quinta-feira, julho 12, 2018

Frankenstein, Inteligência Artificial e pós-feminismo em "Desejos Virtuais"


Esse é outro filme para cinéfilos que adoram se aventurar por filmes estranhos. Dessa vez, para aqueles que acreditam que por trás do senso de humor trash de filmes que aparentemente não se levam à sério há importantes temas para serem discutidos. “Desejos Virtuais” (“Teknolust”, 2002) é um filme que reflete todo o ciber-imaginário pós-humanista (com motivações místicas) e do velho conceito de Inteligência Artificial (que ainda tentava emular a inteligência humana) por trás da antiga Web 1.0. Uma bio-geneticista clona seu próprio DNA em três mulheres “Autômatos Auto Replicantes” (SARs) que habitam um site da Internet. Porém, necessitam de constantes quantidades de cromossomo Y presente no sêmen humano. Uma delas deve se aventurar no mundo real para, através de sexo casual em bares locais, obter preservativos usados que servirão de sachês que serão consumidos pelas SARs. Frankenstein de Mary Sheeley se encontra com o psicodelismo de Timothy Leary e o pós-feminismo de Camile Paglia. 
 
Era uma vez a Web 1.0., resultante de desde os trabalhos de Ted Nelson nos anos 1960 criando o “hipertexto” (hiperligações que nos remete a blocos de textos, imagens ou sons)  até o surgimento da World Wide Web  por Tim Berners-Lee em 1990. Dessa maneira estava formada a arquitetura do que a Internet seria hoje. Porém, com o impulso idealista de transformá-la numa janela aberta para o mundo, com informações acessíveis para todos – uma grande biblioteca universal, com possibilidades infinitas de criação de novas ideias.

Um projeto tão antropocêntrico que a seminal cibercultura da obra Neuromancer de William Gibson imaginava que, através de implantes neurais e microbiônica, o próprio eu descorporificado poderia navegar pelos bytes dos dados das redes – poderíamos “virar silício”: incrementar os nossos próprios corpos com tecnologia.

A motivação religiosa estava clara por trás de tudo isso: fazer o Verbo (códigos e ícones) se transformarem em Carne – o milagre da transmutação na qual símbolos se convertem no corpo de Cristo. A presença real de Cristo em uma espécie de Eucaristia digital planetária.

 Então surgiu a Web 2.0 na qual grandes empresas do Vale do Silício correram para tentar capitalizar as buscas dessa biblioteca universal e uma cibercultura altamente adicta. E como não poderia deixar de ser, o homem deixou de ser o observador de uma janela aberta para se degradar em mero fornecedor de dados para uma Internet que ganha vida própria e se transforma numa criatura supra-humana. Enquanto os algoritmos criam efeitos-bolha dentro das quais os usuários têm a ilusão de ainda continuar diante de uma janela aberta olhando livremente para o mundo.


O filme Desejos Virtuais (Teknolust, 2002) é um documento histórico do período transitório do início desse século entre a Web 1.0 e 2.0. Uma curiosa interpretação da cibercultura da primeira fase da Internet e de todo imaginário pós-humano e do conceito de Inteligência Artificial (IA) que inspiraram aqueles tempos.

Imagine o leitor, misturar Frankenstein de Mary Sheeley, o psicodelismo de Timothy Leary e o pós-feminismo de Camile Paglia.

Então, terá toda a bizarrice da narrativa de Desejos Virtuais. Porém, tudo em um tom brincalhão, em um filme que parece não se levar à sério. Em com nada mais e nada menos do que a atriz Tilda Swinton como protagonista, se multifacetando em quatro personagens – Tilda, uma atriz “estranha” e camaleônica, especializada em personagens andróginos e controversos.

Todos os sonhos antropocêntricos da Web 1.0 estão lá: os avanços cibernéticos-genéticos, o mix clonagem e pós-feminismo (a reprodução autônoma da espécie sem a necessidade dos homens), o pós-humano, o design e interface da Internet desses tempos. Mas principalmente, um conceito de IA ainda como extensão do homem: como os códigos digitais ainda tentavam emular a inteligência humana, o seu livre-arbítrio e individualidade.

Antes de surgir as megacorporações do Vale do Silício e a Web 2.0 na qual a nova IA algorítmica abandonou a pretensão de imitar a inteligência: através de iscas das interações, convergências tecnológicas, perfis e informação personalizada, o homem rebaixa seus padrões de inteligência e fornece todas as informações da vida privada para a gigantesca inteligência supra-humana corporativa.


O Filme


Tilda Swinton é uma bio-geneticista nerd, apropriadamente chamada Rosetta Stone, que brinca de Deus em um computador com seus códigos ultrassecretos. Só que ao invés de criar monstros ao estilo Frankenstein, ela cria SRAs (Autômatos Auto Replicantes): três belas mulheres que são versões vestidas de quimono da cientista – a impertinente e sensual Ruby; a tímida Olive; e a reprimida Marinne. Na verdade, a expressão virtual do psiquismo conflituoso da cientista.

