Todos os
jornalistas da Globo de pé assistindo ao discurso do patrão, Roberto Irineu Marinho, na redação-cenário da
“nova casa” do Jornal Nacional inaugurada com toda pompa e circunstância. Todos atentos como se ouvissem a convocação do seu general arregimentado a tropa
para uma nova guerra. Um discurso que revela o conflito de interesses
da Globo entre manter a “saúde da empresa” e a missão de buscar um “jornalismo independente”. Esse
foi o constrangedor réquiem ao jornalismo em um visual que superou a
tradicional “space opera” de Hans Donner para ingressar na estética holográfica
do filme “Tron: O Legado”. O JN lança seu novo cenário high tech e robótico
como mais uma resposta tautista à crise de credibilidade e do negócio da TV aberta - vender espaço comercial em troca de entretenimento. A inauguração da "nova casa" do JN com todo estardalhaço metalinguístico é mais uma reação da emissora ao seu declínio. Agora o JN apresenta cenários com superfícies transparentes e
translúcidas para esconder a opacidade do próprio jornalismo.
Era uma vez o Brasil
que vivia a ditadura militar na qual, graças à rígida formação intelectual
dentro do Positivismo de Augusto Comte, os militares de alta patente de plantão
no poder acreditavam na tecnocracia – somente uma elite de técnicos (distantes da
Política e do Povo) poderia liderar o milagre econômico e o desenvolvimento
nacional. Era a utopia do “Brasil Grande”.
A Globo, junto com o
designer gráfico austríaco Hans Donner, compreenderam muito bem o zeitgeist desses anos 1970: o futurismo
das primeiras vinhetas animadas em computador com esferas, pirâmides e cones se
movimentando em fundos infinitos era a moldura high tech dessa utopia autoritária.
E a bancada do Jornal Nacional, à semelhança de uma
nave espacial, era a apoteose, em cores e ao vivo, para milhões de brasileiros
que viam um país que supostamente avançava para o futuro, enquanto lá fora o
mundo era mostrado em crise e à beira de uma guerra nuclear.
Mas tudo isso
acabou: a hiperinflação e a proletarização da classe média pôs fim ao milagre
econômico. Mas os sólidos geométricos platônicos de Donner continuaram voando
nas vinhetas da Globo, ao lado das beldades platinadas do Fantástico.
Mas hoje, além de
mais uma crise econômica nacional, a Globo vive sua própria crise: de
audiência, credibilidade e de um modelo industrial que desaparece – a venda de
espaço comercial em troca de entretenimento na TV aberta.
Depois de levar a
reboque a oposição política e liderar (ao lado do Judiciário) o movimento de
impeachment, hoje vive acuada por críticas de todo o espectro político-ideológico.
Até conservadores e
a direita atacam a Globo de supostamente tentar agora proteger Lula em um
grande acordão pós queda do desinterino Michel Temer – principalmente depois
publicação na revista Época da
entrevista com Joesley: nas redes sociais leitores furiosos acusaram a revista
de “armação da Globo para proteger Lula” – clique aqui.
Reações tautistas da Globo
Em crise de
audiência e credibilidade a Globo reagiu, como sempre, de forma tautista:
primeiro, na comemoração dos seus 50 anos, passou mais tempo se defendendo das
críticas históricas do que celebrando conquistas (clique aqui).
Segundo, em 2014
repaginou o visual do Fantástico
abandonando a estética Hans Donner space
opera – tornou-se mais “orgânico”, metalinguístico (com reuniões de pauta
ao vivo) para criar a percepção de “transparência” e “credibilidade”
jornalística (clique aqui).
Terceiro, partiu
para uma estratégia orwelliana (“quem controla o passado, controla o
presente”): com um oportuno timing, em momento de guerra aberta da emissora
contra o desinterino Temer, a Globo lançou a série Os Dias Eram Assim.
Mas em dias bem
atuais quando começam a crescer nas ruas o grito “Diretas Já!”, a Globo se
apressa em misturar realidade e ficção para reconstruir seu passado na série
como se, desde 1984, fosse sempre à favor das eleições diretas (clique aqui).
E, nessa última
segunda-feira, o quarto movimento para tentar se blindar: o “novo” cenário do
Jornal Nacional – na verdade, uma versão ampliada e high tech do Rede TV!News
e alusão ao visual da BBC News, Al Jazeera e a espanhola Antena 3.
Jornal Nacional e a estética holográfica
Com a matiz azul
dominante, superfícies translúcidas, telões de LED, câmeras com braços
robóticos e uma bancada em cores neon, supera a estética Hans Donner: abandona
a space opera para ingressar na
estética holográfica do filme Tron.
Mais especificamente de Tron: O Legado.
