Esse é outro filme para cinéfilos que adoram se aventurar por filmes
estranhos. Dessa vez, para aqueles que acreditam que por trás do senso de humor
trash de filmes que aparentemente não se levam à sério há importantes temas para
serem discutidos. “Desejos Virtuais” (“Teknolust”, 2002) é um filme que reflete
todo o ciber-imaginário pós-humanista (com motivações místicas) e do velho
conceito de Inteligência Artificial (que ainda tentava emular a inteligência
humana) por trás da antiga Web 1.0. Uma bio-geneticista clona seu próprio DNA
em três mulheres “Autômatos Auto Replicantes” (SARs) que habitam um site da
Internet. Porém, necessitam de constantes quantidades de cromossomo Y presente
no sêmen humano. Uma delas deve se aventurar no mundo real para, através de
sexo casual em bares locais, obter preservativos usados que servirão de sachês
que serão consumidos pelas SARs. Frankenstein de Mary Sheeley se encontra com o
psicodelismo de Timothy Leary e o pós-feminismo de Camile Paglia.
Era
uma vez a Web 1.0., resultante de desde os trabalhos de Ted Nelson nos anos
1960 criando o “hipertexto” (hiperligações que nos remete a blocos de textos,
imagens ou sons) até o surgimento da
World Wide Web por Tim Berners-Lee em
1990. Dessa maneira estava formada a arquitetura do que a Internet seria hoje.
Porém, com o impulso idealista de transformá-la numa janela aberta para o
mundo, com informações acessíveis para todos – uma grande biblioteca universal,
com possibilidades infinitas de criação de novas ideias.
Um
projeto tão antropocêntrico que a seminal cibercultura da obra Neuromancer de William Gibson imaginava
que, através de implantes neurais e microbiônica, o próprio eu descorporificado
poderia navegar pelos bytes dos dados das redes – poderíamos “virar silício”:
incrementar os nossos próprios corpos com tecnologia.
A
motivação religiosa estava clara por trás de tudo isso: fazer o Verbo (códigos
e ícones) se transformarem em Carne – o milagre da transmutação na qual
símbolos se convertem no corpo de Cristo. A presença real de Cristo em uma
espécie de Eucaristia digital planetária.
Então surgiu a Web 2.0 na qual grandes
empresas do Vale do Silício correram para tentar capitalizar as buscas dessa
biblioteca universal e uma cibercultura altamente adicta. E como não poderia
deixar de ser, o homem deixou de ser o observador de uma janela aberta para se
degradar em mero fornecedor de dados para uma Internet que ganha vida própria e
se transforma numa criatura supra-humana. Enquanto os algoritmos criam
efeitos-bolha dentro das quais os usuários têm a ilusão de ainda continuar
diante de uma janela aberta olhando livremente para o mundo.
O
filme Desejos Virtuais (Teknolust, 2002) é um documento
histórico do período transitório do início desse século entre a Web 1.0 e 2.0.
Uma curiosa interpretação da cibercultura da primeira fase da Internet e de
todo imaginário pós-humano e do conceito de Inteligência Artificial (IA) que
inspiraram aqueles tempos.
Imagine
o leitor, misturar Frankenstein de Mary Sheeley, o psicodelismo de Timothy
Leary e o pós-feminismo de Camile Paglia.
Então,
terá toda a bizarrice da narrativa de Desejos
Virtuais. Porém, tudo em um tom brincalhão, em um filme que parece não se
levar à sério. Em com nada mais e nada menos do que a atriz Tilda Swinton como
protagonista, se multifacetando em quatro personagens – Tilda, uma atriz
“estranha” e camaleônica, especializada em personagens andróginos e
controversos.
Todos
os sonhos antropocêntricos da Web 1.0 estão lá: os avanços
cibernéticos-genéticos, o mix clonagem e pós-feminismo (a reprodução autônoma
da espécie sem a necessidade dos homens), o pós-humano, o design e interface da
Internet desses tempos. Mas principalmente, um conceito de IA ainda como
extensão do homem: como os códigos digitais ainda tentavam emular a
inteligência humana, o seu livre-arbítrio e individualidade.
Antes
de surgir as megacorporações do Vale do Silício e a Web 2.0 na qual a nova IA
algorítmica abandonou a pretensão de imitar a inteligência: através de iscas
das interações, convergências tecnológicas, perfis e informação personalizada,
o homem rebaixa seus padrões de inteligência e fornece todas as informações da
vida privada para a gigantesca inteligência supra-humana corporativa.
O Filme
Tilda
Swinton é uma bio-geneticista nerd,
apropriadamente chamada Rosetta Stone, que brinca de Deus em um computador com
seus códigos ultrassecretos. Só que ao invés de criar monstros ao estilo
Frankenstein, ela cria SRAs (Autômatos Auto Replicantes): três belas mulheres
que são versões vestidas de quimono da cientista – a impertinente e sensual
Ruby; a tímida Olive; e a reprimida Marinne. Na verdade, a expressão virtual do
psiquismo conflituoso da cientista.
Elas
vivem dentro de um software cujas interfaces são, para a Internet, um site com
um design ao estilo Web 1.0. E para o mundo real, a tela de um forno de
micro-ondas na cozinha da casa de Rosetta.
