Comer não é
apenas para o estômago. Junto com o alimento também ingerimos mitologias - conotações,
simbolismos, narrativas, retórica etc. Como um sismógrafo, as mitologias dos
alimentos mudam ao sabor dos contextos sociais e políticos de cada época. Dos
velhos programas culinários da Ofélia e Etty Fraser que celebravam a mulher
como o esteio da família, passando pelas receitas combinadas com fofocas de
celebridades, até chegarmos na complexa mitologia atual: o raio gourmetizador
da “simplicidade descolada” na TV fechada (o ingrediente “sustentável”,
restaurantes “despretensiosos”, a religião do Food Truck e o requinte da
“comida de rua”) e os programas culinários que viraram reality shows
gastronômicos na TV aberta com chibatadas de meritocracia anestesiadas pelo
sonho do empreendedorismo para as massas. Uma mitologia que se tornou
engrenagem importante na atual guerra híbrida que resulta em golpes políticos e
“reformas” socadas goela abaixo. Dois irradiadores dessa “nouvelle mythologie”:
Rodrigo Hilbert e MasterChef.
Quando comemos não ingerimos apenas
vitaminas, calorias, proteínas e carboidratos para o corpo. Também junto com
tudo isso devoramos conotações, simbolismos, signos e todo um conjunto de
ingredientes linguísticos que forma a mitologia alimentar que diariamente nutre
corações e mentes.
Essa
mitologia é mutante, quase como um sismógrafo que aponta os movimentos sociais,
políticos e ideológicos de cada época.
Por exemplo, durante o período dos problemas
coloniais da França na década de 1950 (a perda da Indochina e a guerra de
independência da Argélia), o semiólogo francês Roland Barthes percebeu nas
revistas daquele país a mitologização patriótica de alimentos como o leite
(“bebida-totem”, assim como as 360 espécies de queijos e sua cultura), o vinho
(fundamento de uma moral coletiva e “virilidade natural” dos franceses), o filé
com fritas (símbolo francês da luta nacional contra a invasão dos steaks norte-americanos) e a “cozinha
ornamental” das revistas semanais que elaboravam pratos como objetos que
enalteciam as fantasias pequeno burguesas nacionais - leia BARTHES, Roland. Mitologias, Difel, 1980.
Hoje, aqui no Brasil, o sismógrafo alimentar
(as variações das conotações alimentares) reflete grandes picos de frequência e
ritmos complexos: gourmetização (a simplicidade popular combinada com
sofisticação hip), simplicidade descolada, chefes necessariamente tatuados,
produtos fetichizados e bares, restaurantes ou food trucks com um visual bruto ou estudadamente despretensioso e
muitos, muitos programas realiy show nas quais cozinheiros amadores enfrentam
tensas provas contra o relógio.
O grau zero da
culinária
Mas nem sempre foi assim. No passado, a
palavra “gastronomia” passava longe dos “programas culinários” da TV como o da
Ofélia (cujo programa, na Band até 1998, confunde-se com a própria história da
TV brasileira) e o da atriz renomada de teatro e da extinta TV Tupi Etty Fraser
– não era cozinheira, mas ganhou o rótulo por honoris causa em programas como Na
Boca do Forno e A Moda da Casa.
Comparados com os atuais, pareciam o grau zero
da culinária – apresentavam apenas a receita: ingredientes, preparo e
resultado. Mas construíam a cada programa a mitologia do papel da mulher em uma
ordem patriarcal – esteio da família, a comida como agregadora do lar, a
importância do prato bem feito à espera da volta do marido para casa depois de
um dia de trabalho.
Da rainha do lar à bonachona mama italiana, como simbolizava Etty
Fraser, conotava-se os alimentos em tempos conservadores da ditadura militar
brasileira – o fortalecimento da família em tempos difíceis através de pratos
deliciosos.
Tanto é verdade esta urgência da função
ideológica que nesses programas nem era discutido o produto, a procedência dos
ingredientes ou a natureza saudável ou não, processada ou natural dos
componentes – obsessão-fetiche nos programas atuais. O que importava era o
resultado – uma receita deliciosa que pegaria os mais recalcitrantes pelo
estômago.
