Se Jesus
ressuscitou Lázaro não para esse mundo, mas para a vida eterna, a Ciência
promete realizar esse milagre literalmente – clonagem, bioengenharia e
implantes biônicos ressuscitando humanos em estado criogênico. No filme
“Proyecto Lázaro” (2016), co-produção Espanha-França dirigida por Mateo Gil, um
jovem publicitário no auge do sucesso profissional, financeiro e amoroso,
descobre que está com um câncer em estado terminal, sobrando pouco tempo de
vida. Opta pela criogenia para ser ressuscitado 60 anos depois em um mundo bem
diferente, porém a realização do ideário da atual geração millenials: a religião ou
qualquer significado espiritual para a vida e a morte foram substituídos pela
Publicidade, marketing e Ciência. Mas o protagonista descobrirá da pior forma
possível que o drama da criatura do Dr. Frankenstein (ao qual foi negado o
direito de morrer) repete-se agora com ele. E que os velhos cientistas loucos
foram substituídos por corporações, acionistas e investidores. Filme sugerido
pelo nosso leitor Felipe Resende.
Os teólogos chamam a ressureição de Lázaro
descrita no livro bíblico de João como “o milagre essencial” de Jesus – dar a
vida em troca da sua própria morte. Mas, o que Lazaro deve ter sentido ao ser
retirado abruptamente da morte? Certamente confuso como se pudesse cheirar o
seu próprio apodrecimento. Talvez até odiasse Jesus por ter lhe devolvido a
vida.
Esse é o leitmotiv
do filme Proyecto Lázaro (2016) do
roteirista e diretor espanhol Mateo Gil (roteirista de Mar Adentro e Abre Los Ojos
– o original de Vanilla Sky), uma
fria e minimalista ficção científica que lembra bastante o espírito e estética
da cultuada série Black Mirror sobre
os impactos políticos, éticos e existenciais do desenvolvimento tecnológico.
Essa reflexão sobre o ponto de vista de Lazaro
no milagre de Jesus é feita pelo próprio protagonista ao lembrar da sequência
da ressureição do filme A Última Tentação
de Cristo (1989) de Martin Scorsese – sendo que o próprio protagonista será
objeto de uma ressureição 60 anos depois da sua criogenização.
Mas dessa vez, não mais um milagre religioso,
mas o produto dos esforços de um cientista por trás de uma grande corporação
médica bancada por acionistas e patrocinadores das altas esferas empresariais e
financeiras.
O tema das relações entre a vida e a morte já
foram inúmeras vezes abordadas pelo cinema em diferentes gêneros. Por isso,
Proyecto Lázaro aparentemente parece ser mais do mesmo: mais uma releitura
sobre a mitologia do cientista louco, os desvarios da ética na Ciência e o
drama de Frankenstein, um monstro ao qual foi negado o direito de morrer.
Vida eterna e ressurreição
Mas Mateo Gil aborda o tema da ressurreição e
vida eterna sob uma nova perspectiva fílmica e gnóstica: o homem anseia a vida
eterna e a ressurreição – mas quem disse que necessariamente isso deveria
acontecer nesse plano material em que vivemos?
Colocado em outros termos: se a descrição
bíblica do apóstolo João sobre a ressurreição de Lázaro foi muito mais uma
parábola sobre a vida eterna espiritual (“quem crê em mim, ainda que esteja
morto, viverá”), quando a religião é substituída pela Ciência as metáforas e
parábolas cessam e tudo passa a ser traduzido na sua literalidade – a morte
deixa de ter sentido e a “vida eterna” passa a ser interpretada como a
sobrevivência da própria carne. Ou a manutenção da alma ou consciência em
“suportes” transferíveis – HDs, servo-mecanismos, clones etc.
Isso significa que a Ciência quer realizar na
sua literalidade todos os milagres divinos bíblicos – ressureições,
transubstanciações, vida eterna, cura etc. atropelando qualquer barreira ética,
moral ou espiritual. Os interesses corporativos e políticos que sustentam a
Ciência ainda poderá nos aprisionar a todos esses “milagres”, negando até o
direito da decisão individual sobre a vida e a morte.
E ainda Proyecto
Lázaro vai mais além: se a Ciência é apenas uma ferramenta, qual é a
verdadeira religião contemporânea que nos dá esperança na realização dos
milagres prometidos? Para Mateo Gil, a nova religião é a Publicidade e a
sociedade de consumo!
O Filme
Situado em um imenso complexo médico no ano
de 2084 e na cidade de Los Angeles em 2015, a narrativa constantemente salta
para trás e para frente entre os dois períodos, acompanhando o protagonista
Marc Jarvis (Tom Hughes) um arrojado e criativo publicitário.
Dono de uma agência, aos 35 anos ele vive o
auge do sucesso profissional, financeiro, nos relacionamentos sociais e afetivos
– Marc finalmente engrenou um relacionamento com Naomi (Oona Chaplin), uma
antiga namorada dos tempos da escola. Tudo vai bem, até descobrir que tem um
câncer na garganta em estado terminal. Marc só tem pouco mais de um ano de
vida.
Toda a estória é narrada em of pelo próprio Marc, no futuro, após
todos os incidentes de 2015 e 2085. Parece que o protagonista aprendeu uma
grande lição sobre a vida e a morte, depois de todos os dramas que
acompanharemos no filme.
