Produtos
audiovisuais de língua portuguesa estão inovando a forma de abordar a sociedade
de consumo. Fugindo da habitual crítica do ter-que-substitui-o-ser (que se
tornou clichê no momento em que a moderna publicidade absorveu a crítica e
transformou a imagem do consumo em atividade “consciente”, “sustentável” e “espiritualizada”),
o curta “Compramos e Vendemos Sentimentos”, trabalho de conclusão de curso de
Cinema da Universidade Lusófona de Lisboa, apresenta uma nova abordagem crítica
ao consumismo: uma sociedade mecanizada e futurista onde as pessoas para poderem ir e vir têm de se vender. São viciadas em
sentimentos e têm de trocá-los para adquirirem o que querem. Veja o curta.
Por muito tempo a crítica mais comum à
sociedade de consumo sempre foi de que é uma sociedade de alienação e de
espetáculo, onde o ter substitui o ser. Mas a indústria publicitária e o consumismo
evoluíram e incorporaram essas críticas quando se tornaram mais “espiritualizadas”:
parece que assimilaram todas as críticas feitas a
ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade,
materialismo etc.) e agora procura demonstrar através de um novo discurso que
mudaram, se espiritualizaram e não veem mais o consumo como mero ato de
aquisição, mas de enriquecimento espiritual.
Tendências como
o chamado “consumo consciente”, “sustentável” e todo um discurso motivacional e
ético que envolve agora o ato da compra (o consumo muito menos como um ato de
acúmulo e ostentação e mais como uma oportunidade de buscar uma espécie de
atalho para a iluminação espiritual - comprar-consumir-espiritualizar-se)
parece dominar a linguagem publicitária.
Por isso poucos
filmes sobre o tema consumismo conseguem escapar do lugar comum do ter-que-substitui-o-ser,
incorrendo no moralismo de que todo o problema da sociedade do consumo está no
excesso, na compra de bens supérfluos e nos problemas ambientais decorrentes.
Filmes como Sex and the City (2008), Delírios de Consumo (2009) ou mesmo documentários
como Super Size Me (2004) ou Surplus (2003) ficam nos aspectos mais
evidentes do problema como o excesso, a viciosidade, o terrorismo publicitário
e as questões ecológicas.
Filmes mais
diferenciados como Amor Por Contrato (2009), Crazy People (1990) ou Como Fazer Carreira em Publicidade
(1989) ainda permanecem no campo da persuasão subliminar da linguagem
publicitária e do Marketing.
Talvez a
novidade crítica em relação à nova fase da sociedade de consumo venha de
produções audiovisuais em língua portuguesa. O Filme 1,99: Um Supermercado que Vende Palavras (2003) de Marcelo Masagão foi
uma novidade ao tratar o consumo não mais como um ato de compra pura e simples,
mas como uma forma fetichista de aquisição de valores abstratos: ideias,
motivações, sentimentos, etilos de vida etc. Pessoas entram em um estranho
supermercado onde os produtos estão vazios. As pessoas apenas compram as
palavras que estão nas embalagens. Nesse filme, Masagão foi mais além: mesmo
aqueles que teoricamente estão excluídos do consumo (no filme, aqueles que estão
perambulando como zumbis fora do mercado) “consomem” os produtos enquanto
desejam, invejam e tentam imitar adquirindo produtos piratas.
O curta Compramos e Vendemos Sentimentos
A outra
novidade é o curta português Compramos e
Vendemos Sentimentos (2007), trabalho de final de curso de alunos do curso
de Cinema, Vídeo e Comunicação Multimídia da Universidade Lusófona em Lisboa,
Portugal. Dirigido por Vitor Pedrosa e Francisco Souza, lembra bastante o
argumento do filme de Masagão. O curta é ambientado em uma sociedade mecanizada
e futurista onde as pessoas para
poder ir e vir têm de se vender. São viciadas em sentimentos e têm de trocá-los
para adquirirem o que querem. O espectador acompanha essa história por um fio
condutor, que é o personagem principal, Lúcio, que um dia tenta mudar a forma
de pensar daquela sociedade, com um sentimento que não se sabe ao certo qual é.
Nessa sociedade
existem espécies de shopping centers
bem incomuns: formam-se filas em guichês para se vender e comprar sentimentos. Nesses
guichês formam-se filas com vários tipos de pessoas: o velho que quer vender
tristeza, o jovem obeso que quer comprar controle… Lúcio está na fila das
vendas e quando, chega a sua vez, tenta vender todos os seus sentimentos,
colocando uma grande porção de confeitos (no curta os sentimentos são
representados por confeitos) em cima da mesa do atendimento. O empregado
justifica que não está autorizado a vender um número tão elevado de sentimentos
e ameaça chamar a Segurança . No meio da discussão surge uma misteriosa garota
que decide ficar com todos os sentimentos de Lúcio, entregando um único
sentimento em troca.
