terça-feira, junho 27, 2017

O hit "Despacito", Woody Allen e a espiral do silêncio


O que tem a ver o cineasta Woody Allen com o estrondoso sucesso do ritmo reggaeton com o hit “Despacito”, nesse momento tocando em nove em cada dez festas juninas brasileiras? Muito, desde a reação de Woody diante de uma banda de punk rock no filme “Hanna e suas Irmãs” (1986) até o niilista aforismo do diretor de que a vida poderia ser resumida a três eventos: nascimento, sexo e morte. É recorrente como as músicas de sucesso sempre giram em torno desses três temas. No caso de “Despacito”, um longo monólogo masculino “gangsta” de ostentação, sedução e poder. Um “case” exemplar dos mecanismo circulares e tautológicos da indústria do entretenimento fazer sucesso com um produto que se promove como tal antes mesmo de ser distribuído e executado.  E que, como sempre, conta com a dinâmica da chamada “espiral do silêncio”.  

No filme Hannah e suas Irmãs (1986) Mickey (Woody Allen) tem um encontro com a problemática Holly (Dianne Wiest). Saem para jantar e terminam a noite em uma casa noturna underground. Sentam-se em uma mesa, diante do palco no qual uma barulhenta e agressiva banda de punk rock fazia um show.

Mickey faz caretas e reclama: “vou ficar surdo, não consigo ouvir nada. Estão destruindo os meus ouvidos!”.

“Mas eles são geniais... Não sente a energia? O lugar está repleto de vibrações positivas!”, respondeu Holly.

“Depois do show vão fazer reféns...”, disse aterrorizado Mickey diante de uma banda que gritava e fazia gestos agressivos para a plateia.

Olhando para os gestos e requebros, caras de mau e olhares entre o malicioso e o perverso da dupla formada pelo porto-riquenho Luis Fonsi e o rapper  Daddy Yanke cantando em um vídeo-clip o hit Despacito, poderíamos perguntar no melhor estilo Woody Allen: “quanto eles vão cobrar por um programa no final do clip?...”.

Pode parecer politicamente incorreto (e é!), mas a conotação visual “cafetão cafajeste” da dupla Fonsi-Yanke no vídeo-clip do sucesso com inúmeras mulheres se insinuando ao redor, enquanto outros caras não menos suspeitos tentam pegar para si suas próprias mulheres, diz muito sobre a natureza do hit Despacito que agora martela impiedosamente nas mídias e ecoa em nove de cada dez festas juninas brasileiras.


Não obstante a letra quilométrica da música (uma coisa rara em hits populares) e sem a profusão de vogais no refrão como nos hits brasileiros como fosse uma linguagem infantil tatibitate – clique aqui) ainda assim Despacito é mais do mesmo: enquanto “Não Se Reprima” dos Menudos nos anos 1980 exortava o público a deixar de se controlar e se esconder para gritar, dançar e fazer o que manda o coração, Despacito fala a mesma coisa... só que recomenda se desreprimir mais... “devagarzinho”.

Nascimento, sexo e morte


Mas não só por isso é mais do mesmo. Despacito é um hit exemplar para estudiosos em mitologias midiáticas porque explicita uma estrutura recorrente na construção da música popular de sucesso – a estrutura musical estereotipada e a dinâmica de divulgação do “sucesso” de um produto que já nasce como tal, antes mesmo de ser ouvida pelo público – o fenômeno da chamada “espiral do silêncio”.

Voltando novamente para Woody Allen, o cínico cineasta dizia que a vida poderia ser reduzida a três episódios mais significativos: o nascimento, sexo e a morte.

Se adaptarmos essa visão de mundo Alleniana a uma, por assim dizer, metodologia para analisar a música popular de sucesso, teremos uma surpresa: as letras ou argumentos desses produtos musicais industriais também giram sempre em torno da trinca nascimento/sexo/morte. São grandes gêneros que depois se subdividem em subgêneros.


A saber: Nascimento – infância, pureza, inocência, brincadeira, jogo, amor romântico, saudades, família; Sexo – amor erótico, compulsão, vício, malícia, sedução, perversão, objetificação, fetiche; Morte – violência, agressão, tristeza, melancolia, perda, separação, luto.

Em geral a música de sucesso é estereotipada: sem ambiguidades, a letra sempre explora unicamente um gênero, sem querer aventurar-se pelos demais para a mensagem ficar clara e óbvia.

Signos do “reggaeton”


Mas antes de qualquer análise semiótico-estrutural de Despacito temos que entender o contexto musical e cultural da música.

Como todo hit, é sempre uma versão mais “melhorada”, com arestas e ruídos limados e diluídos para funcionar bem em qualquer mercado, de algum gênero musical ou tendência cultural que era anteriormente rejeitado. A música combina pop urbano latino com o gênero chamado “reggaeton” – estilo musical com raízes latinas e caribenhas, influenciado pelo hip hop, salsa e música eletrônica.

Geralmente cantado em “spanglish” (uma mistura de inglês e castelhano) suas músicas têm forte apelo sexual com temas que fazem parte da cultura gangsta – drogas, crime, festas e ostentação.

O ritmo reggaeton sempre foi polêmico. Por exemplo, em Porto Rico o governo ameaçou proibir manifestações desse gênero por supostamente incentivar a prostituição e violência.


