sábado, agosto 05, 2017

A nova mitologia gastronômica com Rodrigo Hilbert e MasterChef




Comer não é apenas para o estômago. Junto com o alimento também ingerimos mitologias - conotações, simbolismos, narrativas, retórica etc. Como um sismógrafo, as mitologias dos alimentos mudam ao sabor dos contextos sociais e políticos de cada época. Dos velhos programas culinários da Ofélia e Etty Fraser que celebravam a mulher como o esteio da família, passando pelas receitas combinadas com fofocas de celebridades, até chegarmos na complexa mitologia atual: o raio gourmetizador da “simplicidade descolada” na TV fechada (o ingrediente “sustentável”, restaurantes “despretensiosos”, a religião do Food Truck e o requinte da “comida de rua”) e os programas culinários que viraram reality shows gastronômicos na TV aberta com chibatadas de meritocracia anestesiadas pelo sonho do empreendedorismo para as massas. Uma mitologia que se tornou engrenagem importante na atual guerra híbrida que resulta em golpes políticos e “reformas” socadas goela abaixo. Dois irradiadores dessa “nouvelle mythologie”: Rodrigo Hilbert e MasterChef.

Quando comemos não ingerimos apenas vitaminas, calorias, proteínas e carboidratos para o corpo. Também junto com tudo isso devoramos conotações, simbolismos, signos e todo um conjunto de ingredientes linguísticos que forma a mitologia alimentar que diariamente nutre corações e mentes.

 Essa mitologia é mutante, quase como um sismógrafo que aponta os movimentos sociais, políticos e ideológicos de cada época.

Por exemplo, durante o período dos problemas coloniais da França na década de 1950 (a perda da Indochina e a guerra de independência da Argélia), o semiólogo francês Roland Barthes percebeu nas revistas daquele país a mitologização patriótica de alimentos como o leite (“bebida-totem”, assim como as 360 espécies de queijos e sua cultura), o vinho (fundamento de uma moral coletiva e “virilidade natural” dos franceses), o filé com fritas (símbolo francês da luta nacional contra a invasão dos steaks norte-americanos) e a “cozinha ornamental” das revistas semanais que elaboravam pratos como objetos que enalteciam as fantasias pequeno burguesas nacionais - leia BARTHES, Roland. Mitologias, Difel, 1980.


Hoje, aqui no Brasil, o sismógrafo alimentar (as variações das conotações alimentares) reflete grandes picos de frequência e ritmos complexos: gourmetização (a simplicidade popular combinada com sofisticação hip), simplicidade descolada, chefes necessariamente tatuados, produtos fetichizados e bares, restaurantes ou food trucks com um visual bruto ou estudadamente despretensioso e muitos, muitos programas realiy show nas quais cozinheiros amadores enfrentam tensas provas contra o relógio.

O grau zero da culinária


Mas nem sempre foi assim. No passado, a palavra “gastronomia” passava longe dos “programas culinários” da TV como o da Ofélia (cujo programa, na Band até 1998, confunde-se com a própria história da TV brasileira) e o da atriz renomada de teatro e da extinta TV Tupi Etty Fraser – não era cozinheira, mas ganhou o rótulo por honoris causa em programas como Na Boca do Forno e A Moda da Casa.

  Comparados com os atuais, pareciam o grau zero da culinária – apresentavam apenas a receita: ingredientes, preparo e resultado. Mas construíam a cada programa a mitologia do papel da mulher em uma ordem patriarcal – esteio da família, a comida como agregadora do lar, a importância do prato bem feito à espera da volta do marido para casa depois de um dia de trabalho.

Da rainha do lar à bonachona mama italiana, como simbolizava Etty Fraser, conotava-se os alimentos em tempos conservadores da ditadura militar brasileira – o fortalecimento da família em tempos difíceis através de pratos deliciosos.


Tanto é verdade esta urgência da função ideológica que nesses programas nem era discutido o produto, a procedência dos ingredientes ou a natureza saudável ou não, processada ou natural dos componentes – obsessão-fetiche nos programas atuais. O que importava era o resultado – uma receita deliciosa que pegaria os mais recalcitrantes pelo estômago.

