmente o cidadão médio, despolitizado, vivendo de um
trabalho precarizado e, em decorrência, movido por uma visão de mundo conservadora.
Por isso, um voto que se entrega facilmente ao discurso fascista de Bolsonaro
ou congêneres.
A Globo repete a mesma tática de comunicação indireta
criada pelos provocadores da direita do calibre Kim Kataguiri, Rodrigo
Constantino ou Fernando Holiday – não se trata de ter a esquerda como
interlocutora ou rival. Se trata de provocar, para de forma indireta falar com
o cidadão médio despolitizado, desmobilizado e nutrindo o asco pela Política
incutido pela Globo.
Por essa razão, a Globo assume um papel estoico e
derradeiro: se converter no para-raio do ódio tanto da esquerda quanto da
direita. Pelo menos, até as eleições.
O velho Brizola continua bem atual.