sexta-feira, junho 30, 2017

Quando sorrir soa parecido com gritar em "Helter Skelter"


Mais um filme japonês que trabalha com simbologias alquímicas de transmutação pessoal. Adaptado de um mangá homônimo e iconografia inspirada no filme “Beleza Americana”, “Helter Skelter”(Herutâ Sukerutâ, 2012) do diretor e fotografo Mika Ninagawa é um exemplo de como a cultura japonesa conseguiu filtrar a sociedade de consumo ocidental através de valores milenares, combinando tudo isso com cenários futuristas e distópicos: uma top model chamada Lilico, ícone dos adolescentes conectados 24 horas em dispositivos moveis atrás de mexericos de famosos, é uma celebridade de capas de revistas, publicidade e TV, cuja beleza esconde um sinistro segredo – uma clínica de estética com revolucionário método combinando tráfico de órgão e placentas humanas, no qual corpos são reconstruídos como verdadeiros frankenteins. Uma modelo que se transforma numa gueixa pós-moderna, uma máquina de processamento de  desejos de milhões. A beleza leva a juventude para o fundo do poço, onde destruir a si mesmo é a única saída: no caso de Lilico, quando sorri, na verdade está gritando.

Quando você tem 21 não tem graça
Eles tiram uma foto polaroide e te mandam embora
Nós só te queremos quando você tem 17
Quando você tem 21
Não tem graça
(“Seventeen”, Ladytron)

Para um ocidental, a sociedade japonesa parece um enigma. Além de ter emergido rapidamente como potencia econômica após a derrota na Segunda Guerra Mundial e sobrevivido a destruição traumática de duas cidades por ataques nucleares, conseguiu combinar o capitalismo ocidental com aguerridos valores milenares da antiga ordem patriarcal e monárquica.

O que resultou numa cultura única com seus animes, mangás e toda uma cultura pop exportada para todo o mundo na qual recicla lendas medievais e muitos temas religiosos e gnósticos ocidentais através de cenários futuristas muitas vezes violentos e distópicos – sobre isso clique aqui.

Por isso, é sempre interessante ver filmes adaptados de mangas como Helter Skelter (Herutâ Sukerutâ, 2012) do diretor Mika Ninagawa. Baseado no mangá homônimo de Kyoko Okazaki, foi um dos filmes de maior sucesso de bilheteria no cinema japonês em 2012.

É curioso ver o paralelo que o filme faz entre a protagonista top model de capas de revistas, filme publicitários e passarelas (Lilico, ídolo de adolescentes consumistas e 24 horas conectados nas redes sociais) com a vida das gueixas dos tempos antigos, que tinham que fazer tudo para sua “Mãe”, o proprietário da casa.

No filme, agora a “Mãe” é uma empresária que agencia modelos. Mas não é uma empresária qualquer. Dando o toque futurista e distópico, a empresaria tem por trás dela uma sinistra clínica de cirurgias estéticas. Com um revolucionário método de reconstrução corporal (baseado em ações ilegais como, por exemplo, tráfico de órgãos humanos), a “Mãe” simplesmente cria suas próprias modelos usando como matéria-prima meninas feias e gordas – improváveis para uma carreira de modelo.


Mas a clínica as reconstrói de forma análoga a verdadeiros frankensteins – porém, belas e fisicamente perfeitas.

Centrada na modelo Lilico e sua estória de ascensão e queda, a narrativa de Helter Skelter mostra a efemeridade do estrelato ao demonstrar que a beleza nada tem a ver com a juventude como martela a sociedade de consumo.

A beleza é como um câncer que leva as pessoas a se afundar e, no caso de Lilico, literalmente apodrecer: sua vida pessoal se desintegra assim como seu próprio corpo, sempre sujeito a sucessivas cirurgias para combater efeitos colaterais – manchas escuras como se o tecido físico se desintegrasse.

Helter Skelter conta com um primoroso trabalho de fotografia, uma paleta de cores vivas, atenção extrema à cinematografia, vestuário e design geral banhando o filme com imagens de extrema beleza estética. Porém, é também curioso como essa extrema beleza repentinamente tende para limites do grotesco, bizarro e caricato. Sugerindo o paroxismo da própria beleza da top model Lilico: tão bela e doce, mas que consegue chegar na sua vida pessoal aos limites do sadismo, violência e crueldade.

E dentro da paleta de cores da fotografia, o vermelho é a cor predominante em flores, penas, vestidos, sangue etc. Uma iconografia que imediatamente nos faz lembrar de Beleza Americana (1999) fazendo esse humilde blogueiro atentar à simbologia alquímica – principalmente a simbologia de transmutação pessoal de Lilico.


O Filme


Um dos pontos fortes do filme é não se render ao horror fácil, sugerido no início pela revelação da clínica de estética, o tráfico de órgãos e placentas humanas e o relato de vítimas fatais das experiências no mundo das modelos. Poderíamos até imaginar algo como Neon Demon (2016) sobre conexões entre rituais ocultistas e morte no universo da Moda – clique aqui.

Ao contrário, Helter Skelter opta em acompanhar a descida lenta ao fundo do poço de Lilico (Erika Sawajiri). As cenas iniciais mostram o circo frenético em volta da protagonista: adolescentes colegiais conectadas em seus dispositivos móveis comentando fotos e notícias sobre a celebridade Lilico – ídolo feminina perfeita, amável, engraçada, a mulher que cada adolescente quer ser e que todo homem gostaria de conquistar.