Com a entrada na década de 1990, os “programas culinários” foram ressignificados e a mitologia à mesa atualizada. Com a mulher no mercado de trabalho e os papéis maternos em constantes permutas com o homem, os alimentos perderam aquela função de esteio da família.

Da culinária à guerra híbrida


Nessa época, as receitas culinárias se mesclavam com mexericos de celebridades e fofocas da TV no seminal Note e Anote com Ana Maria Braga na TV Record. Mesmo assim, ainda necessitava do estofo, da nostalgia da velha mitologia – Palmirinha Onofre tornou-se colaboradora com o ar de vovó do interior, ensinando didaticamente o passo-a-passo das receitas. Quase o grau zero da culinária, não fosse a sua função semiótica secundária de suprir com um pouco do lastro da nostalgia familiar as frívolas pautas de beleza, fofocas e estética. 

Porém, os tempos de trégua acabaram. Da tranquila rotina entre as pautas neutras dos programas matinais, hoje a mitologia dos alimentos foi convocada para a militância da chamada “guerra híbrida” – desestabilização e golpes sobre governos para impor a agenda das reformas trabalhistas e de todos os direitos assistenciais,  exigidas pela banca financeira, os verdadeiros credores de toda a sociedade.

Desde que a apresentadora Ana Maria Braga usou um colar de tomates (metáfora tosca para alertar para um suposto descontrole inflacionário do legume – ou será fruto?) para apresentar novas receitas ao distinto público, a mitologia alimentar foi convocada para a guerra semiótica.


O primeiro movimento foi o que se chamou jocosamente de “raio gourmetizador” no contexto de político brasileiro de polarização e radicalização ideológica – enquanto a chamada “Classe C” ascendia ao consumo, shopping e aeroportos, o tradicional “coxinha” (aquele com camisetas polo Lacoste dos anos 1990) era substituído por uma versão 2.0: o “simples descolado”, figura autossustentável, preocupado com a agenda eco-planetária e querendo parecer politicamente engajado no contexto dos protestos de rua. 

Uma nova mitologia alimentar foi criada: da pipoca ao churrasco, do chocolate à agua mineral, tudo passou a ter uma versão gourmet exclusiva. O antigo carrinho de “dogão” prensado ou do x-tudo agora virou um food truck sofisticado. Até o carvão virou gourmet – não faz fumaça e é ecologicamente correto e ideais para “varandas gourmet”, onde as linguiças igualmente gourmet também “harmonizam-se” com cervejas compradas de alguma empresa que adquiriu um kit de fabricação artesanal de cerveja de alguma startup.

Uma resposta simbólica para a invasão das hordas bárbaras aos templos de consumo: transformar o “simples” e o “popular” em algo descolado ao criar uma nova mitologia urbana: o ingrediente “sustentável”, restaurantes “despretensiosos”, a religião do Food Truck e o requinte da “comida de rua”.


Fim da liturgia culinária


Enquanto isso, na TV aberta o segundo movimento: a culinária vira gastronomia e a liturgia do passo-a-passo das receitas trocada pela adrenalina de cozinheiros amadores em reality shows como MasterChef. Ao vencedor, a chance de se tornar empreendedor.

Na TV aberta a gourmetização para as massas, um propósito essencialmente disciplinar e ideológico: aos aspirantes à gourmetização, futura mão de obra de empreendedores que trabalharão para a elite, chibatadas do ideário meritocrático. E nos momentos atuais de crise, a esperança do empreendedorismo – o sonho de alcançar aquele momento mágico no qual a força de trabalho se transmutará em capital...

E na TV fechada a gourmetização para a elite: programas de chefs e celebridades  que de repente se transformaram em guardiões de uma suposta simplicidade da culinária popular perdida – o “rústico”, o “artesanal”, a comida “de raiz”. Legítimo porque “sustentável”.

