Em sua obra,
Fellini sempre teve aversão ao tema da Política. Principalmente desde que
conheceu a obra do psicanalista Jung: preferiu representar no cinema o eterno,
o arquetípico e o inconsciente coletivo. Mas diante da turbulenta conjuntura
política da Itália nos anos 1970, Fellini resolveu fazer um acerto de contas
com a política no filme “Ensaio de Orquestra” (Prova d’Orchestra, 1978) – sobre as tumbas de papas e bispos em uma igreja do século XIII dotada de acústica perfeita, o
ensaio de uma orquestra transforma-se em metáfora do caos sócio-político
italiano naquele momento: os conflitos entre o maestro e a orquestra e dos
músicos entre si. Fellini confronta o eterno e o arquetípico (a religião, a
música e a História) com a fugacidade dos interesses políticos e individuais. E
com uma sombria conclusão: diante do temor do futuro, sempre optamos pela
manutenção do mesmo.
Ensaio de
Orquestra
(1978) talvez seja a obra menos conhecida de Fellini. O diretor sempre foi
lembrado pelos seus melhores filmes mais distantes como A Estrada da Vida (1954), A
Doce Vida (1960) e 8 ½ (1963).
Naquele momento, muitos críticos consideravam que Fellini teria perdido o seu
talento ou, no mínimo, não tivesse mais o que dizer.
O filme Ensaio
de Orquestra foi um projeto originalmente pensado para a televisão – o
filme tem 70 minutos. E totalmente rodado em um único estúdio como se uma
equipe da TV estatal italiana, a RAI, estivesse fazendo um documentário sobre
uma orquestra, entrevistando cada músico e as circunstâncias do ensaio.
Fellini sempre deixou clara sua aversão à
temática política. Principalmente depois de 1961 quando, através de um
psicanalista, conheceu a obra de Jung a passou a se interessar pelos conceitos
de arquétipo e inconsciente coletivo – conceitos amplamente explorados em
filmes como 8 ½ , Satyricon (1969), Casanova (1976) e Cidade das
Mulheres (1980).
Porém, a produção do filme coincidiu com o
sequestro , tortura e assassinato do primeiro ministro, Aldo Moro, pelas
Brigadas Vermelhas – Moro pretendia uma conciliação pacífica entre o lado
comunista do parlamento com a extrema direita apoiada pelo EUA no contexto da
Guerra Fria. Mas as Brigadas Vermelhas, grupo de revolução armado, não aceitava
isso. Aliás, nenhuma das partes aceitava, com muitos interesses sectários e pouco
preocupados com a situação econômica da Itália.
Dessa forma, a tensa conjuntura política
italiana serviu como pano de fundo e metáfora da Itália como uma orquestra
confusa e fora de sintonia; tudo isso combinado com uma abordagem arquetípica
da música e do som: mas do que fazer parte do mundo, a música é o próprio
mundo, apesar da sua banalização pelo gosto e a pretensão individual de cada
músico que transforma o seu instrumento em álibi para autoindulgência.
Ensaio de
Orquestra
foi na época criticado por ser ambíguo e não ter um ponto de vista definido:
há o autoritarismo do maestro, a exploração dos músicos, a luta de classes, o
sindicato que tenta unir os músicos, os
anarquistas, autonomistas, a revolta e os conflitos.
Porém a mensagem de Fellini é melancólica e
amarga – por isso, talvez, tenha desagradado a crítica: apesar do
descontentamento e revolta popular, tudo o que se consegue é o caos
sócio-político – e o povo, empobrecido com as perdas e temente do futuro, no
final acaba sempre optando pela manutenção do status quo.
O Filme
A narrativa inicia com a câmera da equipe de TV
enquadrando o idoso copista da orquestra (quase sempre os personagens falam
diretamente para a câmera e ouve-se em of perguntas e intervenções dos
produtores) que explica a história daquele local em que ocorrerá o ensaio (uma
igreja do século XIII onde estão tumbas de três papas e sete bispos) que em
1871 foi transformado em auditório para concertos graças a sua acústica
perfeita.
Essa abertura do filme é simbólica e
essencial: toda a narrativa de conflitos e tensões que ocorrerá daquele ponto
em diante, ocorre sobre personagens ilustres enterrados e sobre a própria
História – religião e música.
Depois acompanhamos a lenta chegada dos
músicos que são avisados por um líder sindical que uma equipe de TV pretende
fazer um documentário sobre a orquestra. Inicia-se o primeiro conflito: como o
sindicato permite que a TV os entreviste sem pagar nada? Por que deveriam
participar?