Mas o efeito
ideológico continua o mesmo: lá nos anos 1970 e assim como em 2017, o foco é em
high tech, telões (lá nos 70’s o mote
era “transmissão via satélite”), transparências e platinados, para criar toda
uma mitologia em torno da “transparência” e “objetividade” como se o telejornal
fosse uma máquina de notícias. E, portanto, como veículo tecnocrático, crível e
confiável por ser “maquinal”, “tecnológico”, sem intervenção humana.
Na pomposa edição
inaugural da “nova casa” duas falas se revelaram como verdadeiros atos falhos
da verdadeira concepção de jornalismo da emissora. A primeira do jornalista
Pedro Bassan num tour pela nova redação: “Tanta inovação que, num primeiro
momento, até parece que a tecnologia é a estrela principal”.
E a segunda do indefectível
diretor-geral de jornalismo Ali Kamel: “O estúdio do JN, que é a estrela, é visualmente
bonito, mas ele não é algo só para ser visto, é para ser usado. Tudo que
encantará informará ao mesmo tempo”.
O Jornalismo “sentado”
Jornalismo é jornalista sentado. E
o “centro de apuração” da nova redação confunde-se com o trabalho de
monitoramento das telas de TV e Internet.
Na oposição dentro do jornalismo
apontada pelo pesquisador Ciro Marcondes Filho entre “jornalistas em pé”
(repórteres investigativos que saem a campo) e “jornalistas sentados”
(jornalistas transformados em terminais e “cozinha” de informações), para a
Globo ganha a segunda categoria – editores da própria replicação de notícias
transmitidas pelas grandes agências de notícias - leia MARCONDES FILHO, Ciro, A Saga dos Cães Perdidos, Hacker, 2000.
Comprovando que programas da
emissora como Profissão Repórter do
jornalista Caco Barcelos (onde vemos “focas” saindo a campo aprendendo na
prática profissão) são verdadeiras folhas de parreira para esconder a nudez do
jornalismo da emissora.
É o jornalismo que perde em “faro”
e ganha em “tecnologia”. Mas não uma tecnologia qualquer, mas aquela que
transforma a redação de jornalismo em um verdadeiro “Panóptico” – aquele modelo
de arquitetura pensado pelo iluminista Jeremy Bentham em 1785 que permitia um
único vigilante observar todos os prisioneiros.
Globo, Globo News e Portal G1,
todos concentrados em uma única redação para centralizar o controle da
“apuração” e “monitoramento” – sob o álibi da “sinergia” e “trabalho em equipe”,
permitir a vigilância mútua em grandes espaços abertos de pequenas divisórias
e, por sua vez, o controle de editores e chefes... e, por que não, dos próprios
filhos de Roberto Marinho.
Que aliás o filho mais velho,
Irineu Marinho, fez o discurso inaugural após a diligente apresentadora Renata
Vasconcellos cortar a fita de inauguração para o patrão. Mas dessa vez os
jornalistas não ficaram sentados.
Uma amostra do jornalismo global
Talvez para o leitor dessas mal
traçadas linhas que não seja jornalista, nada mais natural do que empregados
ouvirem em sinal de respeito, de pé, o discurso do seu patrão. Mas para um
jornalista é constrangedor e uma pequena amostra da concepção de jornalismo que
anima a “nova casa”.
Pequena amostra,
porque o discurso de Irineu Marinho visivelmente confundia a “saúde financeira
da empresa” com “jornalismo independente” – ainda mais sabendo-se que a Globo
não é mera “empresa” qualquer, mas foi por décadas protagonista na política
brasileira. O que resulta em conflito de interesse entre um suposto jornalismo
“transparente” e as demandas político-econômicas da “empresa”.
A cena pareceu mais a
de um general arregimentando a tropa para a nova investida da máquina de
destruição da emissora: agora a nova meta é a queda a todo custo do desinterino
Temer.
No final, as
superfícies transparentes e translúcidas dos cenários (note que no tour de
Pedro Bassan pela “nova casa” e no discurso de Irineu Marinho tomam-se os
termos “cenário” e “redação” quase como sinônimos. Outro ato falho?) são as
únicas coisas verdadeiramente transparentes. Ironicamente para encobrir a
opacidade do jornalismo global.
Mas no início da
edição do holográfico Jornal Nacional assistimos a uma amarga ironia: Bonner e
Renata Vanconcellos, a bordo da bancada na estética Tron, passam a palavra para o repórter Vladimir Netto em frente a
modernista arquitetura do Palácio do Planalto.
Lado a lado, o
moderno e o pós-moderno. De um lado a estética modernista de Oscar Niemeyer,
utopia brasileira abortada pelo golpe militar de 1964 (cuja Globo foi militante
de primeira hora); e do outro a estética pós-modernista da redação-cenário do
JN, estética parida pela Globalização – ordem mundial derivada da Guerra Fria
cujo golpe militar no Brasil fez parte do seu xadrez geopolítico.
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