Aos 50 anos do
golpe militar de 1964 é necessário revisitarmos o documentário “Muito Além do
Cidadão Kane” (Beyond Citizen Kane, 1993), dirigido por Simon Hartog para o
Channel Four da Inglaterra. A Globo venceu na justiça e o filme foi banido do
País, mas acabou assistido e debatido nos meios universitário e acadêmico. Tornou-se
um documento fundamental para conhecermos o Brasil e a nossa TV. Ficou famoso
internacionalmente pelas suas denúncias sobre as manipulações do telejornalismo
da Globo e o favorecimento econômico da emissora de Roberto Marinho desde o
início do regime militar. Mas o documentário de Hartog diz mais, que só o olhar
de um estrangeiro poderia ver: os detalhes que contribuíram para a Globo formar
a primeira rede de TV do país, capaz de criar um conteúdo tão genérico que
passou por cima da diversidade cultural e regional brasileira. “A estranha
combinação” do entretenimento dominical, a TV em cores e o projeto de
modernidade e integração nacional dos militares e o condicionamento da vinheta
do plim-plim e da linguagem do globês que alterou a identidade idiomática do
brasileiro.
Às vésperas dos 50
anos do golpe militar de 1964, é oportuno fazermos uma revisita ao lendário
documentário televisivo britânico Muito
Além do Cidadão Kane. Produzido e distribuído pelo canal privado Channel
Four em 1993 e dirigido por Simon Hartog, o documentário foca as relações entre
a grande mídia e o poder no Brasil e detalha a posição monopolista da rede
Globo que cresceu à sombra do regime militar. Analisa a figura do proprietário
Roberto Marinho, suas relações políticas com o Estado (aproximando-o do
personagem Charles Foster Kane, personagem criado por Orson Welles para o filme
Cidadão Kane de 1941) e o poder da
emissora em formar e manipular a opinião pública.
A ideia da
produção do documentário surgiu quando Hartog visitou o Brasil nos anos 80 e
ficou impressionado com o império midiático da Globo, Roberto Marinho e o seu
pragmatismo político. Hartog fazia parte
de um grupo de cineastas de esquerda da London Coop. Antes de produzir Muito Além do Cidadão Kane ele já havia
realizado Brazil: Cinema, Sex and the
Generals (1985) sobre o papel político das pornochanchadas na época do regime
militar. Para os amigos, Hartog confidenciava a surpresa pelos brasileiros até
então nunca terem feito um documentário sobre o poder da Globo.
Muito Além do Cidadão Kane ficou famoso nos meios universitários e acadêmicos pelas denúncias de
manipulação das notícias (o desprezo pelas “Diretas Já”, a manipulação da
edição do debate entre Collor e Lula em 1989 etc.) e por descrever
didaticamente as relações simbióticas entre os interesses econômicos da Rede
Globo e os políticos da ditadura militar (1964-1985).
Sem falar as
batalhas judiciais que envolveram o documentário, começando no Reino Unido que
fizeram adiar em um ano o seu lançamento: a Rede Globo contestou a produção do
Channel Four devido ao uso de fragmentos da programação da emissora. E o
banimento no Brasil com apreensões de cópias no MAM/RJ e no Museu da Imagem e
do Som de São Paulo em 1994.
Revisitando Muito Além do Cidadão Kane percebemos
que Simon Hartog quis dizer muito mais: seu olhar de um estrangeiro originário
do Reino Unido onde a maior emissora (a BBC) possui controle público revela o
espanto ao ver um país onde a maior emissora é privada e que não só cresceu
fora do controle do Estado como também interferiu em momentos cruciais da
história política nacional.
Os fatores
determinantes políticos (o acobertamento pelos militares das origens ilegais da
emissora com o acordo Globo/Time-Life em 1967 e a liberalidade com que foi
tratado os negócios da Globo durante o regime militar), econômicos (a
concentração do mercado publicitário na TV) e pessoais (a origem familiar de
Roberto Marinho estava no jornalismo) apenas explicam parcialmente o sucesso de
uma emissora que entrou na adolescência do mercado televisivo brasileiro e
deu-lhe um novo rumo.
As bases imaginárias da construção de uma rede
"Olimpíadas do Faustão" e "Fantástico": a "estranha combinação no lazer do domingo. Uma das chaves da construção de uma rede nacional de TV |
O que caiu como
uma luva no projeto do regime militar de integração nacional através da
unificação cultural e a construção de um ideal de modernidade onde a televisão
colorida teria um papel-chave.
O documentário de
Hartog inicia mostrando os números do monopólio da Rede Globo: números de emissoras
afiliadas, alcance no território nacional e concentração das verbas
publicitárias. Colocados esses números o documentário inicia a investigação do
por que desses números impressionantes.
E não é por acaso
que dá destaque ao conteúdo da programação dominical com as “olimpíadas
bobocas” do Faustão e o “carro-chefe” do Fantástico em um “domingo típico com
uma estranha combinação de elementos” – o mix de notícias policiais sobre
estupradores, musicais, Disneyworld e matérias sobre as próprias telenovelas da
Globo. Ao mesmo tempo mostra como “a Publicidade era melhor que o País” ao oferecer
nos intervalos publicitários produtos e serviços que a maioria dos brasileiros
não podiam consumir.
Simon Hartog toca
no ponto nevrálgico do sucesso da integração nacional por meio da construção
gigantesca rede de televisão: em pleno regime de exceção, AI-5 e censura, a
popularização da TV dava às pessoas uma impressão de igualdade, uma aparente
socialização integral, sem barreiras e liberdade em pleno espaço privado da
sala de jantar. E o domingo com o show de variedades numa “estranha combinação”
reforçava essa impressão de variedade e liberdade de oferta de conteúdos.
