Repercute nas
redes sociais um vídeo no qual uma equipe de reportagem da CNN é pega com a mão
na massa fabricando uma manifestação numa rua de Londres contra o Estado
Islâmico. Supostamente são mulheres muçulmanas, com destaque para uma criança
orientada a segurar um cartaz de papelão. A repórter se transforma em diretora
de cena e até policiais colaboram com a produção da CNN, ajudando nas marcações
de cena dos “atores”. Desde o “Royal Wedding”, o casamento de Lady Di e
príncipe Charles em 1981, cada vez mais a mídia avança sobre a realidade
produzindo “eventos-encenação”: roteirizados, dirigidos e produzidos como
fossem “notícias” e o jornalista uma “testemunha ocular da História”.
Essa pequena amostra de como se constrói a atual matrix de notícias dá o que
pensar: imagine a construção de manifestações em larga escala como as
sucessivas “primaveras” que varreram o mundo com seus black blocs e máscaras do
Anonymous – a árabe, ucraniana, turca, brasileira...
Câmeras,
microfones, luz, holofotes, voz e cenário foram checados à risca pela BBC. Mas
não só isso: o próprio vestido da noiva (para valorizar os enquadramentos do
alto do altar da Catedral de Saint Paul) e décor geral em tons pastéis do
figurino de familiares e convidados para dar um toque telegênico primaveril em
uma transmissão ao vivo à luz do dia.
Era 1981. A
plebeia Lady Di iria se casar com príncipe Charles (o “Royal Wedding”),
herdeiro do trono britânico. A emissora estatal de TV BBC estava cuidando de
todos os detalhes de um evento que seria transmitido ao vivo para todo o
planeta – produção, roteiro, trajeto, logística, tudo para ser encaixado como
mais uma atração na grade de TV.
Mas algo foi
esquecido. De todos os personagens que participariam, um deles agiria de uma
forma perigosamente espontânea em um evento totalmente planejado para a TV: os
cavalos da guarda e das carruagens. Eles estavam adestrados para tudo, menos
para absterem-se das funções corporais: defecariam em todo o trajeto,
excrementos escuros que criariam uma impressão televisiva desagradável – as
carruagens reais esmagando excrementos equinos.
Às pressas a
produção da BBC submeteu os cavalos a uma dieta especial para que, no dia,
defecassem também em tons pastéis, sem prejudicar o décor do Royal Wedding.
Royal Wedding: só os cavalos não sabiam que a TV estava ali |
Esse episódio descrito
por Umberto Eco no livro clássico “Viagens da Irrealidade Cotidiana” (última
edição no Brasil em 1993 pela Nova Fronteira) foi, para o pesquisador italiano,
o ato inaugural dos eventos-encenação que dominariam a TV contemporânea – a
realidade concebida pela e para a própria televisão.
Com a mão na massa
Em menor
escala, porém com a mesma essência, o portal de notícias norte-americano The Daily Wire flagrou em plena rua
de Londres no último domingo uma equipe composta por repórter, produtores e
câmeras da emissora noticiosa CNN com a mão na massa: orientavam supostos
muçulmanos sobre as marcações de cena e exibição de cartazes para serem o “pano
de fundo” de uma manifestação com mensagens de paz e protestos contra o Estado
Islâmico, em relação aos ataques recentes em Londres.
A repórter
Becky Anderson entrou ao vivo em um dos segmentos do “Sunday News” da CNN com
imagens comoventes: crianças e mulheres segurando cartazes sobre como o amor
vencerá o ódio e declarações muçulmanas de apoio à cidade ao melhor estilo
“#SomostodosLondres”.
O objetivo
claro desse evento-encenação é promover a narrativa de uma ampla oposição
muçulmana ao ISIS e o terrorismo islâmico. E com isso reforçar a ideologia do
“choque de civilizações” e do “fundamentalismo islâmico” que supostamente
motivariam os atentados – claro, encobrindo a natureza falsa desses eventos: false flags, trabalhos internos, enfim,
não-acontecimentos fabricados para favorecer a geopolítica global do petróleo.
Um cidadão
capturou essas imagens da fabricação de uma manifestação e em seguida postou em
sua conta no Twitter: “CNN criando a narrativa. #FakeNews”.
Nas redes
sociais as imagens da fabricação (ou “editorialização”) de uma manifestação
causaram grande repercussão entre jornalistas e no público em geral.
Diante disso, o
canal CNN declarou no portal Mediaite que “esta história não tem
sentido. O grupo estava em acordo com a polícia e fora autorizado pelos
oficiais para que pudessem mostrar seus cartazes aos meios de comunicação. A
CNN simplesmente filmou o que estava acontecendo”, explica o canal noticioso.
