sexta-feira, junho 09, 2017

CNN flagrada fabricando notícia falsa nas ruas de Londres



Repercute nas redes sociais um vídeo no qual uma equipe de reportagem da CNN é pega com a mão na massa fabricando uma manifestação numa rua de Londres contra o Estado Islâmico. Supostamente são mulheres muçulmanas, com destaque para uma criança orientada a segurar um cartaz de papelão. A repórter se transforma em diretora de cena e até policiais colaboram com a produção da CNN, ajudando nas marcações de cena dos “atores”. Desde o “Royal Wedding”, o casamento de Lady Di e príncipe Charles em 1981, cada vez mais a mídia avança sobre a realidade produzindo “eventos-encenação”: roteirizados, dirigidos e produzidos como fossem “notícias” e o jornalista uma “testemunha ocular da História”. Essa pequena amostra de como se constrói a atual matrix de notícias dá o que pensar: imagine a construção de manifestações em larga escala como as sucessivas “primaveras” que varreram o mundo com seus black blocs e máscaras do Anonymous – a árabe, ucraniana, turca, brasileira...

Câmeras, microfones, luz, holofotes, voz e cenário foram checados à risca pela BBC. Mas não só isso: o próprio vestido da noiva (para valorizar os enquadramentos do alto do altar da Catedral de Saint Paul) e décor geral em tons pastéis do figurino de familiares e convidados para dar um toque telegênico primaveril em uma transmissão ao vivo à luz do dia.

Era 1981. A plebeia Lady Di iria se casar com príncipe Charles (o “Royal Wedding”), herdeiro do trono britânico. A emissora estatal de TV BBC estava cuidando de todos os detalhes de um evento que seria transmitido ao vivo para todo o planeta – produção, roteiro, trajeto, logística, tudo para ser encaixado como mais uma atração na grade de TV.

Mas algo foi esquecido. De todos os personagens que participariam, um deles agiria de uma forma perigosamente espontânea em um evento totalmente planejado para a TV: os cavalos da guarda e das carruagens. Eles estavam adestrados para tudo, menos para absterem-se das funções corporais: defecariam em todo o trajeto, excrementos escuros que criariam uma impressão televisiva desagradável – as carruagens reais esmagando excrementos equinos.

Às pressas a produção da BBC submeteu os cavalos a uma dieta especial para que, no dia, defecassem também em tons pastéis, sem prejudicar o décor do Royal Wedding.

Royal Wedding: só os cavalos não sabiam que a TV estava ali

Esse episódio descrito por Umberto Eco no livro clássico “Viagens da Irrealidade Cotidiana” (última edição no Brasil em 1993 pela Nova Fronteira) foi, para o pesquisador italiano, o ato inaugural dos eventos-encenação que dominariam a TV contemporânea – a realidade concebida pela e para a própria televisão.

Com a mão na massa


Em menor escala, porém com a mesma essência, o portal de notícias norte-americano The Daily Wire flagrou em plena rua de Londres no último domingo uma equipe composta por repórter, produtores e câmeras da emissora noticiosa CNN com a mão na massa: orientavam supostos muçulmanos sobre as marcações de cena e exibição de cartazes para serem o “pano de fundo” de uma manifestação com mensagens de paz e protestos contra o Estado Islâmico, em relação aos ataques recentes em Londres.

A repórter Becky Anderson entrou ao vivo em um dos segmentos do “Sunday News” da CNN com imagens comoventes: crianças e mulheres segurando cartazes sobre como o amor vencerá o ódio e declarações muçulmanas de apoio à cidade ao melhor estilo “#SomostodosLondres”.

O objetivo claro desse evento-encenação é promover a narrativa de uma ampla oposição muçulmana ao ISIS e o terrorismo islâmico. E com isso reforçar a ideologia do “choque de civilizações” e do “fundamentalismo islâmico” que supostamente motivariam os atentados – claro, encobrindo a natureza falsa desses eventos: false flags, trabalhos internos, enfim, não-acontecimentos fabricados para favorecer a geopolítica global do petróleo.


Um cidadão capturou essas imagens da fabricação de uma manifestação e em seguida postou em sua conta no Twitter: “CNN criando a narrativa. #FakeNews”.

Nas redes sociais as imagens da fabricação (ou “editorialização”) de uma manifestação causaram grande repercussão entre jornalistas e no público em geral.

Diante disso, o canal CNN declarou no portal Mediaite que “esta história não tem sentido. O grupo estava em acordo com a polícia e fora autorizado pelos oficiais para que pudessem mostrar seus cartazes aos meios de comunicação. A CNN simplesmente filmou o que estava acontecendo”, explica o canal noticioso.