Maria Rita Kehl no documentário: a repetição do mito do "self made man" nas novelas da Globo |
Mas essa ilusão de
participação através da TV enfrentava duas grandes dificuldades: uma de
natureza técnica e outra cultural.
O efeito comportamental do “plim-plim”
Como o
documentário destaca, em 1969 a Embratel acabara de inaugurar o sistema de
microondas que permitiria à Globo emitir sinais simultâneos para Rio de
Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. Eram as condições técnicas que
permitiram a Globo lançar o Jornal Nacional, o primeiro telejornal brasileiro
em rede. Mas, ao longo do tempo, a emissora enfrentou o problema técnico de
sincronização das afiliadas: todas deveriam sair simultaneamente dos intervalos
publicitários para a exibição do sinal emitido da matriz no Rio de Janeiro.
A solução técnica
foi a famosa vinheta do “plim-plim” para avisar as afiliadas quando haveriam
intervalos, e com isso todas estariam sincronizadas. Em 1971 José Bonifácio, o
“Boni”, encomendou a vinheta que foi implantada durante o Festival
Internacional da Canção. Boni queria um som que pudesse ser ouvido a quadras de
distâncias para fazer a família voltar para diante da TV – o documentário
relata que os telespectadores “salivavam” ao ouvir o som do “plim-plim” criado pelo austríaco Hans
Donner.
Mas ao longo dos
anos 1970 publicitários e profissionais de mídia começaram a perceber que a
sonora vinheta, tornada ainda mais marcante com a remodelagem de Hans Donner em
1975, estava dificultando a recepção dos intervalos publicitários do horário
mais caro da emissora. Simplesmente o sinal transformou-se num comando
comportamental para os espectadores se levantarem, irem para qualquer cômodo da
casa para retornarem depois do novo “plimplim”.
Sob um regime
militar de censura e repressão política, sabendo-se que a TV Globo e Roberto
Marinho tinham ótimas relações com os presidentes generais, tal percepção ficou
restrita a boca pequena ajudando a manter os altos valores de inserção no
horário nobre, vital para o crescimento da rede.
O outro fator foi
o cultural: a grande extensão territorial do País e diversidade de hábitos,
gostos que faziam parte da história da população regional. Como o documentário
destaca, ovideotape já havia acabado com as programas ao vivo e a produção
local, facilitando a centralização da nova rede. Mas a diversidade cultural
brasileira era uma barreira para estabelecer a fusão da identidade nacional com
o mercado meritocrático publicitário.
O pesquisador
Renato Ortiz dá o exemplo dos estados do tradicionalismo de estados como o Rio
Grande do Sul e Minas Gerais. Por exemplo, o interior gaúcho ainda possuía
emissoras locais que se desenvolveram antes da fase da “integração nacional”,
mantendo uma cultura tradicionalista que seria uma óbvia barreira de uma
programação em rede. A solução foi o “toque” local a partir da construção da
figura do “gaúcho”, da “mineiridade” e assim por diante, principalmente por
meio dos personagens de telenovelas. As antigas identidades locais (hoje
inviáveis em face das transformações sociais e do cosmopolitismo da sociedade
de massas) foram como que desmontadas para depois serem reconstruídas por meio
da culinária, arquitetura e “tradição” (no sentido museológico do folclore).
Do português ao “globês”
Mas o elemento
decisivo da “integração nacional” (identidade nacional + mercado publicitário)
foi a criação de uma arquinorma linguística, aquilo que o publicitário
Washington Olivetto declara no documentário de que “o brasileiro em certo
momento deixou de falar o português para falar o ‘globês’”.
Washington Olivetto: do português ao globês |
Muitos
pesquisadores na área de Fonética e Fonoaudiologia estudam como a TV Globo
criou uma arquinorma televisiva irradiada como, por exemplo, a limitação da
pronúncia de vogais pretônicas e neutralizações de traços opositivos vocálicos
aberto/fechado. Segundo a pesquisadora Regina Silveira , “as bases da pronúncia
da arquinorma televisiva da Globo constroem, para seus telespectadores, representações
mentais sonoras-tipo que ficam armazenadas em suas memórias de longo prazo,
social” (veja SILVEIRA, Regina Célia P. “A Questão da
Identidade Idiomática: a pronúncia da vogais pretônicas na variedadepadrão do
português brasileiro”).
Essa arquinorma
passou a ser aceita pelo seu prestígio não tanto por ser “norma culta”, mas
pela marca do simbolismo da modernidade dentro do projeto ideológico dos
militares no qual a necessidade do monopólio Rede Globo estava inserido.
Embora seja uma
produção de 1993, Muito Além do Cidadão Kane
continua atual: embora o sistema político tenha se democratizado, o sistema
midiático continua com a mesma estrutura idealizada pelo regime militar. Quando
veremos a produção de Simon Hartog como um documento histórico de uma época que
passou?
Ficha Técnica |
Título: Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane)
|
Direção: Simon Hartog
|
Roteiro: Simon Hartog
|
Elenco: Leonel Brizola, Walter Clark, Chico Buarque de Hollanda, Dias
Gomes, Lula, Washington Olivetto, Armando Nogueira
|
Produção: Channel Four
|
Distribuição: Channel Four
|
Ano: 1993
|
País: Reino Unido
|
Postagens Relacionadas |