A Editorialização de um acontecimento
Comparação dos
dois vídeos (a metalinguagem da entrada da matéria ao vivo e o que foi mostrado
pela CNN para os telespectadores) é semioticamente bem didática a respeito do
processo de editorialização de um evento-encenação.
No vídeo
repercutido nas redes sociais vemos em plano aberto uma rua vazia na qual, sob
a orientação de produtores, são colocados cada um dos “manifestantes” em sua
posição. Observa-se a posição central da criança que será o enquadramento de
câmera de destaque na transmissão ao vivo. O cenário é montado com flores e
cartazes colocados estrategicamente, enquanto a repórter vira uma verdadeira
diretora de cena.
Vemos dois
policiais observando a montagem da cena. Um deles até ajuda, dando orientação para
o grupo à esquerda a se juntar mais ao restante do grupo para todos ficarem no
campo da câmera.
Ao contrário,
na matéria ao vivo da CNN, o plano é fechado (um pequeno grupo em uma rua vazia
tiraria o impacto e dramaticidade das imagens) e a criança (o único personagem
espontâneo em cena) é tratada com destaque com um zoom – sempre exploradas como
vítimas exemplares, como na Síria.
Há uma única
pessoa que esconde o rosto com um cartaz... será um membro da produção da CNN
que entrou para “engrossar” o pequeno grupo de “manifestantes”?
O propósito da
editorialização é evidentemente metonímico – tomar uma suposta amostra como
fosse o todo. A repórter fala que “essas cenas são para mostrar exatamente como
as pessoas se sentem aqui nas ruas de Londres, tão próximas do brutal ataque da
noite passada”.
É o que esse
humilde blogueiro chama de “jornalismo metonímico”, através do qual enquetes,
depoimentos ou declarações ganham uma aspecto científico de amostragem
representativa para qualquer coisa. Esse é o álibi. Na verdade, são bombas
semióticas que visam moldar a percepção da opinião pública.
Efeito Heisenberg
Em outras
palavras, a repórter tinha uma pauta pré-estabelecida: a narrativa da força e
resistência dos londrinos e, em particular, a contrariedade de muçulmanos
contra o fundamentalismo islâmico. Pauta que muitas vezes o repórter tem que
confirmar à fórceps, nem que seja para recriar “criativamente” a realidade –
como por exemplo nos apuros de uma repórter da rádio CBN no caso “Tem alemão no
campus” – clique aqui.
Esse episódio
de uma equipe de reportagem da CNN flagrada fabricando uma notícia em plena luz
do dia revela como o jornalismo cada vez mais abandona o campo documental para
se identificar com a narrativa cinematográfica ficcional.
De “testemunha
ocular da História”, o jornalismo transforma-se em exercício narrativo: nas
reuniões de pauta chefes de redação e editores assumem o papel de roteiristas,
o repórter desempenha a função de diretor de cena e a produção final da
narrativa sequenciando os planos para produzir efeitos de sentido subliminares
a partir do chamado “efeito Kuleshov” - experiência feita pelo teórico e cineasta russo Lev
Kuleshov mostrando que a interpretação que o espectador faz de uma cena pode
ser alterada através da montagem e justaposição arbitrária dos planos.
O que
impressiona também nesse episódio é o alcance da simulação sobre a realidade –
o pensador francês Jean Baudrillard chamava de “assassinato do real” ou “o
crime perfeito”.
Esse assalto da
simulação sobre a realidade cria um gigantesco Efeito Heisenberg: assim como na
física quântica na qual aquilo que é observado no mundo subatômico é
influenciado pelo olhar do observador, da mesma maneira o que vemos nas mídias
não é a realidade mas o efeito que as mídias produzem ao reportar o real – em
outras palavras, assistimos a mídia cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a
vida – sobre esse conceito clique aqui.
De um lado tivemos o próprio acontecimento (os
ataques à London Bridge e Burough Market) como um não-acontecimento (evento fabricado para repercutir nas mídias
dentro de uma estratégia geopolítica mais ampla de engenharia de opinião
pública); e na outra ponta a mídia corporativa produzindo eventos-encenação (a notícia roteirizada, dirigida e produzida pela
própria mídia) para reforçar a pauta dos não-acontecimentos com micronarrativas e personagens - a criança que segura o
cartaz, as mulheres muçulmanas, os heróis anônimos de Londres etc.
Ao flagrar ao
vivo como se fabrica essa verdadeira matrix das notícias, começamos a pensar na
escala da produção das manifestações das sucessivas “primaveras” (Egípcia,
árabe, ucranianas, a brasileira com as “jornadas” de 2013 e 2014 etc.) e os
estragos provocados no mundo real. Pelo menos no Brasil, pagamos o preço até
hoje.
Assista abaixo aos vídeos e compare:
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