Dizem que à
beira da morte assistimos a um filme sobre as nossas vidas. O curta “Bullet in
The Brain” (2001), adaptação do conto homônimo do escritor norte-americano
Tobias Wolff, mostra que talvez isso seja verdade, mas não da forma como
imaginamos. Um professor de Literatura cínico e amargo permite que a sua
metodologia de crítica profissional se estenda para sua própria vida cotidiana,
mesmo no meio de um assalto a um banco e com o cano de um revólver no seu
queixo. A velocidade da bala é menor que a velocidade das sinapses cerebrais, o
que lhe proporcionará surpreendentes segundos finais: a descoberta de
coisas que foram esquecidas na vida e a gnose durante a morte.
O escritor norte-americano Tobias Wolff
(1945-) é conhecido pelo seu estilo chamado de “realismo sujo”. Com uma
impecável técnica literária, principalmente através dos seus contos, Wolff tem
a capacidade de ver na trivialidade da vida, e através dela, aspectos ao mesmo tempo sombrios e sublimes da condição humana.
Algumas obras do escritor foram adaptadas ao
cinema como This Boy’s Life (1989)
que foi transformada no filme O Despertar
de um Homem (1993).
O conto Bullet
in The Brain (1995) foi mais uma obra de Wolff adaptada ao audiovisual: o
curta homônimo de 2001 dirigido por David Von Ancken.
O conto/curta acompanha um professor de
crítica literária chamado Anders que há muito tempo perdeu contato com o amor
pelo trabalho – transformou-se num crítico impiedoso, amargo, pomposo,
antipático que transforma seus alunos em seres paralisados pelo medo da opinião
do seu professor.
Anders transforma o seu pensamento crítico e
intolerante num exercício tão repetitivo que se converte em um método que acaba
se estendendo para a própria vida cotidiana, o que não será uma boa ideia como
demonstra o curta.
De certa forma, o crítico literário Anders
lembra o crítico gastronômico da animação da Pixar Ratatouille, Anton Ego: transforma a ausência de empatia e
intolerância em exercício profissional. Até que uma experiência impactante
abale a couraça crítica. Em Ratatouille,
o prato preparado pelo rato “mini-chef” que faz Anton Ego retornar a uma
experiência esquecida na infância.
No curta, como o próprio título informa, uma
bala na cabeça disparada em um assalto a um banco que fará Anders despertar a
memória de uma humanidade esquecida.
O conto/curta retoma um tema gnóstico que
sempre esteve latente desde a literatura romântica, passando pela Psicanálise
até chegarmos ao cinema atual – a chamada “vida adulta” baseia-se no
esquecimento de alguma coisa de verdadeira e autêntica que foi perdida na
infância: amor, espontaneidade, alegria, brilho, boa-fé, vitalidade, confiança,
viço etc.
Esquecemos de tudo isso sobre camadas e
camadas de racionalidade, racionalizações, álibis, autoindulgência e muito ego.
Ser adulto é esquecer, como nos mostra o conto/curta Bullet in The Brain.
O conto/curta
O curta começa numa narrativa paralela
na qual vemos Anders (Tom Noonan) em sala de aula destilando crítica ferina,
amarga e paralisante para seus alunos. Ao mesmo tempo, acompanhamos Anders
andando pelas ruas apressado, rumando a uma agência bancaria. Olha para o
relógio e percebe que está quase na hora do fechamento da agência.
Percebemos que o protagonista é um cara
nada simpático, no mínimo. E nem chega a ser um anti-herói: ele transformou a
crítica literária em um método cortante de encarar a vida, e que vai muito além
dos livros e textos dos alunos. Transborda para o próprio dia-a-dia.
Na fila do caixa da agência, Anders
percebe que está em andamento um assalto – um segurança é arrastado sob a mira
de um revólver enquanto outros assaltantes esvaziam as gavetas de dinheiro.
