terça-feira, dezembro 31, 2013

Ano novo, cigarros e o fim da geração MTV no filme "200 Cigarettes"


O filme “200 Cigarettes” (1999) é um programa oportuno para essa época de comemorações do ano novo, pois nos faz refletir sobre o tempo e as mudanças da cultura e identidade entre as gerações X, Y e Z. Por que na virada para o terceiro milênio, a MTV produziu um filme tão nostálgico, cuja história se passa na noite de ano novo de 1981? “200 Cigarettes” é o testamento de uma geração que a MTV soube muito bem moldar, aquela que acreditava que a própria vida poderia ser um vídeo clip. Porém, não esperava que a cultura punk DIY (Do It Yourself – “faça você mesmo”) que ela ajudou a destruir com a cultura pop retornaria como vingança, dessa vez renascida pela Internet 2.0. Mas o mal estar da incomunicabilidade permanece porque os meios digitais se tornaram nada mais do que uma nova plataforma comercial.

Dependendo da faixa etária ou geracional do leitor, assistir ao filme 200 Cigarettes nessa véspera de ano novo poderá trazer diferentes experiências em relação ao tempo: se for da geração desse humilde blogueiro (a chamada Geração X) que viveu a pós-adolescência sob o impacto da ascensão da cultura videoclip e cultura pop criada pela MTV a partir de 1980, a sensação será nostálgica como se olhasse para uma época perdida no tempo; se for da geração Y, achará um filme estranho, com um monte de jovens com roupas exóticas que identificam sua tribo urbana, e a única coisa que você reconhecerá no meio de tudo isso é a cantora Courtney Love (a viúva de Kurt Cobain e da música grunge) interpretando ela mesma; e se for da chamada geração Z , achará tudo ainda mais esquisito, com gente fumando o tempo inteiro, que depende de telefone público e lista telefônica para se localizar e pessoas extremamente maneiristas e preocupadas com seu visual.

O filme 200 Cigarettes, foi uma produção da MTV de 1999, mas a narrativa se passa em 1981, em uma noite de véspera de ano novo. Por que às vésperas do terceiro milênio, a MTV produziu um filme tão nostálgico? Na verdade, o filme parece ser uma série de vídeo clips dentro de um grande vídeo clip – a trilha musical é composta por mais de 50 músicas da época, todas elas exibidas pela MTV naquele ano. Por que tanta nostalgia de uma emissora cuja imagem sempre esteve associada com a revolução, modernidade e tecnologia?


O filme


Dirigido por Risa Bramon Garcia e escrito por Shana Larsen, o filme é composto por diversos plots que ocorrem simultaneamente na noite de ano novo de 1981. Todos foram convidados a participar de uma grande festa de ano novo de Monica que está desesperada, com medo de que nenhum convidado apareça. A primeira a chegar é a sua amiga Hillary, que Monica faz de tudo para convencê-la a ficar diante do fracasso iminente.

Enquanto isso, a narrativa mostra todos os convidados atravessando Nova York, fumando compulsivamente e discutindo seus dramas pessoais, paranoias, desentendimentos e muitos mal entendidos: tensões sexuais, paixões por bar tenders, duas garotas que perdem o endereço da festa e param em um ameaçador clube punk, um hilariante motorista de um taxi temático em estilo disco music que se transforma em conselheiro motivacional de todos etc. Ao mesmo tempo, Mônica afoga suas mágoas em álcool e baforadas de cigarro enquanto espera por todos.

O filme é daquele tipo onde todos aparecem: um vasto elenco de talentos jovens da época que começavam a despontar em capas de revistas e sites da Web como Ben Affleck, Casey Affleck, Kathe Hudson, Christina Ricci, Gaby Hoffman, Janeane Garofalo, Angela Featherstone entre outros azarados: todos perdidos em pequenos skatchs, em um roteiro sem rumo, linhas de diálogos que mais parecem cacos, confrontos sem sentido em um filme que mais parece uma festa dos anos 1980 do que um filme sobre os anos 1980.

Vendo o filme podemos perceber que é uma geração de jovens bons atores, mas que na verdade ainda são recipientes vazios à espera de um bom roteiro que os preencha com bons diálogos.

200 Cigarettes: documento de uma época


Por isso, a importância de 200 Cigarettes não é cinematográfica, mas como um documento de época: a entrada no terceiro milênio, da internet 1.0 da geração Y e o olhar nostálgico da MTV para uma época em que ela criou toda uma cultura visual pop, antes de as tecnologias digitais surgirem e destronar a sua hegemonia.

Embora seja um olhar caricato da MTV, algo assim como uma festa dos anos 80, o filme é um interessante instrumento para discutir as mudanças geracionais e culturais. A MTV surge em 1980 e transforma-se rapidamente em um divisor de águas cultural ao criar com a cultura videoclip uma revolução musical. A emissora potencializou comercialmente todo o potencial artístico que estava presente em particular no rock, como já haviam demonstrado as décadas anteriores. Serviu de plataforma para o lançamento de pop stars globais e uma saída promocional para artistas e gravadoras.