A cenografia
branca, em fundo infinito e com uma fotografia e décor assépticas tal como um
hospital faz lembrar do filme brasileiro 1,99. E o mesmo enfoque abstrato,
fetichista e metafísico da sociedade de consumo: não compramos mais coisas
(roupas, carros ou comida), mas abstrações, sentimentos, valores como o
denominador comum de tudo. Tal como em 1,99,
as pessoas vagam como zumbis pelo shopping, com suas roupas cinzas, pretas e
brancas, sem cor ou vida. Precisam comprar motivação, élan para viver.
É marcante no
curta como os sentimentos são representados: por confeitos. Nada mais
descartável do que ser representado por um junky
food, símbolo da viciosidade e compulsão: assim como o consumo das drogas
onde na primeira vez que é consumida “batem” muito rápidas proporcionando
grande prazer, para depois serem consumidas de novo em busca da sensação da
primeira vez que nunca mais será alcançada – condição para se criar o ciclo
vicioso do consumo até a overdose.
A virtude tanto do 1,99 de Masagão quanto o brilhante trabalho de conclusão de curso
da Universidade Lusófona é conseguir representar audiovisualmente um tema tão
abstrato quanto a “espiritualização” atual da sociedade de consumo. Talvez seja
por isso que o cinema continue a abordar o tema consumismo pelo seu aspecto
mais visível, porque filmicamente é mais fácil de representar por meio do
exagero da compra de produtos tangíveis.
Quem é a garota misteriosa?
Uma abordagem tão
etérea, abstrata e metafísica da sociedade de consumo, necessariamente vai
bater na porta dos arquétipos gnósticos. Quem é a misteriosa garota para a qual
o protagonista entrega todos os seus sentimentos tão descartáveis como
confeitos para, em troca, receber o sentimento mais verdadeiro e duradouro, o
amor?
O casal
caminhando juntos para um fundo infinito dá um nítido significado místico para esse
encontro: o arquétipo de Sophia. Um dos mais importantes aeons da mitologia gnóstica como aquela que desperta no homem a
necessidade da gnose e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria
aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação. É
recorrente na filmografia atual como os personagens femininos são aqueles que
tiram o protagonista de sua zona de conforto, provocam-no ou criam situações
para que desperte nele a iluminação ou, pelo menos, a intraquilidade que exige
a necessidade de mudanças.
O protagonista
Lúcio é o arquétipo contemporâneo do Estrangeiro. O
personagem do Estrangeiro é tomado na cinematografia atual tanto no sentido
daquele que veio de longe, de outras terras, dimensões ou planetas, como aquele
que mantém uma relação de estranhamento e mal-estar onde vive, sentindo-se como
um estrangeiro na sua própria família, trabalho ou sociedade.
Lúcio sabe que
há algo errado na sociedade em que vive e tenta traduzir esse sentimento dentro
dos termos que a sociedade coloca para ele: ir ao shopping e trocar todos os
seus sentimentos descartáveis e vazios por alguma coisa que nem ele sabe o que
é. E eis que surge a misteriosa e atraente garota que troca todos os confeitos
por um bem sem nenhuma concreção: o amor, a simples presença dela ao seu lado,
seguindo com ele seu caminho.
Assim como o
filme 1,99 de Masagão, o curta Compramos
e Vendemos Sentimentos retoma o clássico tema marxista do fetichismo da
mercadoria: objetos e ideias tornam-se verdadeiras
varinhas de mágicas que dão sentido aos relacionamentos humanos. Se produtos,
ideias ou slogans adquirem qualidades humanas, para nos humanizarmos de volta
temos que adquiri-los ou, no mínimo, desejá-los.
A misteriosa
garota (Sofia?) nega isso e tira o protagonista daquela sociedade insana: os
verdadeiros valores já estão em nós mesmos e na forma como os trocamos uns com
os outros, sem mediações mercantis.
Ficha Técnica
- Título: Compramos e Vendemos Sentimentos
- Diretor: Vitor Pedrosa e Francisco Souza
- Roteiro: Emmanuel Caetano, Andreia Nunes e Francisco Souza
- Elenco: Francisco Souza, Rita Martins, Nuno Machado, Vitor Toledo
- Produção: Andreia Nunes, Universidade Lusófona
- Ano: 2007
- País: Portugal
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