Com a entrada na década de 1990, os “programas
culinários” foram ressignificados e a mitologia à mesa atualizada. Com a mulher
no mercado de trabalho e os papéis maternos em constantes permutas com o homem,
os alimentos perderam aquela função de esteio da família.
Da culinária à
guerra híbrida
Nessa época, as receitas culinárias se mesclavam
com mexericos de celebridades e fofocas da TV no seminal Note e Anote com Ana Maria Braga na TV Record. Mesmo assim, ainda
necessitava do estofo, da nostalgia da velha mitologia – Palmirinha Onofre tornou-se
colaboradora com o ar de vovó do interior, ensinando didaticamente o
passo-a-passo das receitas. Quase o grau zero da culinária, não fosse a sua
função semiótica secundária de suprir com um pouco do lastro da nostalgia
familiar as frívolas pautas de beleza, fofocas e estética.
Porém, os tempos de trégua acabaram. Da
tranquila rotina entre as pautas neutras dos programas matinais, hoje a
mitologia dos alimentos foi convocada para a militância da chamada “guerra
híbrida” – desestabilização e golpes sobre governos para impor a agenda das
reformas trabalhistas e de todos os direitos assistenciais, exigidas pela banca financeira, os
verdadeiros credores de toda a sociedade.
Desde que a apresentadora Ana Maria Braga
usou um colar de tomates (metáfora tosca para alertar para um suposto
descontrole inflacionário do legume – ou será fruto?) para apresentar novas
receitas ao distinto público, a mitologia alimentar foi convocada para a guerra
semiótica.
O primeiro movimento foi o que se chamou
jocosamente de “raio gourmetizador” no contexto de político brasileiro de
polarização e radicalização ideológica – enquanto a chamada “Classe C” ascendia
ao consumo, shopping e aeroportos, o tradicional “coxinha” (aquele com
camisetas polo Lacoste dos anos 1990) era substituído por uma versão 2.0: o
“simples descolado”, figura
autossustentável, preocupado com a agenda eco-planetária e querendo parecer
politicamente engajado no contexto dos protestos de rua.
Uma nova mitologia alimentar
foi criada: da pipoca ao
churrasco, do chocolate à agua mineral, tudo passou a ter uma versão gourmet
exclusiva. O antigo carrinho de “dogão” prensado ou do x-tudo agora virou um food truck sofisticado. Até o carvão
virou gourmet – não faz fumaça e é ecologicamente correto e ideais para
“varandas gourmet”, onde as linguiças igualmente gourmet também “harmonizam-se”
com cervejas compradas de alguma empresa que adquiriu um kit de fabricação
artesanal de cerveja de alguma startup.
Uma
resposta simbólica para a invasão das hordas bárbaras aos templos de consumo:
transformar o “simples” e o “popular” em algo descolado ao criar uma nova mitologia
urbana: o ingrediente “sustentável”, restaurantes
“despretensiosos”, a religião do Food Truck e o requinte da “comida de rua”.
Fim da liturgia culinária
Enquanto
isso, na TV aberta o segundo movimento: a culinária vira gastronomia e a
liturgia do passo-a-passo das receitas trocada pela adrenalina de cozinheiros
amadores em reality shows como MasterChef.
Ao vencedor, a chance de se tornar empreendedor.
Na
TV aberta a gourmetização para as massas,
um propósito essencialmente disciplinar e ideológico: aos aspirantes à
gourmetização, futura mão de obra de empreendedores que trabalharão para a
elite, chibatadas do ideário meritocrático. E nos momentos atuais de crise, a
esperança do empreendedorismo – o sonho de alcançar aquele momento mágico no
qual a força de trabalho se transmutará em capital...
E na TV fechada a gourmetização para a elite: programas de
chefs e celebridades que de repente se
transformaram em guardiões de uma suposta simplicidade da culinária popular
perdida – o “rústico”, o “artesanal”, a comida “de raiz”. Legítimo porque
“sustentável”.