Junto com a CNN, a MTV trouxe a popularização da TV a cabo quando ainda era uma tendência nova e incipiente na década de 80. Por isso, a emissora tornou-se o emblema para a identidade dos jovens, influenciando não só a indústria musical, mas também em diversas áreas como moda e cinema – os diretores de videoclip acabaram formando toda uma geração diretores de cinema como Spike Jonze, Michel Gondry, Mike Mills, David Fincher Roman Coppola que acabaram fazendo diversos filmes com a nítida influência da estética clip: Clube da Luta, Corra, Lola, Corra, O Fábuloso Destino de Amelie Poulain, Amores Brutos etc.

Geração X: a vida é um vídeo clip


A MTV também criou as bases da cultura pop, fundamentada numa identidade essencialmente visual. Por exemplo, na época eram comuns cabeleireiros com aparelhos de TV sintonizados na MTV para que seus clientes imitassem os estilos de cabelos que apareciam nos vídeoclips.

Isso acabou criando uma das características mais marcantes da Geração X: a identidade relacionada com a tribalização urbana. Clubes ou danceterias punk, pós-punk, house, clubbers, disco, tecnopop etc, definiam em termos de moda, música, estética e atitude a identidade de cada jovem. A virtude de 200 cigarrets é apresentar, apesar da forma caricata, esse traço marcante da geração daqueles tempos.

A certa altura do filme, um dos personagens diz uma frase que dá sentido ao título e aos comportamentos compulsivos e inseguros de todos: “Sabia que o cigarro é um escudo contra as relações pessoais mais profundas?”.

Esse talvez seja a única virtude do filme 200 cigarettes. A caricatura feita sobre a Geração X acaba evidenciando o núcleo do mal estar de toda a cultura pop: se a identidade passava pelo visual do vídeo clip da tribo urbana na qual se inseria o indivíduo, então a tendência era imaginar a própria vida como um grande vídeo clip onde o indivíduo tinha as roupas, a música e a atitude certas (os maneirismos com o cigarro seria um dos exemplos), enquanto os outros observavam sua performance. O problema em tudo isso é que os outros também se imaginavam no seu próprio vídeo clip, o que gerava a incomunicabilidade radical, unicamente quebrada pela tensão sexual que é marcante entre todos os personagens do filme.

A vingança punk


Como bem observava o pesquisador canadense Marshall McLuhan, a televisão era “um gigante tímido”: embora sinestesicamente a TV tivesse unificado os sentidos e a vida (como bem demonstrou a cultura vídeo clip), ela ainda estava presa à cultura visual livresca da narrativa, isto é, de um receptor que observava, passivo, uma história sendo contada. A busca da própria identidade nas histórias dos vídeo clips era esse desejo tátil por interatividade que a Internet 1.0 da geração Y começou a oferecer e que a MTV sentiu o golpe.

Todo o negócio baseado na plataforma de vídeos musicais baseava-se nessa tribalização urbana, na identidade visual que buscava segmentos onde cada um estava na sua, passivamente consumindo imagens. Em 1999 a MTV já percebia essa transição da geração Y para a Z (a geração da Internet 2.0): com a convergência tecnológica das mídias e da Internet, a TV a cabo começa a sofrer uma crise de identidade. Não só as pessoas não estão mais dispostas a assistir a uma grade de programação à espera do seu clip predileto, como os primeiros programas P2P de trocas de arquivos mp3 como o Napster apontava para uma mudança radical na forma de comercializar música.

A cultura eminentemente visual (no qual se baseava a cultura pop) entra em declínio para em seu lugar entrar a cultural tátil-ressonante da Internet 2.0: enfraquecimento das tribos urbanas para, em seu lugar, o surgimento de identidades múltiplas pautadas por diferentes perfis que um indivíduo pode assumir em chats, redes sociais, blogs etc.

De certa forma, a cultura DIY (Do it yourself – “faça você mesmo”) presente na atitude punk nos anos 1970, que foi colocada abaixo pela MTV e toda estética vídeo clip como plataforma de comercialização musical, retorna como a vingança. Ninguém parece estar mais disposto a construir sua identidade vendo um vídeo clip que representaria sua tribo. A identidade hoje está ao alcance dos próprios dedos no teclado e no mouse.

Não que isso represente grande avanço civilizatório: o que acompanhamos é uma mera troca de plataforma de comercialização. Pois a incomunicabilidade continua. Se no passado cada um se imaginava dentro do seu próprio vídeo clip, hoje cada um imagina que a timeline do seu perfil na rede social é a linha do tempo da sua própria vida.

Ficha Técnica

Título: 200 Cigarrets
Diretor: Risa Bramon Garcia
Roteiro: Shana Larsen
Elenco: Ben Affleck, Casey Affleck, Dave Chapelle, Courtney Love, Angela Featherstone, Christina Ricci, Janeane Garofalo, Kate Hudson
Produção: MTV Films, Lakeshore Entertainment
Distribuição: Paramount Pictures
Ano: 1999
País: EUA


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