O que
aconteceria se um cientista descobrisse um creme capaz não só de tirar manchas
do rosto em questão de segundos, mas que também fosse capaz de produzir mágicos
efeitos colaterais? - curar doenças, acabar com a fome, a pobreza, a morte, a
tristeza e até fazer crescer florestas em desertos e despoluir o ar e rios.
Todos ficariam felizes... menos algumas pessoas cujo poder depende da
deliberada fabricação da escassez para a criação de valor e lucro – e por isso
a estrada da história das invenções seria coberta por cadáveres. Esse é o tema
dessa pequena fábula contemporânea, o curta “Cream” (2017) David Firth,
conhecido pela série de animação de humor negro e terror psicológico “Salad
Fingers”. Com surrealismo e um humor politicamente incorreto que lembra “South
Park”, Firth introduz o espectador às principais teses do ativismo-conspiratório:
as descobertas científicas filtradas ou censuradas pelas necessidades
mercadológicas e a grande mídia como a principal ferramenta de engenharia de
opinião pública.
Desde que nos anos 1990 estouraram as animações trash,
propositalmente toscas e surreais como Os
Simpsons ou South Park, a
evolução desse subgênero tem se mostrado constante e sem perder o gás. Em
muitos aspectos podemos considerá-las doentias, estranhas, ofensiva e
politicamente incorretas.
Mas justamente
por essa renuncia ao realismo e verossimilhança (parâmetro nas produções em live action no cinema comercial),
permite aos seus roteiristas e diretores uma imensa liberdade criativa. E
também crítica.
Principalmente
com o advento do crowdfunding no qual
fãs patrocinam produções de artistas. Como no caso do curta Cream de David
Firth, financiado através da plataforma de mecenato virtual chamada Patreon.
Criador da
famosa série de animação Salad Fingers
(2004, com muito humor negro e terror psicológico), no curta Cream David Firth
dá vazão às convicções ativistas, políticas e de crítica social: como a
conversão da ciência em tecnologia muitas vezes pode se reverter contra os
interesses do Capitalismo e do mercado; como a criação deliberada da escassez e
da miséria vira uma ferramenta de produção de valor no mercado; e o papel
crucial da mídia na formação de opiniões que reforcem essa ordem.
O Curta
Cream parte de uma premissa surreal: um cientista descobre um creme que
praticamente conserta tudo: de remoção de manchas no rosto em segundos até
alterações plásticas – pessoas feias que ficam lindas; com a aplicação do creme
em questão de segundos o braço perdido é reconstituído, pessoas doentes nos
leitos dos hospitais instantaneamente são curadas; pessoas feias ficam lindas
como modelos de revista.
Injetado no
cérebro, instantaneamente pessoas encontram uma solução para qualquer problema.
Na medida que o curta avança descobrimos que os benefícios são praticamente
infinitos: aplicados em alimentos, estes se multiplicam e transformando a
descoberta na solução para a fome mundial. Imagine então o creme aplicado ao
dinheiro...
Descobrem-se maravilhosas aplicações
ecológicas: despolui rios, acaba com desertos fazendo crescer densas florestas.
E se alguém
mergulhar numa piscina cheia com o creme milagroso? Há uma melhora física,
mental e espiritual tão imensa que o indivíduo alcança o zênite da perfeição
absoluta: transforma-se em um ser de energia de luz tão pura que transcende
como um raio em direção ao espaço.
As ramificações
das aplicações do creme são divertidas, criando situações hilárias. E o estilo
de animação simplista utilizando camadas de colagens de fotos e desenhos torna
as situações ainda mais surreais.
No início do
curta acreditamos que os benefícios do creme são apenas cosméticos, supérfluos.
E que o argumento de Cream é fazer
uma crítica às atitudes sociais e midiáticas em relação à beleza e o sucesso.
Mas logo
percebemos que os efeitos do creme vão muito além da estética: tendem para os
campos da ecologia, economia e política. É a partir desse ponto que o curta
começa a adotar um tom mais sombrio: tanta fartura, saúde e perfeição
livremente oferecida para todos começam a incomodar algumas pessoas muito poderosas – sem escassez, doenças,
fome e tristeza, como ficariam os mercados farmacêuticos, financeiro etc.?