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Hilbert faz uma tábua de madeira para sua cozinha |
Gourmetização
para a elite – o caso Rodrigo Hilbert
O modelo, ator e figurinha
carimbada nas festas cobertas pelas revistas sobre a vida das celebridades começou
como o melhor exemplo dessa simplicidade descolada. No programa Tempero de
Família no canal fechado GNT Hilbert maneja panelas de ferro, fogões a lenha e
churrascos de fogo de chão para por em prática as receitas da sua infância no
interior de Santa Catarina. Receitas da sua avô, diz o apresentador, devoto da
“simplicidade” da cozinha brasileira.
“Comidinhas”, ressalta – o
diminutivo é importante nessa simplicidade estudada. Assim como “bistrozinho”,
no léxico desse novo espécime urbano.
Não satisfeito, sua
simplicidade descolada tornou-se mais, por assim dizer, roots: ele mesmo passou
a confeccionar suas próprias grelhas, churrasqueiras, fogões rústicos,
empunhando solda e máscara – da gastronomia à metalurgia e até marcenaria. Sim,
simples descolados podem fazer o que operários também fazem...
Atualmente, Hilbert vai além
na missão civilizatória de um membro da elite midiática resgatar a simplicidade
esquecida por um povo que quis abandonar suas raízes para ingressar no
consumismo da Era Lula.
Hilbert transcendeu Santa
Catarina e partiu para o Nordeste em insólitos programas nos quais adota um
sotaque nordestino de telenovelas globais e “ensina” a fazer bode no buraco,
buchada de bode, doce de xique-xique, marisqueiras de acaú entre outros.
O insólito é que o
apresentador transforma as cozinheiras locais em espectadoras – tão insólito
como se um brasileiro colocasse sentados mestres queijeiros franceses de
produtos como camembert ou brie para assisti-lo dando lições...
É constrangedor ver em
um dos programas mulheres paraibanas assistindo ao ariano Hilbert servindo para
elas seus próprios pratos seculares.
Há aqui uma mitologia: o Sul
civilizado vai ao Nordeste para aculturá-lo. Este só passa a existir inserido
nos códigos da simplicidade descolada do Sul urbano-midiático – a busca do
produto “sustentável”, a simplicidade cenograficamente composta, etc. Hilbert
assume o papel do antropólogo europeu que vai até as terras exóticas para
“descobri-las” – sem terem a oportunidade de serem “descobertas”, jamais existiriam.
Assim como no programa Que Marravilha!, também do GNT, do chef
francês radicado no Brasil (mas que não perde o sotaque porque, afinal, faz
parte da grife) Claude Troisgros no qual
o fiel ajudante, o paraibano Batista Barbosa (egresso dos morros do Rio de
Janeiro), assume o papel do “bom selvagem”. Aquele que foi aculturado e
civilizado por um chef francês representante da civilização europeia.
Gourmetização
para as massas – o caso MasterChef
Se a mitologia dos alimentos
no GNT é o resgate do “simples” e do “popular” (como o Cozinha Prática da ex-modelo Rita Lobo) como signo de distinção
para as classes medias, nos canais abertos curiosamente temos uma inversão:
cozinheiros amadores são desafiados em reality shows a fazer pratos complexos
sob os olhares rigorosos de chefs consagrados – ovos nevados, carpaccio de
vieira, salada de king crab com creme fraiche, entre outros “quitutes”.
Mais que rigorosos – intimidam,
usam o tom agressivo, olhares fixos e graves para as bancadas dos candidatos.
São chibatadas de meritocracia para as massas (no sentido sociológico, claro): resignação, como nas
dinâmicas de grupo sem sentido nos processos seletivos corporativos.
Humilhação
como educação na suposta dureza da vida, lição de vida da moralidade meritocrática.
Lições de empreendedorismo e meritocracia através de um verdadeiro bullying gastronômico.
No MasterChef não temos tão
presente a sustentabilidade dos produtos – marca do simples descolado, cujo signo de distinção é a divulgação de parcerias com “pequenos produtores” e “cooperativas” cuja
aura magnetiza os gourmets urbanos.
Ao contrário, no MasterChef estão onipresentes grandes marcas de
supermercados e frigoríficos.
Tudo muito corporativo.
Afinal, no reality show forma-se a mão de obra que servirá as elites, além de
iludir os espectadores com a alquimia neoliberal: a promessa da transmutação da
força de trabalho em capital, denominada “empreendedorismo”.