Até mesmo nesse instante de perigo,
Anders é irônico é encara tudo como algum tipo de narrativa literária: “Grande
roteiro, hein? A austera poesia das classes perigosas!”, ironiza Anders para uma
assustada mulher à frente na fila.
Um dos assaltantes (Dean Winters) fica
incomodado com o cinismo daquele homem: “isso aqui não é um jogo! Cala a boca”,
grita. Coloca o cano do revolver no queixo de Anders e ameaça: “Se voltar a
brincar comigo você já era. Capiche!”, ameaça.
Andlers explode numa risada: “Capiche?! Oh Deus, Capiche?”, ironiza Anders como se a fala do bandido fosse alguma linha de diálogo de má literatura, clichê de alguma pulp fiction sobre mafiosos sicilianos.
Andlers explode numa risada: “Capiche?! Oh Deus, Capiche?”, ironiza Anders como se a fala do bandido fosse alguma linha de diálogo de má literatura, clichê de alguma pulp fiction sobre mafiosos sicilianos.
O bandido então dispara e a bala
atravessa o crânio, saindo por trás da orelha. Mas na verdade, a velocidade da
bala é infinitamente menor do que a velocidade das sinapses neuronais – vemos
na segunda metade do curta momentos da vida do protagonista que Anders NÃO viu
como suas memórias finais: a primeira amante, o suicídio de uma mulher, a sua
esposa que acabou se cansando dele pela sua previsibilidade, a filha que sofreu
pela sua ausência. Além de também não se lembrar de uma só linha de poemas ou livros
que leu tanto de alunos como dos grandes autores.
Parece que a bala passou pela mente e
levou como um cometa todas essas memórias. Para apenas ficar as lembranças da
infância: o calor, o campo de beisebol, o pasto amarelo, o zumbido dos insetos
e a chegada dos amigos e de um primo do Mississipi e a inesperada pureza e
música de todos esses momentos.
O método da racionalidade da crítica
literária fez o protagonista esquecer de todos esses momentos que são, afinal,
a energia que nos torna vivos, dando vitalidade a tudo que fazemos. Anders
esqueceu de tudo isso, e tocou a sua vida com cinismo e irônica
superficialidade.
Aquilo que esquecemos na infância
Se na infância, o ponto de partida nesse
cosmos material, ainda temos em nós o frescor desse élan vital, na vida adulta
esquecemos, soterrados por camadas de sedimentos de toda existência “séria”:
religião, racionalidade, ego, etc.
O esquecimento que faz perdermos a luz
espiritual interior é o tema principal do Gnosticismo. É esse esquecimento que
nos torna prisioneiros de si mesmos e desse mundo inautêntico. E a gnose seria o momento de redescoberta daquilo que foi esquecido.
E no caso de Anders, um momento que veio
tarde demais, somente nos momentos finais das últimas sinapses cerebrais.
Porém, esse elogio à infância deve
evitar a armadilha rosseauniana de encarar o homem como bom por natureza e que
depois é corrompido pela civilização.
Não se trata da questão de contrapor o
lúdico da criança à “seriedade” do adulto. Trata-se de contrapor a boa-fé da
infância (de acreditar naquilo que faz) com o cinismo e distanciamento irônico
do adulto que finge acreditar naquilo faz através do cálculo racional dos efeitos e
benefícios pessoais.
Se for verdade que nos últimos instantes
da nossa existência assistimos a um filme das nossas vidas, certamente esse
filme mostra tudo aquilo que esquecemos, os momentos preciosos deixados lá para
trás, quando éramos crianças.
Assista ao curta abaixo. O vídeo possui legendas em inglês, mas há opção de legendas em português.
Ficha Técnica
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Título: Bullet in The Brain
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Diretor: David Von Ancken
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Roteiro: David
Von Ancken, Tobias Wolff
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Elenco: Tom Noonan, Dean Winters
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Produção: CJ Follini
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Distribuição: YouTube
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Ano: 2001
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País: EUA
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