Afinal, o valor ótimo de qualquer mercadoria é produzida pela sua escassez no
mercado – o momento em que há muita demanda
para pouca oferta, agregando valor à mercadoria.
O curta começa a adotar um tom
ativista-conspiratório, no qual membros da elite mundial (representada por
indivíduos anônimos em mansões e iates no meio do oceano) decidem em conversas
telefônicas acabar com toda aquela festa que põe em perigo o princípio basilar
do Capitalismo: o valor da mercadoria.
E como fazer
isso? Utilizando a grande mídia para fazer a opinião pública alterar
drasticamente a percepção positiva em relação ao creme.
No curta Cream, David Firth introduz de forma
divertida o espectador em dois temas muito sérios no atual
ativismo-conspiratório:
(a) As relações conflituosas entre Ciência e Tecnologia e criação artificial da escassez
Nem sempre os
benefícios das descobertas científicas são aplicadas integralmente na
sociedade. As necessidades mercadológicas (a equação composta pelas relações
entre oferta e procura, a taxa de lucro e valorização mercantil) filtram todos
os efeitos científicos transformando-os em ferramentas tecnológicas –
farmacêutica, indústria, informação etc.
Já que estamos
no campo do humor surreal, um exemplo é o filme O Homem do Terno Branco (1951) no qual vemos o destino da
descoberta de um cientista ingênuo diante do capitalismo cartelizado: ele
descobre uma fibra sintética capaz de criar roupas que nunca sujem e se
desgastem – roupas praticamente indestrutíveis, capazes de durar uma vida
inteira.
Imagine caro
leitor o pânico que isso provocaria na indústria têxtil e da moda... O pobre
cientista começa então a ser perseguido e sua cabeça colocada a prêmio – sobre
o filme clique aqui.
Se o ouro e
pedras preciosas têm tanto valor é porque são bens escassos ou difíceis de serem
encontrados (por isso historicamente se transformaram em moedas de troca –
“dinheiro”), logo o Capitalismo entendeu esse princípio básico das leis
mercantis: portanto, o sistema econômico deve criar artificialmente a escassez:
fome, frio, sede, tristeza, desemprego, insegurança, doenças etc., para que
produtos tenham alto valor agregado no mercado – remédios, planos econômicos,
segurança privada, privatização de bens universais (água e educação, por
exemplo) e assim por diante.
Fartura, socialização
da riqueza e felicidade são ideias que passam longe da valorização das
mercadorias e do capital. Por isso, cria-se uma escassez exponencial que jamais
poderá ser resolvida.
(b) grande mídia e engenharia de opinião pública
Logo entra em
ação a mais poderosa arma do sistema: a engenharia de opinião pública – tanta
fartura e felicidade tem que ser associada a AIDS, terrorismo islâmico, crime
organizado e tráfico de drogas.
Jornais e TV
denunciam que o creme está associado a três formas de AIDS, terroristas
islâmicos transformam o creme em arma de destruição em massa e nas mãos dos
traficantes o creme vira uma poderosa droga que produz dependência,
criminalidade e mortes.
Rapidamente a
percepção do público é alterada e o cientista responsável pela maravilhosa
descoberta é perseguido, processado e preso.
Por isso que a
estrada da história das invenções está repleta de cadáveres marcados por
assassinatos e suicídios – o desaparecimento misterioso do inventor do motor à
explosão (Rudolph Diesel), a misteriosa morte do descobridor da energia livre
(Nikola Tesla), o controverso suicídio do inventor da Frequência Modulada, o FM
(Edwin Armstrong) ou a prisão e morte do médico e cientista natural Wilhelm Reich
nos EUA (cuja descoberta da caixa de energia do “orgônio” poderia levar à cura
do câncer e de uma série de doenças – falava-se que a sua máquina poderia até
fazer chover no deserto... ) são alguns dos trágicos exemplos.