Preconceito e racismo à parte (da qual os bailes funks também são vítimas no Brasil), o “case” Despacito lembra o divisor de águas da apresentação de um show funk do DJ Marlboro no terraço da loja de artigos de luxo Villa Daslu em 2011 – edição especial do show Sensual Easy para jovens classe média alta se sentirem como “cachorras” num baile funk em um morro carioca.

Monólogo machista


Assim como o funk foi “limado” e “melhorado” (ou “gourmetizado”) para baladas de jovens novos ricos, da mesma forma Despacito libera-se dos ruídos e arestas sócio-culturais. E transforma tudo em signos do gênero alleniano “Sexo” – objetificação feminina, fetichização, malícia e perversão.

(a) A letra é um longo monólogo de um protagonista “fodão” (corroborado com o clip com caras e bocas entre malícia, perversão e demonstrações de força e poder – correntes grossas no pescoço, óculos ray-ban e cara de “acento circunflexo” ao melhor estilo “Stallone Cobra”, mulheres agarradas por homens, carrões masculinos com mulheres sentadas nos capôs etc.). Na letra temos apenas a sedução e as impressões sob o ponto de vista masculino. O que será que estaria pensando o objeto passivo da sedução?

(b) Como um impagável monólogo machista, o vídeo-clip de Despacito idealiza a mulher “amada”, cujo protagonista quer “despi-la com beijos” e transformar seu corpo num “manuscrito”, de forma platônica e exibicionista: ela está sempre sozinha, girando, dançando e provocando. Enquanto o restante das mulheres parecem se entregar a seus homens. Ela desliza pelas ruas e bares como uma diva, enquanto as outras são “promíscuas”. Só no final se entrega para o seu único homem, o “fodão” Fonsi. O mundo feminino poderia ser dividido entre mulheres “decentes” e “devassas”?


(c) A composição dos personagens protagonistas (Luis Fonsi e Daddy Yanke) lembra a velha técnica dos interrogatórios policiais: um dos policiais faz o papel de bonzinho para conquistar a confiança do preso; enquanto o outro toca o terror na vítima.

Assim como as atuais duplas neo-sertanejas, Fonsi-Yanke repetem a velha técnica dos filmes policiais norte-americanos: um faz o tipo romântico, “bonzinho” e bonitinho; e o outro, cara de mal, cafajeste, que não valeria um centavo. Mais uma pequena amostra do think tank masculino em relação às mulheres: supostamente, tudo que elas querem é um homem que seja ao mesmo tempo cafajeste na cama e romântico no amor...

Pseudo-evento e espiral do silêncio

O historiador norte-americano Daniel Boorstin (1914-2004) conceituava os produtos da indústria do entretenimento como “pseudo-eventos”: são eventos não-espontâneos, planejados e verdadeiras profecias autorrealizáveis – fenômeno paradoxal onde um artifício pode se realizar como verdade.

O hit Despacito não FOI um sucesso. Ele já foi lançado desde o início COMO sucesso, segundo afirmou Fonsi e a co-autora Erika Ender: "Desde o momento que estávamos compondo e quando a terminamos (Despacito), nós nos emocionamos (...) porque você percebe quando uma canção vai estourar, algo que se sente na pele, no mesmo instante".

A música torna-se sucesso porque foi divulgado como sucesso consumado. Essa circularidade é visível no próprio vídeo-clip: vemos pessoas dançando o Despacito como um hit que já ocupou ruas, vielas e bares... assim como acabou se auto realizando no mundo real.

Boorstin e Noelle-Neumann: pseudo-eventos e espiral do silêncio

Circularidade, tautologia: celebra-se não o sucesso artístico da música, mas o sucesso do empreendimento publicitário-industrial de distribuição e divulgação. Se a letra e a música é um inacreditável monólogo machista, o vídeo-clip é metalinguístico e tautológico.

Mas para que tudo dê certo e a profecia se auto-realize é necessário um último componente psicossocial conceituado pela pesquisadora alemã Noelle-Neumann (1916-2010) como “espiral do silêncio”.

O fenômeno partiria de uma percepção equivocada do indivíduo do que ele acredita ser um “clima de opinião”. Sempre podemos ter uma opinião que pode ser modificada frente a uma posição que achamos ser majoritária. Algo assim: se todos veem a coisa de uma maneira diferente do que penso, só posso estar errado.

Para Noelle-Neumann, os indivíduos parecem ter um “órgão quase estatístico”, uma espécie de sexto sentido sobre o que a sociedade em geral supostamente está pensando ou sentindo. Para a pesquisadora, a mídia, e em particular a TV, acelerariam esse processo de silenciamento de uma suposta minoria ao criar um clima de opinião através da consonância, acumulação e onipresença da distribuição e execução, no caso, do produto musical Despacito.

Mas alguém poderá usar o argumento de Nuremberg e dizer: “eles estão apenas ganhando honestamente o fruto do seu trabalho e talento”.

É inegável o talento da dupla de cantores. Afinal, não deve ser fácil, depois de 20 anos, uma música latina alcançar o topo da Billboard, as paradas norte-americanas - a última foi Macarena. Agora comemora-se que “o mundo está cantando e dançando em espanhol”.

Porém, para a indústria do entretenimento pouco importa a nacionalidade. O importante é azeitar os mecanismos circulares dos pseudo-eventos, profecias autorrealizáveis e espirais do silêncio. Nunca se sabe quando essas ferramentas serão aplicadas para objetivos mais sérios, como detonar golpes de estado e semear “primaveras” pelo mundo.

Postagens Relacionadas












Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review