quarta-feira, junho 21, 2017

Réquiem ao Jornalismo na redação-cenário do "novo" Jornal Nacional


Todos os jornalistas da Globo de pé assistindo ao discurso do patrão, Roberto Irineu Marinho, na redação-cenário da “nova casa” do Jornal Nacional inaugurada com toda pompa e circunstância. Todos atentos como se ouvissem a convocação do seu general arregimentado a tropa para uma nova guerra. Um discurso que revela o conflito de interesses da Globo entre manter a “saúde da empresa” e a missão de buscar um “jornalismo independente”. Esse foi o constrangedor réquiem ao jornalismo em um visual que superou a tradicional “space opera” de Hans Donner para ingressar na estética holográfica do filme “Tron: O Legado”. O JN lança seu novo cenário high tech e robótico como mais uma resposta tautista à crise de credibilidade e do negócio da TV aberta - vender espaço comercial em troca de entretenimento. A inauguração da "nova casa" do JN com todo estardalhaço metalinguístico é mais uma reação da emissora ao seu declínio. Agora o JN apresenta cenários com superfícies transparentes e translúcidas para esconder a opacidade do próprio jornalismo.  

Era uma vez o Brasil que vivia a ditadura militar na qual, graças à rígida formação intelectual dentro do Positivismo de Augusto Comte, os militares de alta patente de plantão no poder acreditavam na tecnocracia – somente uma elite de técnicos (distantes da Política e do Povo) poderia liderar o milagre econômico e o desenvolvimento nacional. Era a utopia do “Brasil Grande”.

A Globo, junto com o designer gráfico austríaco Hans Donner, compreenderam muito bem o zeitgeist desses anos 1970: o futurismo das primeiras vinhetas animadas em computador com esferas, pirâmides e cones se movimentando em fundos infinitos era a moldura high tech dessa utopia autoritária.

E a bancada do Jornal Nacional, à semelhança de uma nave espacial, era a apoteose, em cores e ao vivo, para milhões de brasileiros que viam um país que supostamente avançava para o futuro, enquanto lá fora o mundo era mostrado em crise e à beira de uma guerra nuclear.

Mas tudo isso acabou: a hiperinflação e a proletarização da classe média pôs fim ao milagre econômico. Mas os sólidos geométricos platônicos de Donner continuaram voando nas vinhetas da Globo, ao lado das beldades platinadas do Fantástico.

Mas hoje, além de mais uma crise econômica nacional, a Globo vive sua própria crise: de audiência, credibilidade e de um modelo industrial que desaparece – a venda de espaço comercial em troca de entretenimento na TV aberta.


Depois de levar a reboque a oposição política e liderar (ao lado do Judiciário) o movimento de impeachment, hoje vive acuada por críticas de todo o espectro político-ideológico.

Até conservadores e a direita atacam a Globo de supostamente tentar agora proteger Lula em um grande acordão pós queda do desinterino Michel Temer – principalmente depois publicação na revista Época da entrevista com Joesley: nas redes sociais leitores furiosos acusaram a revista de “armação da Globo para proteger Lula” – clique aqui.

Reações tautistas da Globo


Em crise de audiência e credibilidade a Globo reagiu, como sempre, de forma tautista: primeiro, na comemoração dos seus 50 anos, passou mais tempo se defendendo das críticas históricas do que celebrando conquistas (clique aqui).

Segundo, em 2014 repaginou o visual do Fantástico abandonando a estética Hans Donner space opera – tornou-se mais “orgânico”, metalinguístico (com reuniões de pauta ao vivo) para criar a percepção de “transparência” e “credibilidade” jornalística (clique aqui).

Terceiro, partiu para uma estratégia orwelliana (“quem controla o passado, controla o presente”): com um oportuno timing, em momento de guerra aberta da emissora contra o desinterino Temer, a Globo lançou a série Os Dias Eram Assim.

Mas em dias bem atuais quando começam a crescer nas ruas o grito “Diretas Já!”, a Globo se apressa em misturar realidade e ficção para reconstruir seu passado na série como se, desde 1984, fosse sempre à favor das eleições diretas (clique aqui).

E, nessa última segunda-feira, o quarto movimento para tentar se blindar: o “novo” cenário do Jornal Nacional – na verdade, uma versão ampliada e high tech do Rede TV!News e alusão ao visual da BBC News, Al Jazeera e a espanhola Antena 3.


Jornal Nacional e a estética holográfica


Com a matiz azul dominante, superfícies translúcidas, telões de LED, câmeras com braços robóticos e uma bancada em cores neon, supera a estética Hans Donner: abandona a space opera para ingressar na estética holográfica do filme Tron. Mais especificamente de Tron: O Legado.