Elas vivem dentro de um software cujas interfaces são, para a Internet, um site com um design ao estilo Web 1.0. E para o mundo real, a tela de um forno de micro-ondas na cozinha da casa de Rosetta.

Rosetta monitora os sinais vitais das suas criações feitas a partir do seu próprio DNA. Isso é fundamental, já que os seus clones cyborgs precisam eventualmente se aventurar pelo mundo real (principalmente Ruby, que se materializa através do forno de micro-ondas!) para obter o cromossomo Y na forma de sêmen humano.

Por isso, Ruby se aventura em bares locais em busca de sexo casual para conseguir homens “fornecedores” por meio de preservativos. O detalhe bizarro: os preservativos se transformam em sachês de chá que mais tarde serão consumidos pelos SRAs no mundo digital, mantendo a contagem cromossômica e a vida artificial.


Mas essas relações promíscuas entre o digital e o real cobra seu preço: os “fornecedores” começam a apresentar estranhos sintomas - seus PCs começam a apresentar falhas no disco rígido, o usuário começa a sofre de impotência e uma espécie de código de barras começa a surgir na testa.

Dois agentes especiais federais começam a investigar a epidemia viral: Hopper (Jamer Urbiniak) e “Dirty Dick” (numa performance impagável da veterana Karen Black). Rosetta Stone é detida preventivamente como suspeita, deixando seus SRAs livres para fazer incursões clandestinas no mundo real.

E daí os problemas irão começar: aos poucos Ruby, Olive e Marinne tornam-se sencientes, autônomas e começam a descobrir as emoções.

Desejos Virtuais é um filme deliciosamente estranho para cinéfilos: Um forno de micro-ondas como interface entre o mundo real e virtual? Um chá com sachê de preservativo usado?...

Mas, como acredita esse humilde blogueiro, todo filme é um documento histórico do imaginário de determinada época.


Espírito, Carne, Alma e Ícone!


Após o crash do índice Nasdaq em 2000 e a quebradeira das empresas “ponto com”, foi necessária uma total reformulação do esquema de negócios na Internet. Nos anos 1990, empresas como Yahoo e Google tentaram começar a capitalizar comercialmente as buscas na Web 1.0. Mas encontraram o plano de conteúdo da web, o lado cultural, funcionando bem sem um plano de negócio. Como, então, vincular propagandas às buscas?

Esse cyber-imaginário, representado no filme Desejos Virtuais, era forte o suficiente para dispensar qualquer plano comercial.  Era uma cultura anticorporativa, underground, representada pelo conflito entre a cientista Rosetta Stone e os agentes especiais do governo.

Embora uma paródia, Rosetta é a síntese da efervescência dessa cibercultura: o pós-feminismo de mulheres dispensando os homens para a reprodução da espécie, as suas linhas de diálogo ciber-religiosas altamente simbólicas: “Espírito, carne, alma e ícone!” exclamam Rosetta e seus SRAs ao descobrirem a possibilidade do surgimento do livre-arbítrio nas entidades digitais.


Cores e Alquimia


As cores presente em Desejos Virtuais são muito importantes na narrativa e  correspondem a uma evidente simbologia tecnognóstica alquímica (que ao lado da cabalística animavam o misticismo da cibercultura) – sonho gnóstico da transcendência através da Alquimia.

O verde luminoso de Olive como a síntese entre as Trevas e a Luz – a permanente recomposiçãoo da vida, a cor emblemática de Vênus, patente na maçã que a deusa ostenta. A vida ciclicamente re-gerada por elementos uranianos e telúricos representados pela manifestação do ser.

O vermelho mercurial de Ruby é a terra e o sangue, aquilo que implementa vida (Ruby é quem se aventura pelos bares atrás do cromosso Y no sêmen e que infunde no chá para servir às suas irmãs – chás com sachês de preservativos vermelhos) e o azul de Marinne representando o céu – o retorno a Deus a partir do ritual alquímico da Teurgia – a transcendência através da imitação de Deus ao criar vida.

Por tudo isso, vale à pena assistir à bizarrice de Desejos Virtuais: é uma síntese de todo o ciber-imaginário tecno-alquímico que animava a busca da IA na velha Web 1.0. Hoje temos a vitória do tecnognosticismo cabalístico liderado pelas grandes corporações do Vale do Silício: a IA como nuvem digital supra-humana.

Que promete a imortalidade através da “Singularidade”: a supra-inteligência senciente, com auto-aprimoramento recursivo, que ultrapassaria toda inteligência humana. Mas que potencialmente abrigaria toda individualidade em um upload final da humanidade numa realidade virtual , controlada pelos algorítmicos e hardwares das gigantes do Vale do Silício.


Ficha Técnica 

Título:  Desejos Virtuais (Teknolust)
Diretor: Lynn Hershman-Leeson
Roteiro: Lynn Hershman-Leeson
Elenco:  Tilda Swinton, Jeremy Davies, James Urbaniak, Karen Black
Produção: Blue Turtle, Epiphany Productions
Distribuição: THINKFilm
Ano: 2002
País: EUA

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