Hilbert faz uma tábua de madeira para sua cozinha

Gourmetização para a elite – o caso Rodrigo Hilbert


O modelo, ator e figurinha carimbada nas festas cobertas pelas revistas sobre a vida das celebridades começou como o melhor exemplo dessa simplicidade descolada. No programa Tempero de Família no canal fechado GNT Hilbert maneja panelas de ferro, fogões a lenha e churrascos de fogo de chão para por em prática as receitas da sua infância no interior de Santa Catarina. Receitas da sua avô, diz o apresentador, devoto da “simplicidade” da cozinha brasileira.

“Comidinhas”, ressalta – o diminutivo é importante nessa simplicidade estudada. Assim como “bistrozinho”, no léxico desse novo espécime urbano.

Não satisfeito, sua simplicidade descolada tornou-se mais, por assim dizer, roots: ele mesmo passou a confeccionar suas próprias grelhas, churrasqueiras, fogões rústicos, empunhando solda e máscara – da gastronomia à metalurgia e até marcenaria. Sim, simples descolados podem fazer o que operários também fazem...

Atualmente, Hilbert vai além na missão civilizatória de um membro da elite midiática resgatar a simplicidade esquecida por um povo que quis abandonar suas raízes para ingressar no consumismo da Era Lula.

Hilbert transcendeu Santa Catarina e partiu para o Nordeste em insólitos programas nos quais adota um sotaque nordestino de telenovelas globais e “ensina” a fazer bode no buraco, buchada de bode, doce de xique-xique, marisqueiras de acaú entre outros.


O insólito é que o apresentador transforma as cozinheiras locais em espectadoras – tão insólito como se um brasileiro colocasse sentados mestres queijeiros franceses de produtos como camembert ou brie para assisti-lo dando lições...

É constrangedor ver em um dos programas mulheres paraibanas assistindo ao ariano Hilbert servindo para elas seus próprios pratos seculares.  

Há aqui uma mitologia: o Sul civilizado vai ao Nordeste para aculturá-lo. Este só passa a existir inserido nos códigos da simplicidade descolada do Sul urbano-midiático – a busca do produto “sustentável”, a simplicidade cenograficamente composta, etc. Hilbert assume o papel do antropólogo europeu que vai até as terras exóticas para “descobri-las” – sem terem a oportunidade de serem  “descobertas”, jamais existiriam.

Assim como no programa Que Marravilha!, também do GNT, do chef francês radicado no Brasil (mas que não perde o sotaque porque, afinal, faz parte da grife)  Claude Troisgros no qual o fiel ajudante, o paraibano Batista Barbosa (egresso dos morros do Rio de Janeiro), assume o papel do “bom selvagem”. Aquele que foi aculturado e civilizado por um chef francês representante da civilização europeia. 


Gourmetização para as massas – o caso MasterChef


Se a mitologia dos alimentos no GNT é o resgate do “simples” e do “popular” (como o Cozinha Prática da ex-modelo Rita Lobo) como signo de distinção para as classes medias, nos canais abertos curiosamente temos uma inversão: cozinheiros amadores são desafiados em reality shows a fazer pratos complexos sob os olhares rigorosos de chefs consagrados – ovos nevados, carpaccio de vieira, salada de king crab com creme fraiche, entre outros “quitutes”.

Mais que rigorosos – intimidam, usam o tom agressivo, olhares fixos e graves para as bancadas dos candidatos. São chibatadas de meritocracia para as massas (no sentido sociológico, claro): resignação, como nas dinâmicas de grupo sem sentido nos processos seletivos corporativos.

Humilhação como educação na suposta dureza da vida, lição de vida da moralidade meritocrática. Lições de empreendedorismo e meritocracia através de um verdadeiro bullying gastronômico.

No MasterChef não temos tão presente a sustentabilidade dos produtos – marca do simples descolado, cujo signo de distinção é a divulgação de parcerias com “pequenos produtores” e “cooperativas” cuja aura magnetiza os gourmets urbanos. 

Ao contrário, no MasterChef estão onipresentes grandes marcas de supermercados e frigoríficos.

Tudo muito corporativo. Afinal, no reality show forma-se a mão de obra que servirá as elites, além de iludir os espectadores com a alquimia neoliberal: a promessa da transmutação da força de trabalho em capital, denominada “empreendedorismo”.

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