Naomi decide passar os últimas dias ao lado
de Marc até a morte. Porém, ele não consegue conformar-se com o seu destino e
perder tudo o que conquistou ainda tão jovem. Decide se matar antes do câncer
devastar seu corpo, para, com a ajuda de Naomi, ser criogenizado e no futuro
ser ressuscitado e reencontrar-se com Naomi – Marc crê que o sucesso das
técnicas de ressuscitação são eminentes e que logo voltará a tudo que teme
perder.
Em 2085, Marc se torna o primeiro sucesso
após uma série de tentativas fracassadas com efeitos colaterais terríveis (numa
sequência perturbadora) – um processo de ressuscitação complexo que envolveu,
além o escaneamento de todas as suas memórias, a substituição de grande parte
do seu corpo por órgão clonados, músculos e esqueleto desenvolvidos por bioengenharia
e peças robóticas.
Marc acorda tão confuso como o próprio Lázaro
bíblico, imerso em dor, medo e uma quantidade imensa de tranquilizantes e
inúmeros medicamentos, além de uma espécie de cordão umbilical que o liga a uma
máquina que o alimenta e monitora.
A corporação médica chama-se Prodigy, comandada
pelo cientista Dr. West (Barry Ward), ansioso em apresentar para a mídia,
acionistas e investidores o sucesso médico da sua empresa. Como sempre, o
discurso de West é altruísta (“conquista da humanidade”, “vencer a doença e a
morte” etc.), mas as suas ambições são bem imediatas: conquistar ainda mais
investidores e verbas.
Frankenstein do século XXI
Seu principal inimigo são os questionamentos
éticos e morais da opinião pública – se Marc se tornar um sucesso
inquestionável e ser apresentado de forma triunfal pela corporação Prodigy,
finalmente West romperá os limites ético-morais que o fazem continuar
secretamente a pesquisa, como um verdadeiro Dr. Frankenstein do final do século
XXI.
Mas todo o seu projeto poderá vir abaixo se a
opinião pública souber que por trás do sucesso da ressurreição de Marc há um
rastro de cobaias humanas mortas de forma cruel.
Proyecto Lázaro tem um duplo viés sobre o
tema da vida e da morte: geracional e gnóstico.
Marc Jarvis
é um típico protagonista da geração millenial ou a chamada geração Y, movido
pela necessidade de uma busca constante de realização indefinida. Uma sede por
experiências que obrigam a querer estar em todos os lugares (o futuro), exceto
onde realmente se está – o presente.
Uma espécie
de patologia temporal que o italiano Giacomo Marramao chama de “descarrilamento
emocional”: não se trata mais de viver intensamente os momentos de forma
irresponsável, mas de atrofiar a experiência do presente para viver uma
hipertrofia de expectativas futuras. Esse descarrilamento emocional de se
projetar continuamente no futuro conduz a patologia da melancolia: a sensação
de estar sempre chegando demasiadamente tarde ao encontro com a vida – leia
MARRAMAO, Giacomo. Kairós – Apologia del
Tiempo Oportuno, Ed. Gedisa, 2002.
Ao invés de viver seu últimos momentos
com a mulher amada aproveitando o presente, trocou isso por uma hipertrofia de
expectativas futuras.
Porém esse descarrilamento emocional
esconde uma miséria espiritual: a perda
de qualquer significado na morte, seja religioso, filosófico ou espiritualista.
Com o fim de toda e qualquer metafísica,
substituída pelo céu como a vitrine congelada da Publicidade e sociedade de
consumo, a morte torna-se nada mais do que o término do mundo jovem midiático.
A Publicidade torna-se a nova religião que promete prazeres eternamente
disponíveis. E a Ciência seu instrumento.
Se Jesus ressuscitava os mortos para a
vida eterna espiritual, agora a Publicidade aliada à Ciência prometem a vida
eterna aqui e agora através de clones, bioengenharia e o sonho tecnognóstico:
escanear a mente, fazer um upload
final para o céu digital no qual sua consciência reviverá suas memórias ad infinitum em diferentes “suportes”.
Mas, cedo ou tarde, Marc Jarvis
descobrirá da pior maneira possível que a vida eterna prometida pela Ciência é
uma perigosa armadilha que acaba confirmando a cilada cósmica na qual estamos
metidos, segundo o Gnosticismo: a morte não é uma fuga desse mundo, mas apenas
o salto para uma nova reencarnação, o esquecimento e o renascimento num
infernal eterno retorno.
Nesse sentido, Proyecto Lázaro atualiza o tema do drama da criatura do Dr. Frankenstein:
a Ciência roubando do homem o direito de morrer e também desaparecer desse
cosmos material. Só que no século XXI o cientista louco é substituído por
corporações, acionistas e investidores.
Ficha Técnica
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Título: Proyecto Lázaro
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Diretor: Mateo Gil
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Roteiro: Mateo Gil
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Elenco: Tom
Hughes, Charlotte Le Bon, Oona Chaplin, Barry Ward, Julio Perillán
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Produção: Arcadia Motion Pictures, Noodles Production, Televisión Española
(TVE), Achaman Films
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Distribuição: Filmax
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Ano: 2016
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País: Espanha, França
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