No livro “1984”
George Orwell declarou: “quem controla o passado controla o futuro. Quem
controla o presente, controla o passado”. Na série “Os Dias Eram Assim”, sobre
os anos da ditadura militar brasileira, a Globo altera o passado, misturando
ficção e realidade, para criar a imagem de que a emissora supostamente apoiou
as manifestações pelas “Diretas Já” em 1984. A série foi "coincidentemente" produzida num momento
em que retornam as manifestações pelas eleições diretas à presidência. A Globo
quer criar uma realidade alternativa sobre o passado no delicado momento
político atual – a pauta “Fora Temer”, atiçada pela poderosa emissora, foge ao
controle nas ruas e evolui para “Diretas já!”. Diante dessa ameaça, a Globo
reage com estratégia sincromística e tautista. Quem nos explica é Manoel de
Souza Neto.
O sincromisticismo
das datas está em ação novamente? O ano de 1984, tem um significado emblemático
para os brasileiros. Para além de suas outras significâncias entrecruzadas, temos
em especial nesse ano o clássico de Orwell, a produção de Brazil, O filme (lançado em 1985) e os comícios em prol de eleições
Diretas Já - que criam tramas entre tempo e espaço, que produzem o
real-distópico, que se torna a própria realidade de uma nação que é a própria
ficção.
Dentro da lógica do
"CosmoGnóstica" apresentada pelo portal CineGnose em diversas analises fílmicas (O Décimo Terceiro Andar, Matrix,
Show de Truman e Brazil) a realidade se apresenta como universos simulados,
multiversos, e realidades que copiam as histórias distópicas.
Um exemplo recente
disso ocorreu no começo de junho de 2017 quando a Rede Globo de Televisão apresentou
em seu seriado Os Dias Eram Assim
graves distorções do período Ditadura Militar no Brasil - com novas mentiras
apresentadas aos espectadores com ares de distopia aos moldes de 1984 de George Orwell.
No seriado, a Rede
Globo deixa a entender que as barbaridades ocorridas na época da Ditadura foram
unicamente culpa de um ou outro "torturador", como se não fosse o
regime político a responsável pelas
atrocidades. A culpa seria de um delegado e um empresário, relativizando os
assassinatos em massa e a repressão a meros casos isolados cometidos por apenas
alguns poucos.
A série global e a crise política atual: coincidência?
Mas não ao acaso, em
meio à produção de um seriado que trata de "liberdade" e de luta pela
democracia no Brasil dos anos 60 e 70, a própria emissora promove graves denúncias
contra o presidente Michel Temer (já considerado um governo autoritário),
revelando as entranhas e o cheiro fétido da república fruto das relações
espúrias entre JBS e mais de 1.800 políticos que foram "patrocinados"
pela corrupção.
O empresário Joesley
Batista dono da bilionária JBS acusa o presidente de ser "o chefe da
quadrilha mais perigosa do Brasil".
A sociedade perplexa
assiste ao cinismo de um congresso corrupto que, após ser denunciado, segue
disposto a promover reformas pró austeridade mesmo não tendo legitimidade para
se manterem em seus cargos diante da corrupção revelada.
Coincidência ou não,
nesse ano, enquanto em todo o Brasil as massas pedem Eleições Diretas Já e que
Temer saia da presidência, a Rede Globo exibe a série Os Dias Eram Assim retratando o momento histórico em que o Brasil
vivia em 1984, quando ocorriam manifestações pelo Brasil pelas Diretas Já.
Na Globo: Os dias NÃO foram assim... |
Manipulação do presente e do passado
Diante da
manipulação do presente, surge a manipulação do passado. Ocorreu diante das
câmeras a criação de um futuro alternativo diante da distorção do passado. Em
uma cena onde o movimento Diretas Já vai para as ruas com um milhão de pessoas
em 1984, a emissora editou imagens reais com a ficção, mas esqueceu de dizer a
verdade.
Na edição, a Globo
muda o passado, mostrando em televisores nas casas dos personagens a cobertura
das “Diretas Já”. Mas não revelou que na época a cobertura apresentou o evento
como parte das comemorações do aniversário de São Paulo, impedindo que as
massas soubessem de que se tratavam de um milhão de pessoas nas ruas
protestando contra o regime militar.
A edição sugere que
a Globo cobriu e apoiou as manifestações, algo que nunca ocorreu. Resultando em
frustração e perda dos movimentos sociais que foram obrigados a esperar até
1989 para votar diretamente para presidente.
O tautismo da Globo
é recorrente. Diante das críticas da sociedade e das manifestações populares
ocorridas desde 2013, (a emissora é recebida em todos os cantos aos gritos de
"Fora Globo", "Abaixo a Globo", "O povo não é
Bobo", "A realidade é dura, a Rede Globo apoiou a Ditadura"), ao
invés de reconhecer o erro a Globo lançou nota histórica em seu portal,
afirmando que fez a cobertura dos eventos ocorridos em 1984 ao ter feito a
seguinte chama em seu telejornal: “Festa em São Paulo. A cidade comemorou seus
430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé.” (http://memoriaglobo.globo.com/erros/diretas-ja.htm).
Diretas Já em 1984: "festa em São Paulo..." |
A emissora tenta se
justificar que, após alguns meses de movimentação popular, diante das pressões
do militares, acabou cobrindo os eventos seguintes naquele mesmo ano. Versão
que não isenta a Globo das mentiras históricas deste e de inúmeros outros fatos
distorcidos que foram apresentados para as massas.
Por exemplo, quando recentemente promoveu e apoiou as manifestações de classes altas conservadoras e encobriu manifestações populares.
Por exemplo, quando recentemente promoveu e apoiou as manifestações de classes altas conservadoras e encobriu manifestações populares.
Como a nota da Rede
Globo tentando se isentar dos erros do passado aparentemente não surtiu efeito,
e diante da demanda política que atualmente interessa para a emissora com a
chamada para antecipação de eleições diretas na atualidade (2017), a Globo
parte para a tática da manipulação do passado.
A ação se dá ao
tentar misturar a ficção e realidade, tentando convencer a população através de
um seriado, de que em uma realidade alternativa em 1984, a Globo cobriu e
apoiou aquele comício pelas “Diretas Já”.
A realidade daquele
ano de 1984 está cada vez mais distante. E em um universo paralelo, na
simulação, aproxima-se e nos encontra no presente que é cada vez mais próximo
ao ano de 1984 da ficção.
Manoel J. de Souza Neto - Cientistas Político, pesquisador, escritor e agitador cultural, é editor do Observatório da Cultura e Diretor do Museu do Som Independente. Foi por 6 mandatos Membro da Câmera/Colegiado Setorial de Música e Conselho Nacional de Políticas Culturais/MINC (2005/2017). Publicou diversos artigos em revistas e livros, e também é o organizador do livro “A [Des]construção da Música na Cultura Paranaense”.
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