Mas o efeito ideológico continua o mesmo: lá nos anos 1970 e assim como em 2017, o foco é em high tech, telões (lá nos 70’s o mote era “transmissão via satélite”), transparências e platinados, para criar toda uma mitologia em torno da “transparência” e “objetividade” como se o telejornal fosse uma máquina de notícias. E, portanto, como veículo tecnocrático, crível e confiável por ser “maquinal”, “tecnológico”, sem intervenção humana.

Na pomposa edição inaugural da “nova casa” duas falas se revelaram como verdadeiros atos falhos da verdadeira concepção de jornalismo da emissora. A primeira do jornalista Pedro Bassan num tour pela nova redação: “Tanta inovação que, num primeiro momento, até parece que a tecnologia é a estrela principal”.

E a segunda do indefectível diretor-geral de jornalismo Ali Kamel: “O estúdio do JN, que é a estrela, é visualmente bonito, mas ele não é algo só para ser visto, é para ser usado. Tudo que encantará informará ao mesmo tempo”.


O Jornalismo “sentado”


Jornalismo é jornalista sentado. E o “centro de apuração” da nova redação confunde-se com o trabalho de monitoramento das telas de TV e Internet.

Na oposição dentro do jornalismo apontada pelo pesquisador Ciro Marcondes Filho entre “jornalistas em pé” (repórteres investigativos que saem a campo) e “jornalistas sentados” (jornalistas transformados em terminais e “cozinha” de informações), para a Globo ganha a segunda categoria – editores da própria replicação de notícias transmitidas pelas grandes agências de notícias - leia MARCONDES FILHO, Ciro, A Saga dos Cães Perdidos, Hacker, 2000.

Comprovando que programas da emissora como Profissão Repórter do jornalista Caco Barcelos (onde vemos “focas” saindo a campo aprendendo na prática profissão) são verdadeiras folhas de parreira para esconder a nudez do jornalismo da emissora.

É o jornalismo que perde em “faro” e ganha em “tecnologia”. Mas não uma tecnologia qualquer, mas aquela que transforma a redação de jornalismo em um verdadeiro “Panóptico” – aquele modelo de arquitetura pensado pelo iluminista Jeremy Bentham em 1785 que permitia um único vigilante observar todos os prisioneiros.

Globo, Globo News e Portal G1, todos concentrados em uma única redação para centralizar o controle da “apuração” e “monitoramento” – sob o álibi da “sinergia” e “trabalho em equipe”, permitir a vigilância mútua em grandes espaços abertos de pequenas divisórias e, por sua vez, o controle de editores e chefes... e, por que não, dos próprios filhos de Roberto Marinho.

Que aliás o filho mais velho, Irineu Marinho, fez o discurso inaugural após a diligente apresentadora Renata Vasconcellos cortar a fita de inauguração para o patrão. Mas dessa vez os jornalistas não ficaram sentados.


Uma amostra do jornalismo global


Talvez para o leitor dessas mal traçadas linhas que não seja jornalista, nada mais natural do que empregados ouvirem em sinal de respeito, de pé, o discurso do seu patrão. Mas para um jornalista é constrangedor e uma pequena amostra da concepção de jornalismo que anima a “nova casa”.

Pequena amostra, porque o discurso de Irineu Marinho visivelmente confundia a “saúde financeira da empresa” com “jornalismo independente” – ainda mais sabendo-se que a Globo não é mera “empresa” qualquer, mas foi por décadas protagonista na política brasileira. O que resulta em conflito de interesse entre um suposto jornalismo “transparente” e as demandas político-econômicas da “empresa”.

A cena pareceu mais a de um general arregimentando a tropa para a nova investida da máquina de destruição da emissora: agora a nova meta é a queda a todo custo do desinterino Temer.

No final, as superfícies transparentes e translúcidas dos cenários (note que no tour de Pedro Bassan pela “nova casa” e no discurso de Irineu Marinho tomam-se os termos “cenário” e “redação” quase como sinônimos. Outro ato falho?) são as únicas coisas verdadeiramente transparentes. Ironicamente para encobrir a opacidade do jornalismo global.

Mas no início da edição do holográfico Jornal Nacional assistimos a uma amarga ironia: Bonner e Renata Vanconcellos, a bordo da bancada na estética Tron, passam a palavra para o repórter Vladimir Netto em frente a modernista arquitetura do Palácio do Planalto.

Lado a lado, o moderno e o pós-moderno. De um lado a estética modernista de Oscar Niemeyer, utopia brasileira abortada pelo golpe militar de 1964 (cuja Globo foi militante de primeira hora); e do outro a estética pós-modernista da redação-cenário do JN, estética parida pela Globalização – ordem mundial derivada da Guerra Fria cujo golpe militar no Brasil fez parte do seu xadrez geopolítico.


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