Rosetta
monitora os sinais vitais das suas criações feitas a partir do seu próprio DNA.
Isso é fundamental, já que os seus clones cyborgs precisam eventualmente se
aventurar pelo mundo real (principalmente Ruby, que se materializa através do
forno de micro-ondas!) para obter o cromossomo Y na forma de sêmen humano.
Por
isso, Ruby se aventura em bares locais em busca de sexo casual para conseguir
homens “fornecedores” por meio de preservativos. O detalhe bizarro: os
preservativos se transformam em sachês de chá que mais tarde serão consumidos
pelos SRAs no mundo digital, mantendo a contagem cromossômica e a vida
artificial.
Mas
essas relações promíscuas entre o digital e o real cobra seu preço: os
“fornecedores” começam a apresentar estranhos sintomas - seus PCs começam a apresentar
falhas no disco rígido, o usuário começa a sofre de impotência e uma espécie de
código de barras começa a surgir na testa.
Dois
agentes especiais federais começam a investigar a epidemia viral: Hopper (Jamer
Urbiniak) e “Dirty Dick” (numa performance impagável da veterana Karen Black).
Rosetta Stone é detida preventivamente como suspeita, deixando seus SRAs livres
para fazer incursões clandestinas no mundo real.
E daí
os problemas irão começar: aos poucos Ruby, Olive e Marinne tornam-se
sencientes, autônomas e começam a descobrir as emoções.
Desejos Virtuais é um filme
deliciosamente estranho para cinéfilos: Um forno de micro-ondas como interface
entre o mundo real e virtual? Um chá com sachê de preservativo usado?...
Mas,
como acredita esse humilde blogueiro, todo filme é um documento histórico do
imaginário de determinada época.
Espírito, Carne, Alma e Ícone!
Após o
crash do índice Nasdaq em 2000 e a quebradeira das empresas “ponto com”, foi
necessária uma total reformulação do esquema de negócios na Internet. Nos anos
1990, empresas como Yahoo e Google tentaram começar a capitalizar
comercialmente as buscas na Web 1.0. Mas encontraram o plano de conteúdo da
web, o lado cultural, funcionando bem sem um plano de negócio. Como, então,
vincular propagandas às buscas?
Esse
cyber-imaginário, representado no filme Desejos
Virtuais, era forte o suficiente para dispensar qualquer plano comercial. Era uma cultura anticorporativa, underground,
representada pelo conflito entre a cientista Rosetta Stone e os agentes
especiais do governo.
Embora
uma paródia, Rosetta é a síntese da efervescência dessa cibercultura: o
pós-feminismo de mulheres dispensando os homens para a reprodução da espécie,
as suas linhas de diálogo ciber-religiosas altamente simbólicas: “Espírito,
carne, alma e ícone!” exclamam Rosetta e seus SRAs ao descobrirem a
possibilidade do surgimento do livre-arbítrio nas entidades digitais.
Cores e Alquimia
As
cores presente em Desejos Virtuais
são muito importantes na narrativa e correspondem a uma evidente simbologia
tecnognóstica alquímica (que ao lado da cabalística animavam o misticismo da
cibercultura) – sonho gnóstico da transcendência através da Alquimia.
O
verde luminoso de Olive como a síntese entre as Trevas e a Luz – a permanente
recomposiçãoo da vida, a cor emblemática de Vênus, patente na maçã que a deusa
ostenta. A vida ciclicamente re-gerada por elementos uranianos e telúricos
representados pela manifestação do ser.
O
vermelho mercurial de Ruby é a terra e o sangue, aquilo que implementa vida
(Ruby é quem se aventura pelos bares atrás do cromosso Y no sêmen e que infunde
no chá para servir às suas irmãs – chás com sachês de preservativos vermelhos)
e o azul de Marinne representando o céu – o retorno a Deus a partir do ritual
alquímico da Teurgia – a transcendência através da imitação de Deus ao criar
vida.
Por
tudo isso, vale à pena assistir à bizarrice de Desejos Virtuais: é uma síntese de todo o ciber-imaginário
tecno-alquímico que animava a busca da IA na velha Web 1.0. Hoje temos a vitória
do tecnognosticismo cabalístico liderado pelas grandes corporações do Vale do
Silício: a IA como nuvem digital supra-humana.
Que
promete a imortalidade através da “Singularidade”: a supra-inteligência
senciente, com auto-aprimoramento recursivo, que ultrapassaria toda
inteligência humana. Mas que potencialmente abrigaria toda individualidade em
um upload final da humanidade numa realidade virtual , controlada pelos
algorítmicos e hardwares das gigantes do Vale do Silício.
Ficha Técnica
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Título: Desejos
Virtuais (Teknolust)
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Diretor: Lynn Hershman-Leeson
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Roteiro: Lynn
Hershman-Leeson
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Elenco: Tilda
Swinton, Jeremy Davies, James Urbaniak, Karen Black
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Produção: Blue Turtle,
Epiphany Productions
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Distribuição: THINKFilm
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Ano: 2002
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País: EUA
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