A Editorialização de um acontecimento


Comparação dos dois vídeos (a metalinguagem da entrada da matéria ao vivo e o que foi mostrado pela CNN para os telespectadores) é semioticamente bem didática a respeito do processo de editorialização de um evento-encenação.

No vídeo repercutido nas redes sociais vemos em plano aberto uma rua vazia na qual, sob a orientação de produtores, são colocados cada um dos “manifestantes” em sua posição. Observa-se a posição central da criança que será o enquadramento de câmera de destaque na transmissão ao vivo. O cenário é montado com flores e cartazes colocados estrategicamente, enquanto a repórter vira uma verdadeira diretora de cena.  

Vemos dois policiais observando a montagem da cena. Um deles até ajuda, dando orientação para o grupo à esquerda a se juntar mais ao restante do grupo para todos ficarem no campo da câmera.

Ao contrário, na matéria ao vivo da CNN, o plano é fechado (um pequeno grupo em uma rua vazia tiraria o impacto e dramaticidade das imagens) e a criança (o único personagem espontâneo em cena) é tratada com destaque com um zoom – sempre exploradas como vítimas exemplares, como na Síria.

Há uma única pessoa que esconde o rosto com um cartaz... será um membro da produção da CNN que entrou para “engrossar” o pequeno grupo de “manifestantes”?

O propósito da editorialização é evidentemente metonímico – tomar uma suposta amostra como fosse o todo. A repórter fala que “essas cenas são para mostrar exatamente como as pessoas se sentem aqui nas ruas de Londres, tão próximas do brutal ataque da noite passada”.

É o que esse humilde blogueiro chama de “jornalismo metonímico”, através do qual enquetes, depoimentos ou declarações ganham uma aspecto científico de amostragem representativa para qualquer coisa. Esse é o álibi. Na verdade, são bombas semióticas que visam moldar a percepção da opinião pública.

Efeito Heisenberg


Em outras palavras, a repórter tinha uma pauta pré-estabelecida: a narrativa da força e resistência dos londrinos e, em particular, a contrariedade de muçulmanos contra o fundamentalismo islâmico. Pauta que muitas vezes o repórter tem que confirmar à fórceps, nem que seja para recriar “criativamente” a realidade – como por exemplo nos apuros de uma repórter da rádio CBN no caso “Tem alemão no campus” – clique aqui.

Esse episódio de uma equipe de reportagem da CNN flagrada fabricando uma notícia em plena luz do dia revela como o jornalismo cada vez mais abandona o campo documental para se identificar com a narrativa cinematográfica ficcional.

De “testemunha ocular da História”, o jornalismo transforma-se em exercício narrativo: nas reuniões de pauta chefes de redação e editores assumem o papel de roteiristas, o repórter desempenha a função de diretor de cena e a produção final da narrativa sequenciando os planos para produzir efeitos de sentido subliminares a partir do chamado “efeito Kuleshov” - experiência feita pelo teórico e cineasta russo Lev Kuleshov mostrando que a interpretação que o espectador faz de uma cena pode ser alterada através da montagem e justaposição arbitrária dos planos.


O que impressiona também nesse episódio é o alcance da simulação sobre a realidade – o pensador francês Jean Baudrillard chamava de “assassinato do real” ou “o crime perfeito”.


Esse assalto da simulação sobre a realidade cria um gigantesco Efeito Heisenberg: assim como na física quântica na qual aquilo que é observado no mundo subatômico é influenciado pelo olhar do observador, da mesma maneira o que vemos nas mídias não é a realidade mas o efeito que as mídias produzem ao reportar o real – em outras palavras, assistimos a mídia cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida – sobre esse conceito clique aqui.

 De um lado tivemos o próprio acontecimento (os ataques à London Bridge e Burough Market) como um não-acontecimento (evento fabricado para repercutir nas mídias dentro de uma estratégia geopolítica mais ampla de engenharia de opinião pública); e na outra ponta a mídia corporativa produzindo eventos-encenação (a notícia roteirizada, dirigida e produzida pela própria mídia) para reforçar a pauta dos não-acontecimentos com micronarrativas e personagens -  a criança que segura o cartaz, as mulheres muçulmanas, os heróis anônimos de Londres etc.

Ao flagrar ao vivo como se fabrica essa verdadeira matrix das notícias, começamos a pensar na escala da produção das manifestações das sucessivas “primaveras” (Egípcia, árabe, ucranianas, a brasileira com as “jornadas” de 2013 e 2014 etc.) e os estragos provocados no mundo real. Pelo menos no Brasil, pagamos o preço até hoje.


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