Porém, debaixo dessa fachada impecável esconde-se uma infinidade de segredos e discrepâncias.

Na verdade, ela está cada vez mais insegura, sem nenhum tempo para um relacionamento permanente, apenas com alguns encontros sexuais esporádicos com um homem com quem tem esperança de ter um relacionamento normal.

Ela obedece permanente os comandos de sua “Mãe”, uma agenciadora corrupta de modelos, Hiroko Tada (Kaori Momoi), além de contar com uma assistente pessoal chamada Hada (Terajima Shinobu).


Um futuro sombrio ronda Lilico: seu corpo e beleza é o resultado de experimentos avançados de uma clínica de estética que começa a ser investigada por procuradores da Justiça: além de sonegar impostos e fazer tráfico de órgão humanos, é responsável por diversas mortes entre jovens modelos – o resultado final das cirurgias é a dependência química por drogas fornecidas pela clínica.

Manchas escuras aparecem no corpo de Lilico. Por isso são necessárias intervenções cirúrgicas constantes – Lilico é uma estrela que está queimando muito rápido e que facilmente poderá ser substituído por uma nova modelo encontrada pela “Mãe”: a nova sensação teen Mizuhara Kiko, uma modelo real que interpreta a si mesma.

Beleza e juventude são excludentes


Acossada pela dependência química e a ameaça de um corpo artificial que começa a se esfacelar, Lilico despeja todo seu ódio e ansiedade na assistente Hada, torturando-a de todas as maneiras possíveis – vira uma espécie de brinquedo sexual nas suas mãos.

Lilico aprende da pior maneira possível que a Beleza nada tem a ver com a juventude: tem a ver com uma máquina que processa desejos de multidões. E ela descobre que seu corpo e o próprio Eu foram resultados de expectativas médias dos desejos e fantasias de multidões anônimas. 


“Beleza processada” (termo usado a certa altura do filme) e carne processada. O filme faz essa analogia tentadora – o sabor artificialmente condimentado da carne industrializada e a beleza hiper-realizada cirurgicamente da protagonista.

Embora um pouco longo e repetitivo, Helter Skelter mostra como a Beleza aproxima-se da solidão: celebridades e beldades construídos artificialmente a partir do ponto médio das fantasias e desejos das massas. No caso de Lilico, essa construção é física: pedaços de órgãos e tecidos humanos das mais diferentes origens – assim como a carne processada de hambúrgueres fast food, feitas com carne combinada das mais variadas procedências e nacionalidades.

Paradoxalmente, as modelos sorriem simultaneamente para todos e para ninguém  – sorriem para uma massa sem rosto de pessoas solitárias em seus computadores e dispositivos móveis em busca de mexericos das celebridades.

Não é para menos que o filme abre com uma epígrafe que dá o tom de todo filme: “sorrir soa muito parecido com gritar”.


Simbologia alquímica


Essa beleza processada é mortal. Percebemos isso através da iconografia do filme: estática, imóvel, ao mesmo tempo em que é superficial, volátil e efêmera. Tende a se consumir muito rápido até o fim.

Por isso, a entrada da cor vermelha que aos poucos invade toda a cinematografia (vestidos, sangue, flores, penas etc.) como se quisesse injetar vida e exortasse para a necessidade da transformação pessoal de Lilico.

Dessa maneira, Helter Skelter aproxima-se de uma narrativa e iconografia semelhante a do filme Beleza Americana, uma simbologia alquímica: mais do que transformação, Lilico terá que passar por uma transmutação. A cor vermelha (a imagética do mercúrio alquímico, dissolvente universal).


Ao contrário da clássica jornada do herói (a jornada de plenitude, queda, martírio, prova e ressurreição), na jornada alquímica temos uma transmutação na qual o herói não vai apenas renascer dentro de si mesmo – vai se transmutar em outra propriedade da matéria, inteiramente nova, através das fases clássicas da Alquimia: Nigredo, Albedo e Rubedo.

Em Helter Skelter, respectivamente, o caos primário (a vida pessoal de Lilico), a imobilização em um estado ideal e abstrato de Beleza criando uma falsa calma e serenidade, e a injeção de sangue e vida (vermelho, mercúrio). Assim como o tiro na cabeça de Lester (Kevin Spacey) ao final de Beleza Americana fazendo o sangue jorrar, a facada no olho de Lilico na sequência final fazendo o sangue jorrar em uma mesa totalmente branca – o sangue sobre Albedo, o embranquecimento.

O sorriso imóvel e superficial de Lilico (resultado de intervenções cirúrgicas radicais) esconde o poço profundo que transforma Helter Skelter em uma verdadeira obra-prima do grotesco.


Ficha Técnica

Título: Helter Skelter (Herutâ Sukerutâ)
Diretor: Mika Minagawa
Roteiro:  Kioko Okazaki (mangá), Arisa Kaneko (roteiro)
Elenco:  Terajima Shinobu, Kiko Mizuhara, Erika Sawajiri, Mieko Harada, Kaori Momoi
Produção: WOWOW, Asmic Ace Entertainment
Distribuição: Asmic Ace Entertainment
Ano: 2012
País: Japão

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