Também de imediato percebemos que há um
proposital atraso no som diegético do filme em relação à imagem – como se
Fellini quisesse usar essa “falha” técnica como metáfora da completa falta de
sincronia entre os músicos da orquestra.
Todos falam ao mesmo tempo numa mescla de
desorganização com falta de educação – um preocupa-se com o resultado de um
jogo no seu radinho portátil, outro pensa em tomar os remédios, uma violinista
entorna uma garrafa de bolso de uísque enquanto dois outros músicos discutem a
posição da cadeira.
Logo o entrevistador (na voz do próprio Fellini)
começa a conhecer os integrantes da orquestra: cada um defende o seu
instrumento como o mais importante na execução de um concerto, enquanto alguns
recusam serem entrevistados. Mas começamos a perceber que a fala de cada músico
nada tem a ver com o instrumento ou a orquestra, mas consigo mesmos – como o
instrumento reflete a própria personalidade, mas sempre o melhor lado possível.
Por exemplo, uma flautista fala que o vento
da flauta afeta a cabeça do artista, o que se espera, por isso, que todo músico
faça algo em incomum – e a flautista dá uma cambalhota para a câmera da TV. Na
verdade, poucos falam sobre música, mas apenas de si mesmos.
Até chegar o maestro, detalhista e severo, que
não admite o menor erro e exige a repetição de movimentos até a perfeição. Mas
a tensão cresce quando um dos músicos grita uma lei sindical que não permite
mais de três repetições. “Vocês deveriam preocupar-se mais com a música do que
com o sindicato...”, replica o maestro.
O que dá início ao confronto entre orquestra
e maestro (Estado X Sociedade? Capital X Trabalho?) que aos poucos irá se
deteriorar em revolta, pichações nas paredes da igreja, dejetos jogados contra
os retratos de músicos consagrados, quebra de cadeiras e violência.
E não tarda para os próprios músicos se
dividirem entre os pró-maestro (saudosistas dos “bons tempos” nos quais se
respeitavam autoridades), sindicalistas (querem substituir o maestro por um
metrônomo), anarquistas (não querem nem um e nem outro) e os simplesmente
alienados que continuam a conceder entrevistas como se nada estivesse
acontecendo.
Passado versus presente
No Ensaio de Orquestra parece que Fellini
apresenta o porquê da aversão à política na sua cinematografia: o tempo inteiro
a narrativa contrapõe o passado, a História e o arquetípico com a fugacidade
dos interesses individuais ou políticos. Para começar, como destacamos acima,
todos os conflitos entre os personagens ocorrem em uma igreja do século XIII,
sobre tumbas de papas e bispos.
Ali naquele espaço estão as partituras, os
instrumentos musicais, o púlpito do maestro e a própria música – entidades
eternas: a música como um arquétipo. O simbolismo de uma arte que lida com a
transformação do tempo (sempre efêmero e passageiro) em algo perene ao
convertê-lo em compasso, ritmo, harmonia, arranjo. O tempo transformado
matematicamente na eternidade.
Fellini
confronta tudo isso com os interesses mesquinhos individuais e a fugacidade das
conjunturas políticas – a fragmentação da orquestra (sociedade) nos diversos
grupos políticos que parecem esquecer o conflito fundamental (e também
arquetípico): maestro versus orquestra, dominador e dominados, poder fálico
versus castração – todos os conflitos sociais (de classes, estamentos, castas
etc.) que sempre fraturaram a sociedade em toda a História.
Fica claro que em Fellini, a Política é o
império do superficial, do passageiro, de tudo aquilo que é frágil. Todos os
músicos esquecem a própria música (o eterno) para mergulharem apaixonadamente
na superfluidade dos conflitos políticos e interesses pessoais.
Mas ainda Fellini faz um último acerto de
contas com a Política: mesmo na sua fugacidade e fragilidade, esconde-se uma
outra terrível verdade que é, até aqui na História, eterna – no final, o
maestro restabelece a ordem e volta a comandar a orquestra. Só que, dessa vez,
numa paródia nazi, gritando em alemão.
Esse parece o melancólico diagnóstico felliniano sobre a
Política: não importam lutas, conflitos e ideologias. No final,
todos acabam temendo o futuro e optam pela manutenção do mesmo – a velha
clivagem social entre dominadores e dominados.
Ficha Técnica
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Título: Ensaio de Orquestra
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Diretor: Federico Fellini
|
Roteiro: Federico
Fellini, Brinello Rondi
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Elenco: Balduin Baas, Clara Colosimo, Elizabeth Labi, Umberto Zuanelli,
David Maunsell, Franco Javarone
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Produção: Daimo Cinematografica, RAI Radiotelevisione Italiana
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Distribuição: Gaumont
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Ano: 1978
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País: Itália
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